Sunday, 06 de October de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1308

Marcelo Coelho

REALITY SHOWS

"Um banquete de lesmas, minhocas e escargôs", copyright Folha de S. Paulo, 24/04/02

"Se alguém começasse a comer centopéias e baratas num balcão de lanchonete, haveria certamente uma revolta. No mínimo, o engraçadinho seria expulso do local. Claro que ninguém aguentaria ver aquilo de perto. É repugnante demais. Por que esse tipo de cena faz sucesso na televisão?

Escrevi em outro artigo que qualquer coisa faz sucesso na televisão, desde que cumpra o objetivo básico de nos imbecilizar sempre mais. A burrice é um bem de primeira necessidade.

Poderiam mostrar só a centopéia -e a mera irradiação luminosa e rítmica da tela já é capaz de prender a atenção, de fascinar o lado invertebrado do psiquismo humano.

Preferem mostrar pessoas comendo a pobrezinha. O mais significativo em programas como ?Hipertensão?, ?Descontrole? ou ?Prova do Banquete? não é a nojeira explícita nem o grau de abjeção moral a que chegam seus participantes e apresentadores.

Já imaginou se fossem mendigos? Pessoas de fato morrendo de fome? Fica aqui a idéia para os executivos da Globo, da Band, do SBT.

O fascinante é que não se trata disso. Os candidatos se prestam voluntariamente a comer toda a porcariada. Claro, há um prêmio em dinheiro. Mas há outra coisa em jogo nesse espetáculo.

A cena de uma pessoa normal engolindo insetos asquerosos é uma metáfora do próprio público, que passa o dia inteiro consumindo coisas intragáveis na televisão.

O apresentador servindo lixo para quem quiser engolir: eis a essência de toda a TV, não só da ?Prova do Banquete?. Esses programas são pura metalinguagem.

E o verdadeiro ?show? não está no fato de alguém comer uma barata. O que se celebra, o que se espetaculariza, é o poder da própria televisão.

?Somos capazes?, parecem dizer as emissoras, ?de fazer um indivíduo andar de quatro, humilhar-se, ganir, chorar ou lamber o chão das mais variadas formas?. Seja estapeando-se numa briga doméstica transmitida ao vivo, seja na dança frenética da menina de cinco anos no programa de calouros, seja na vaidosa burrice da apresentadora sirigaita, seja no ?drama humano? da novela, cuja vilã de plantão conta com a inacreditável estupidez de suas vítimas, seja na cena do cidadão comendo insetos, o grande fascínio da TV está justamente na dominação brutal que exerce sobre todos os envolvidos -público e artistas igualmente.

Nada pior, nesse sentido, e nada mais verdadeiro também do que o argumento do ?profissionalismo? que todos os funcionários da TV invocam nessas ocasiões. O apresentador bem educado, o grande ator que aparece na novela infame, até a nutricionista -sim, há uma nutricionista zelando pela higiene da centopéia-, ninguém ignora o absurdo de que participa. Do faxineiro que limpa o vômito do palco ao principal executivo da emissora, todos são profissionais. Até o público é ?profissional?: liga a televisão como quem se entrega à mais tediosa rotina.

Todos estão submetidos a uma máquina gigantesca, e o assunto básico da TV é essa mesma submissão. Não havia ?reality shows? nem gincanas de baixaria quando Adorno e Horkheimer escreveram ?A Dialética do Esclarecimento?, mas vale citar uma frase do livro. ?Assim como o Pato Donald nos cartuns, também os desgraçados na vida real recebem a sua sova para que os espectadores possam se acostumar com a que eles próprios recebem.?

Não é exatamente o fascismo, mas é parecido. Uma espécie de fascismo eufórico, de fascismo cor-de-rosa, de fascismo da ?animação?, e não do fanatismo; fascismo de auditório, não de desfile militar. Joga-se com o prazer de ver alguém sendo oprimido, para que se esqueça a opressão sofrida.

Mas que opressão? Não estão todos lá ?porque querem?? E o público não assiste ?porque quer?? É assim que o espetáculo da opressão se traveste no tão famoso ?consenso liberal?.

Os franceses, célebres pelo refinamento de sua culinária, puseram Le Pen no segundo turno das eleições presidenciais. É verdade que eles comem escargô e carne levemente apodrecida, mas isso não vem ao caso.

Não se pode nunca menosprezar o espírito de porco da população, e isso não vale apenas para a França, onde essa característica é tida e havida como das mais conspícuas. Mas o fenômeno é mais amplo.

A extrema direita tende a se apresentar como alternativa à globalização. Direita liberal e esquerda democrática mais ou menos se identificaram com o internacionalismo de mercado; seus discursos se confundem, e as bandeiras nacionalistas retornam, como nos anos 30, para as mãos da extrema direita.

Pode-se denunciar, com toda a razão, a falsidade da utopia high-tech, a superfície brilhante de uma globalização de shopping center.

Mas é tipicamente fascista condenar os males do liberalismo atacando as vítimas do sistema. O discurso de Le Pen ataca os imigrantes africanos, árabes, asiáticos etc. Para esses povos -exatamente aqueles que a globalização deixa de fora-, o nacionalismo de direita reserva ódio, preconceito e repressão.

É mais atraente ver o outro se dando mal do que esperar que tudo melhore para todos. Uma pessoa comendo baratas na televisão atrai mais do que o melhor telecurso do segundo grau. E, se ainda dão dinheiro para quem come baratas, honra ao mérito! Fica comprovado que vivemos num sistema social profundamente justo e equitativo."

 

?TV Lixo?, copyright Diário de Pernambuco, 18/04/02

"Meu televisor foi um dos 24 em cada cem que não estavam ligados no episódio final do Big Brother Brazil. Pertenço à minoria silenciosa que escolhe outros lazeres em vez da programação que os analistas já definem como TV Lixo.

Dou prioridade às convivências afetivas, leituras interessantes e alguns programas e filmes da TV por assinatura que estimulam neurônios, ampliam horizontes e enriquecem o espírito. Não sinto necessidade nem disposição para brechar o Big Brother (que vem aí em segunda edição), ou visitar a Casa dos Artistas. Não tenho sequer interesse acadêmico em estudar a porcaria, assim designada pelo sociólogo Roberto Martins (DP, 11/4/2002, p.A-3). Talvez aceitasse analisar o discurso desses reality shows e outras banalidades televisadas, se regiamente paga. Financiaria meu sonho de percorrer a Holanda de bicicleta.

Em comentário nesta página (DP, 7/4/2002), Ricardo Leitão referiu-se às ?receitas de exibicionismo e toques de canalhice explícita? usadas pela TV Globo e outras emissoras para aumentar o faturamento publicitário que as sustenta. Para os peritos do marketing, altos índices de audiência autorizam conteúdos macabros, escabrosos, violência física e psíquica, grossura, deboche. Baixar o nível dos programas tornou-se uma política empresarial. Mas os minguados horários de telecursos e raras entrevistas esclarecedoras não são suficientes como cumprimento da responsabilidade social que essas empresas nos devem.

De um imediatismo crasso, administradores de TV e patrocinadores podem ser muito machos no faturamento, mas são carentes de bom gosto, decência e visão. Ao insistir na fórmula da TV Lixo, estimulam o pior nos telespectadores, contribuindo irresponsavelmente para a verminose das mentes e a avitaminose dos espíritos – péssimos ingredientes de cidadania. Bem diferente da contribuição de adultos responsáveis da Escola Arco-Íris (fone 3271-2485), onde é ministrada a disciplina Educação para a Leitura da Mídia, buscando formar a consciência crítica dos alunos de 11 a 13 anos para os conteúdos da comunicação de massa.

Estou entre os que não conseguem ligar-se nos reality shows e outras baboseiras. Fui irremediavelmente marcada por adultos vigilantes e amorosos que me encaminharam para outras curtições naquela tenra idade em que se capta o belo e o feio, com exemplos; a boa ou má qualidade, com experiências; o edificante ou degradante, com explicações. Não me esconderam as maldades e fealdades da vida, mas me expuseram sistematicamente a outros mundos de fantasia e de lazer. Impeliram-me habilidosamente a ampliar escolhas para longe do vil e do banal. Faltou esse tipo de adulto na tenra idade de muita gente que hoje se alimenta da TV Lixo, seja telespectador, empresário de televisão ou anunciante. Independentemente de classe social, tudo é uma questão de educação, bem cedo e ao longo da vida."

Jornalista e analista de discurso

 

"Estréia em massa de shows da vida testa a sobrevivência do gênero", copyright Cidade Biz (www.cidadebiz.com.br), 26/04/02

"A estréia conjunta de três reality shows neste final de semana, Fama e Amor a Bordo, na Globo, e Popstars, no SBT, põe em teste a sobrevivência do gênero. Se consagrados pelo público, têm tudo para durar. Se não alcançarem boa audiência, porém, podem sinalizar o cansaço da fórmula junto ao telespectador brasileiro.

Para o publicitário Duílio Malfatti, da agência DuezT, que vem acompanhando com os olhos do marketing o sucesso do gênero no país, o desgaste da fórmula é iminente, e deve ocorrer no médio prazo. ?O gênero permanece por mais um tempo, com garantia de anunciantes, até porque o brasileiro adora saber da vida dos outros, gosta de uma fofoca, mas depois vai cansar?, aposta.

Só neste início de ano, de acordo com números da Abap, a Associação Brasileira das Agências de Publicidade, os reality shows já movimentaram mais de R$ 100 milhões. ?Há muito merchandising?, lembra Malfatti.

Com visão diferente, o crítico de tevê da revista Época, Gabriel Priolli, acredita que o gênero veio pra ficar, assim como as clássicas fórmulas da telenovela e do show de calouros, sucesso desde a época do rádio.

A produtora do Vitrine, da TV Cultura, Sula Vlacho, é da mesma opinião. ?Acho que o gênero agüenta. Ultimamente o brasileiro não tem exigido muita qualidade da tevê, e as emissoras têm gastado milhões e milhões na produção de novos programas.?

?O show da vida é o primeiro gênero televisivo depois do surgimento da internet?, diz Priolli. ?Aliás, ele é filho da web, é fruto das webcams?, fala, lembrando de atrações de sucesso na mídia digital como a Casa da Janaína, do site Morango, em que a modelo Janaína pode ser observada pela tela do computador 24 horas por dia, quando troca de roupa ou se encontra com o namorado.

Só que, para permanecer no ar, diz Priolli, serão precisos novos formatos. Assim como No Limite se desgastou, o formato de Casa dos Artistas e Big Brother Brasil já está dando o que tinha que dar. Malfatti concorda e descarta até uma terceira edição de Casa.

?Reality show não é uma onda?, avalia o crítico. Ela atende uma demanda surgida com a internet de interatividade e interação, que faz o telespectador se sentir dentro do programa. Além disso, acredita Priolli, a tevê não tem memória. Ela só existe no presente para a maioria das pessoas. ?Quem se lembra da Elaine do No Limite??, desafia.

?A atração perdeu a graça. Silvio Santos joga com a idéia de lançar uma terceira versão, para ver como reage o público, mas eu acho difícil que invista nisso. A receita publicitária com certeza seria muito inferior à de Casa 2.?

Para os três, Sula, Priolli e Malfatti, Casa 2 só não decolou como Casa 1 por causa da má condução feita por Silvio Santos. ?Ele mudou muito as regras, não havia regulamento definido, era um entra-e-sai constante de gente, o público cansou?, resume Sula."