Thursday, 03 de October de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1308

Luiz Garcia

IMPRENSA & JUDICIÁRIO

"A danosa imprensa", copyright O Globo, 16/05/02

"É boa idéia de juízes e jornalistas discutirem o mal que a imprensa irresponsável pode fazer a cidadãos. Este é, simplificando um pouco, o tema de um seminário em Brasília, semana que vem, reunindo juízes, advogados e jornalistas.

Naturalmente, a mesa ficará mais redonda se a discussão incluir o risco de se impedir a imprensa de trabalhar honestamente, em nome de falsas agressões à privacidade e à honra de alguém. Não há de ser diferente: como seminário não é tribunal, deve-se presumir que as duas faces do problema serão igualmente iluminadas.

(Devo prevenir que sou mestre na arte de falar de improviso: o pensamento é claro, tudo que importa vem à cabeça automaticamente e as palavras fluem com espantosa naturalidade. Infelizmente, tudo isso acontece no caminho de volta para casa. Na hora, é um show de tartamudeio que adormece a metade da platéia que não foi embora. Para evitar mais um vexame, registrarei aqui, em pílulas, o que me parece relevante sobre o tema. Na hora do debate, bastará distribuir exemplares do jornal no auditório. A não ser, claro, que eu me esqueça de levá-los para Brasília.)

Falando sério, acredito que:

1. Não é possível discutir o dano moral, tema central do seminário, sem contrastá-lo com o interesse público. É óbvio que se causou dano moral ao ex-presidente Collor quando se noticiou a lavagem de dinheiro na famosa Operação Uruguai. Mas o interesse público era obviamente prioritário. As coisas se complicam quando as circunstâncias do episódio não têm igual clareza, o que acontece com extenuante freqüência. Resta ao jornalista tomar uma decis&aatilde;o baseada em critérios subjetivos, e correr os riscos inevitáveis. Inclusive o de ser processado.

2. A melhor maneira de reduzir riscos – e isso, senhores juízes, discute-se nas redações há muito tempo – começa e acaba (presumindo-se boa-fé) na obediência a técnicas elementares de apuração de notícias. A mais importante é considerar qualquer denúncia – gravação anônima deixada embaixo da ponte, suspeitas fantasiadas de indícios, distribuídas, em on ou em off por qualquer fonte oficial (o que inclui políticos, procuradores, arapongas e policiais) – como apenas o ponto de partida de uma investigação de responsabilidade exclusiva do jornalista.

3. É preciso que crie raízes nas redações a convicção de que ?ouvir o outro lado? é obrigatório, mas não decisivo na decisão de divulgar seja o que for. Ter a oportunidade de responder à acusação não livra o inocente de sofrer o dano moral.

4. O jornalista deve, por princípio, suspeitar da revelação sensacional, que vende jornal e melhora o Ibope. É uma variante da Lei de Murphy : quanto mais sensacional, mais provável que seja mentira.

5. Faz parte da investigação de acusações que podem provocar dano moral apurar os motivos e as vantagens em potencial para o denunciante. Exceto em casos onde o denunciante corre risco de retaliação violenta, é eticamente discutível a decisão de prometer-lhe anonimato. Por exemplo, ao empresário que oferece a gravação provando estripulias de um rival.

6. Entre os fatores que influenciam a publicação de fato danoso está o contraste entre o interesse para o leitor e o sofrimento que a divulgação do fato pode causar. Parte do interesse do público em conhecer certos fatos é curiosidade gratuita e indigna: trata-se de fascínio pelo escândalo, e mais nada. Essa motivação não merece o menor respeito – nem tratamento jornalístico. Jornalista não é polícia: tem o direito e até a necessidade, por limitações materiais, de escolher o que vai divulgar. Nisso, em nada se parece com o representante do Estado.

Espero que essas propostas de comportamento (que são assunto de debate em muitas redações) ajudem a pôr molho numa discussão sobre as responsabilidade do jornalista em face do dano moral. Principalmente se pegar fogo a anunciada guerra de dossiês. Passemos para o outro lado:

1. A expressão ?liberdade de imprensa?, por mais que nos deixe com os olhos rasos d?água, contém uma deformação. O que vale de fato é o direito da sociedade à informação e o dever da imprensa de mantê-la informada. Por isso, toda limitação imposta à difusão de notícias não atinge apenas supostas prerrogativas de um grupo profissional: afeta um direito essencial da sociedade inteira. Em suma: devagar com o andor na defesa de propostas que limitem a circulação de informações.

2. Tanto Judiciário como Legislativo e Executivo têm no seu passivo grave mancha: a manutenção em vigor até hoje da Lei de Imprensa baixada pela ditadura em 1967. Filha legítima do autoritarismo, ela diz, a propósito de dano moral, que ao arbitrar a indenização, o juiz terá de levar em conta, entre outras coisas, ?a posição política e social do ofendido?. Ninguém tem vergonha desse monstrinho ter sobrevivido na legislação? Ninguém tem curiosidade de saber por que sobreviveu até hoje?

3. É altamente discutível que o país precise de uma lei de imprensa. Existe um projeto encalhado no Congresso, quase ridículo no seu detalhismo, que pode ser perfeitamente dispensado. Nada impede que calúnia, difamação e injúria sejam tratadas no Código Penal (como aberrações da liberdade de expressão em geral, e não da liberdade de imprensa em particular), assim como a indenização por dano moral ou material seja cuidada no Código Civil, igualmente sem especificação do instrumento que produziu o dano. A maioria das grandes democracias mundiais sobrevive muito bem sem leis exclusivas para a imprensa.

4. A chamada grande imprensa tem recursos, humanos e financeiros, para enfrentar processos baseados na velha lei da ditadura. O mesmo não se pode dizer da imprensa do interior. Principalmente quando processada por membros do Poder Judiciário – o que, como mostram os relatórios anuais da ANJ, acontece com peculiar freqüência.

5. Finalmente, uma informação que não pode surpreender ninguém: a comunicação de massa sempre teve e sempre terá alta margem de erro. E o dano moral, acreditem, acontece mais por erro do que por malévolo desígnio. A imprensa, na verdade, lembra um pouco a democracia: assim que descobrirem coisa melhor, podem jogar no lixo. Mas só então."

 

"Encontro da ANJ condena indústria da indenização", copyright O Estado de S. Paulo, 21/05/02

"O presidente interino Marco Aurélio Mello condenou ontem a indústria de indenizações contra empresas jornalísticas que, na sua opinião, ?não pode ganhar contornos lotéricos, como se a pessoa tivesse acertado na loteria?. A declaração de Marco Aurélio foi dada em resposta ao alerta apresentado pelo presidente da Associação Nacional dos Jornais (ANJ) e diretor-superintendente do Grupo Estado, Francisco Mesquita Neto, que na abertura do Seminário Imprensa e Dano Moral, comunicou a ?extrema preocupação? das empresas de comunicação não só com o crescimento excessivo das ações acolhidas por danos morais contra elas, mas também com as elevadas quantias pretendidas a título de indenização.

?Torna-se perfeitamente possível que veículos brasileiros se vejam inviabilizados pelas indenizações a eles impostas?, denunciou o presidente da ANJ. Para ele, essas elevadas quantias determinadas pela Justiça por danos morais ?apontam na direção do surgimento de uma indústria de indenizações? e ?podem sinalizar uma ameaça de asfixia econômica dos jornais, revistas e emissoras, abalando ou eliminando as condições de sobrevivência dessas empresas?. Dessa reflexão, na avaliação de Mesquita, ?talvez possam nascer mecanismos que façam prevalecer a justa conciliação entre a liberdade informativa e opinativa e os direitos da personalidade?.

Mesquita ressaltou que os representantes da imprensa ?não estavam defendendo, de forma alguma, a impunidade e muito menos a irresponsabilidade?, já que os jornais, assim como as demais empresas de mídia, reconhecem sempre sua responsabilidade social. ?A ANJ mantém um rígido código de ética em que se condena, de forma mais clara e transparente, qualquer manipulação da informação que atinja injustamente a honra e a privacidade relevante?, destacou ele, ao comentar que mais de 50 jornais brasileiros enfrentam ações por alegados danos morais.

Democracia – Mello, que também preside o Supremo Tribunal Federal, fez coro às preocupações do presidente da ANJ. ?Se o objetivo maior (da indenização) é inibir caberia muito mais a responsabilidade penal do que a responsabilidade civil.? Mello defendeu a completa apuração dos fatos, antes de qualquer publicação, alegando que a informação tem de ser clara, sem sensacionalismo, porque favorece o fortalecimento das instituições.

Segundo Mello, a liberdade de expressão é um bem que precisa ser respeitado e mantido, pela democracia. ?Sou contra o homem público mostrar-se suscetível a certas notícias que ocorrem?, acentuou Marco Aurélio, que informou jamais ter entrado com notificação contra um jornalista, mas lembrou um princípio básico da Constituição: a não-culpabilidade porque denúncia não significa condenação.

O jurista Ives Gandra, também presente ao debate, criticou quem move ações por danos morais contra empresas jornalísticas, sem fixar o valor. Na sua opinião, essa pessoa tem de dizer o quanto vale sua honra, em dinheiro. Ele advertiu que as ações podem provocar uma lei do silêncio e muitas das denúncias apresentadas baseiam-se em informações prestadas por integrantes do Ministério Público, que deveriam guardar sigilo sobre o que investigam, mas não o fazem por sofrer da ?síndrome dos holofotes?.

O editorialista do Grupo Estado José Nêumanne salientou que, na relação entre Ministério Público e imprensa, a parte fraca é o jornalista. O presidente interino, por sua vez, declarou-se um entusiasta do Ministério Público, quando ele realmente atua em defesa da sociedade.

Quanto a contradições entre artigos da Constituição que tratam da liberdade de expressão, Mesquita lembrou ainda que nenhuma lei pode conter dispositivo que constitua embaraço à plena liberdade de informação jornalística. De outro lado, observou, são invioláveis a intimidade, a vida privada, a honra e a imagem das pessoas, assegurado o direito à indenização pelo dano material ou moral decorrente de sua violação.

Para Mesquita, a lei de imprensa, mesmo autoritária e distorcida, prevê os riscos que os jornais podem enfrentar, caso cometam alguma injustiça. ?Mas não é o que ocorre agora com as indenizações por danos morais, já que não se sabe quais os critérios para fixação dos valores e inexistem limites para os montantes a serem desembolsados em razão dessas sentenças.? Desse encontro, ele espera, podem nascer mecanismos que façam prevalecer a justa conciliação entre a liberdade informativa e opinativa e os direitos da personalidade."

 

"Seminário discute liberdade de imprensa e legislação", copyright O Estado de S. Paulo, 20/05/02

"Promovido pela ANJ, evento reúne jornalistas, juristas e magistrados em Brasília

A Associação Nacional de Jornais (ANJ) e a Escola da Magistratura do Distrito Federal promovem hoje e amanhã em Brasília o Seminário Nacional Imprensa e Dano Moral, evento em que jornalistas, juristas e magistrados vão debater o equilíbrio entre a liberdade de expressão e o direito à reparação de cidadãos que se sentem atingidos por acusações veiculadas pela mídia.

Um dos pontos centrais do debate será a polêmica em torno de sentenças judiciais de altos valores concedidas por tribunais que têm levado muitos veículos, principalmente jornais, à beira da bancarrota.

O presidente da ANJ e superintendente de O Estado de S. Paulo, Francisco Mesquita Neto, diz que, com a Constituição de 1988, a lei que impõe um teto às reparações judiciais por danos morais teria deixado de ter validade – no entendimento de muitos magistrados. E com isso, acrescenta ele, os valores das indenizações dispararam. ?A quantidade de processos tem crescido e o que é mais preocupante é que as sentenças, quando são contrárias aos veículos, vêm com valores desproporcionais?, diz Mesquita. Para ele, o crescimento do número de pedidos sinaliza a existência de uma ?indústria das indenizações?.

Preço alto – Um dos casos de condenações elevadas é o do diretor-proprietário do semanário Debate, de Santa Cruz do Rio Pardo (interior de São Paulo), Sérgio Fleury Moraes, obrigado pela Justiça a pagar o equivalente a mil salários mínimos ao juiz Antônio José Magdalena. Em 1997, o juiz da comarca da cidade determinou que Moraes deveria arcar com indenização de 1.800 salários mínimos. O Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo reduziu a indenização para mil salários. O Debate tem sete funcionários e uma tiragem de 6 mil exemplares por semana. O faturamento é de cerca de R$ 11 mil por mês. ?Se eu tivesse de pagar uma indenização de mil salários mínimos – que com juros e correção monetária ultrapassaria R$ 400 mil – teria de vender minha casa e ainda ficaria devendo?, calcula Moraes. A conseqüência, diz ele, seria o fechamento do jornal. O caso ainda tramita na Justiça.

Para Mesquita, além do risco da falência de empresas jornalísticas, as decisões judiciais podem passar também a pôr em risco a própria isenção e a liberdade de imprensa. ?Se o veículo ou o próprio jornalista começar a ter medo de fazer uma cobertura forte, verdadeira, por conta do risco de que isso possa vir a gerar uma causa contra ele, pode começar a fazer uma autocensura, o que é extremamente negativo para a cidadania e para a liberdade de expressão.?

Mecanismos – O número de processos por danos morais – que hoje atinge cerca de 50% dos associados da ANJ – cresce desde 1988, na avaliação de Mesquita, justamente pela falta de um teto. A associação tem defendido – muitas vezes com sucesso – que os juízes levem em consideração a regra do teto para as indenizações. Antes da alteração promovida pela Constituição de 1988, o teto era equivalente a 200 salários mínimos.

O seminário não é o primeiro promovido pela ANJ para debater imprensa e legislação. A associação já se reuniu com a Justiça eleitoral para esclarecer dúvidas acerca da lei eleitoral e para defender uma cobertura mais aberta nas campanhas deste ano. Mesquita defende o diálogo com o Poder Judiciário e também com o Legislativo para a criação de mecanismos que ?de um lado defendam o direito à privacidade e, ao mesmo tempo, o direito do cidadão de ser informado?.

Para o juiz Héctor Valverde Santana, diretor-geral da Escola da Magistratura do Distrito Federal, o seminário servirá para que profissionais dos dois segmentos tratem de questões que têm em comum, como o limite entre a liberdade de informar e o direito à privacidade, imagem e honra, os chamados direitos da personalidade.

O Seminário Nacional Imprensa e Dano Moral será no auditório do Ministério Público do Distrito Federal e Territórios. O evento será dividido em cinco painéis: Democracia e Liberdade; A Tutela Constitucional da Intimidade, da Vida Privada, da Honra e da Imagem; A Lei 5250/67; Responsabilidade Civil em Face da Imprensa e Imprensa e Responsabilidade Penal. Entre os participantes e palestrantes estarão o presidente do Supremo Tribunal Federal, Marco Aurélio Mello, o desembargador Mário Machado, presidente da Associação dos Magistrados do DF, ministros do Superior Tribunal de Justiça e jornalistas como José Nêumanne Pinto, do Jornal da Tarde, Luiz Garcia, de O Globo, e Marcelo Beraba, da Folha de S. Paulo."