Saturday, 27 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1285

Mais uma autora esquecida

POEMAS INFAMES

Deonísio da Silva (*)


"A coleira que me passaram em volta do pescoço irrita-me nessa noite de luar. Na realidade, não sou além da projeção enjaulada de uma genialidade inconsciente. Mas sou uma existência!"


O conto chamava-se "O Elo". Sua autora, Maria Odete Olsen tinha pouco mais de vinte anos e era a grande revelação de concurso literário promovido pela Fundação Catarinense de Cultura, em 1979.

Demonstrou desde os verdes anos um domínio técnico invejável em poesia e em narrativas curtas. Deverá ter contribuído para o ofício o duro batente de jornalista, em que se empenha desde a adolescência ? primeiro no Jornal de Santa Catarina, em Blumenau, e depois na televisão, onde atualmente apresenta programas que incluem entrevistas com convidados.

Mas como ocorre a outros escritores do Brasil meridional, é freqüentemente esquecida, inclusive por seus conterrâneos. Tal atitude, aliás, é recorrente na literatura brasileira. Os Estados aguardam que o eixo Rio-São Paulo consagre os talentos para só então reconhecê-los. Há dois estados que representam solitárias exceções no panorama nacional. São a Bahia e o Rio Grande do Sul. Esses trazem os seus valores, apresentando-os e proclamando-os, fazendo valer o reconhecimento da terra natal. Durante largo tempo o Brasil procedeu do mesmo modo e ainda hoje apresenta restos dessa concepção, haja visto o destaque que as editoras nacionais dão às traduções de autores que são importantes pelo que escrevem aqui, não por terem saído em outros países. Aliás, às vezes a traduções não conseguem trazer o pretendido holofote.

Pois Maria Odete Olsen está com novo livro na praça. E é colega de catálogo do ex-presidente Fernando Henrique Cardoso numa editora, a Insular, marcada por livros bem cuidados. O livro, um belo projeto gráfico e editorial, tem por título Poemas Infames: sentimentos e algumas impropriedades. É um livro bonito antes de começar a ser lido. Depois fica muito mais. Fotos de Lair Leoni Bernardoni e Rosane Lima quase enfeitiçam o projeto gráfico de Carlos Alberto Serrao e as vinhetas de Ney Vidal Filho. O editor responsável, Nelson Rolim de Moura, é o que se pode chamar tautologicamente de editor responsável, pois soube reunir uma competente equipe para cuidar desse livro.

Verso bonito

Maria Odete Olsen diz, entrediz, sussurra ou grita o que tem a expressar, de acordo com o que pretende despertar. Na dedicatória, já deixa vislumbrar as primeiras heresias: "É um livro que dedico às mulheres que vivem ou viveram suas transições pessoais com verdade e intensidade, sem o temor de soltar, encarar ou domar seus anjos e demônios". Como diz Sérgio da Costa Ramos num texto sugestivamente denominado "Madona do Verso", sua poesia lembra em alguns trechos a inquietação que marcou um de nossos grandes poetas, precocemente falecido, o também catarinense Lindolf Bell.

São marcas dessa escritora a sensualidade e a ousadia frente aos seculares impedimentos impostos à condição feminina, dos quais poucas se libertaram, pois tivemos e temos em nossas escritoras, não raro, uma submissão à escrita dos homens, o que resulta em perda na arte de intuir e expressar, pois a espécie tem suas sutis complexidades. E alguns fenômenos somente elas podem expressar com a devida autenticidade.

Vejamos algumas amostras. Ao lado de um texto de Françoise Sagan, que certamente lhe serviu de inspiração, lemos em "Solitudes":


"Ah como o cérebro é opressor impiedoso e inacessível/ como é deprimente saber-se instrumento de diálogos internos/ a voz de dentro que empurra ao mesmo tempo que retém/ assim vivi o momento refém de mim e de outros/ nas fotos nos quadros e nas violetas que voltam a florir no inverno!"


Ao lado de autores experientes e consagrados, como Salim Miguel, Eglê Malheiros e Adolfo Boos Jr, a escritora inclui-se numa geração intermediária onde despontam nomes como o de Sérgio da Costa Ramos, um dos maiores cronistas brasileiros ? em atividade diária na imprensa, no Diário Catarinense, de Florianópolis. À semelhança de Sérgio, faz do jornalismo, especialmente do telejornalismo (no caso de Maria Odete Olsen) uma espécie de oficina de experimentação, meio de aperfeiçoar também a arte de escrever.

Para finalizar, mais pequena amostra, de "Predadora":


"Não importa como se move o vulto/ se homem mulher ou bicho/ não importa o signo do ideário louco/ que nas colunas induzem apetites cheiros e padrões".


Maria Odete Olsen andou à beira de terríveis abismos para escrever esse livro. Sempre que a vulgaridade, vizinha da ousadia, ameaçou entrar em seu texto, ela soube onde refugiar-se: no exemplo dos mestres literários que abriram corajosamente outros caminhos para a contida expressão das sexualidades em nossas letras, freqüentemente submissas ao projeto catequético dos jesuítas tantos séculos depois.

Poemas Infames: sentimentos e algumas impropriedades é um feitiço literário, um livro apaixonante, daqueles que compramos nas livrarias para dar de presente a amigos que sabem degustar um verso bonito, um achado, um novo mirante para interpretar nossa humana condição. Os versos vêm acompanhados de um desabrido depoimento da autora em forma de posfácio, contando como chegou ao gosto da leitura e como têm sido seus passos pelo jornalismo, desde há alguns anos pelo telejornalismo.

(*) Escritor, doutor em Letras pela USP, escreve semanalmente neste espaço; seus livros mais recentes são A Vida íntima das palavras, A melhor amiga do lobo e Os segredos do baú