Thursday, 10 de October de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1309

Luís Nassif

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VALE-TUDO

"A marcha da insensatez", copyright Folha de S. Paulo, 25/05/01

"O filósofo José Arthur Giannotti espantou-se com o irracionalismo que tomou conta da discussão política. A catarse, o clima de linchamento domina até intelectuais orgânicos, habituados a pensar, diz ele. No entanto as raízes dessa crise de irracionalidade, de ódio cego e meio sem rumo, foram plantadas pelo próprio FHC, especialmente nos anos de 1998 e 1999.

Em 1998 tinha-se uma política econômica equivocada, com o grande erro do câmbio. É verdade que o país avançava em várias frentes, fincava as bases do novo modelo de Estado -que vai vigorar para as próximas décadas, com frutos positivos, saliente-se-, mas no plano imediato o câmbio provocava uma ampla e inútil destruição no aparelho produtivo.

Para se defender das críticas, FHC tornou o debate ideológico, usou das mesmas armas da irracionalidade que hoje se voltam contra. Apossou-se do título de condutor de povos, de arauto da razão, e passou a utilizar a força do slogan contra toda crítica. Tinha os olhos voltados exclusivamente para a opinião pública internacional. Toda manifestação interna era tratada com supremo desprezo, como se ele fosse a única ilha de racionalidade em um país de botocudos.

Quem diz que FHC tem pendor autoritário mente. Mas a força política que angariou, com o pacto partidário que o sustentava, e sua credibilidade -de arauto da razão- praticamente esmagaram a oposição naquele período. Escrevi na época que, como um presidente intelectual, FHC não podia tirar todo o oxigênio da oposição, ainda que o tivesse feito recorrendo exclusivamente a instrumentos democráticos.

O sonho acabou com a explosão cambial, em janeiro de 1999. E aí FHC cometeu o maior erro político que um governante poderia cometer: não fez a autocrítica. A autocrítica o humanizaria e lhe permitiria refazer o caminho, especialmente junto a um povo que historicamente sempre viveu de esperanças.

Pelo contrário, em menos de uma semana mudou radicalmente o discurso. Passou a ironizar os seus próprios seguidores, aqueles que, repetindo suas palavras, diziam que a mudança do câmbio representaria o atraso. Pior: não houve um culpado, uma demissão, nada que passasse à opinião pública a grandeza do arrependimento.

Não foi apenas uma derrota de FHC, mas de todos aqueles que tentavam pensar racionalmente, fora do radicalismo irracional que hoje em dia tomou conta do país. Racionais de esquerda -como Tarso Genro- rapidamente tiveram que radicalizar, para não perder espaço político. O mesmo ocorreu em todo o espectro partidário. Cantei, na época, que o espaço estava aberto para a volta do populismo.

FHC era um imperador respeitado, jamais amado. Sua legitimidade decorria de sua racionalidade, tratada como um fetiche. No país do Carnaval até a racionalidade é tratada com superstição. FHC era ?o? racional, ?o? modernizador, logo todas as suas atitudes eram automaticamente racionais e modernizadoras.

Perante a opinião pública, sua derrota significou a derrota da racionalidade. Não se separavam mais alhos de bugalhos. Em todos os campos abriu-se espaço para os ?catárticos?, os que pensam com o fígado e estimulam todas as formas de linchamento, menos contra seus aliados.

Escrevi, na época, que o tempo político de FHC se esgotara com aquele episódio. Havia até certo exagero. Uma eventual recuperação da economia poderia reabilitá-lo. Com a crise de energia, contudo, essa possibilidade se esgota.

E como fica agora? Em nome desse ódio irracional contra FHC, vai-se permitir que a estabilidade seja destruída, que o oportunismo campeie, que a irracionalidade tome conta de tudo, que a ficção substitua o jornalismo, que, a pretexto de atingir FHC, se afete todo o país?

Diariamente o país está se dando tiros no próprio pé. As denúncias foram substituídas por cascatas inacreditáveis, por exercício de ficção sem paralelo na história recente da imprensa, chacoalhando mercados, aumentando o ?custo Brasil?, afugentando os investidores. Qualquer tentativa de introjetar bom senso no debate político é fuzilada pelos oportunistas da unanimidade.

Não tem país que resista a essa dose de insanidade."

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