Monday, 29 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1285

Maria Rita Kehl

DOMINGO ILEGAL

“Quem é o responsável pela (falta de) ética na televisão?”, copyright Aol Notícias (www.aol.com.br), 40/09/03

“O caso da reportagem falsificada que foi ao ar no ?Domingo Legal? do dia 7 de setembro ainda merece discussão. O apresentador Gugu Liberato vem se defendendo sob a alegação de que desconhecia o conteúdo da fita. Não ficou claro o que foi que Gugu ignorava que estava transmitindo para mais de dois milhões de telespectadores da Grande São Paulo – esta era a média de audiência do SBT no horário, até o dia sete. Ele não sabia que a reportagem era uma entrevista com dois supostos membros do PCC ou não sabia que os bandidos eram falsificados?

A ambigüidade instaura duas falsas questões sobre o caso. Fica subentendido que, primeiro: se a entrevista fosse verdadeira, ainda que o apresentador só conhecesse o conteúdo violento da fita ao expor seus espectadores a ela, não haveria problema em transmiti-la ao vivo no horário de domingo à tarde. O que já é bastante discutível. Segundo: o apresentador não passa de um boneco sorridente a serviço do Ibope, portanto não pode ser responsabilizado quanto ao conteúdo das reportagens que veicula em seu programa.

As duas hipóteses conduzem a duas perguntas que, estas sim, interessam a toda a sociedade: Uma: quem é responsável pelo conteúdo da programação televisiva? Duas: qual o poder de interferência dos telespectadores sobre um assunto que os afeta diretamente?

A primeira pergunta é mais complicada de responder: os atores das telenovelas, por exemplo, não podem ser responsabilizados pelo que dizem nos textos de ficção estabelecidos pelos roteiristas; ou pelas mentiras que professam na publicidade. Mas o apresentador de um programa transmitido ao vivo teria a obrigação moral de estar informado sobre o que está colocando no ar. Principalmente quando, como no caso de Gugu (ou de Faustão, na Globo) o programa é todo dele. Se ele conhecia o teor da gravação, deve responder pela decisão de transmiti-la. Se não conhecia, pior: é responsável por transmitir ao vivo (insisto), cenas cujo teor ético, ou antiético, ignora. Os espectadores que arquem com as conseqüências de tais fatos consumados.

Por incrível que pareça a segunda pergunta, aparentemente mais difícil, foi respondida de maneira saudável pela sociedade: a audiência do último ?Domingo Legal? caiu nove pontos em relação à do dia 14 de setembro (dia 21 o programa esteve suspenso em obediência a uma liminar da Polícia Federal). Foram 14 pontos no Ibope contra 23 do dia 14/9, o que representou uma queda de 15% no faturamento do SBT: de cerca de R$ 750 mil para R$ 632 mil . Os merchandisings feitos pelo próprio Liberato durante o programa também tiveram uma ligeira queda no domingo passado. A reação do público contra os abusos cometidos pelo apresentador (ou pela direção do programa? Ou pela reportagem? Ou pela emissora? Quem se responsabiliza, afinal?) é mais eficaz do que qualquer medida judicial. Ela significa que uma parcela dos telespectadores não gosta de ser explorada pelas emissoras de televisão.

Explorada, sim. Na sua boa fé, já que uma entrevista de cunho aparentemente jornalístico foi falsificada. Mais grave seria a exploração caso a reportagem fosse verdadeira: significa que uma emissora de televisão, concessão pública que deve atender aos interesses da sociedade, estaria se prestando ao papel de porta voz de criminosos, transmitindo suas ameaças e legitimando o poder paralelo que eles dizem representar. ?Ele tem família, tem filho, e é o seguinte, vai ser mesmo só bala na cabeça. A gente não tá pra brincadeira, certo? E é só isso que eu tenho pra falar?, disse um dos encapuzados, ameaçando de morte o apresentador de um programa de emissora concorrente do SBT e espalhando (mais) medo por todo o país. A exploração telejornalística do medo, aliás, não é exclusividade do SBT.

A sociedade brasileira, representada pelo Estado, é a verdadeira proprietária das concessões de radiodifusão de som e imagem, e não deve permitir violações da Constituição por parte das emissoras. A queda na audiência e no faturamento da emissora foi uma resposta decisiva e democrática a tais abusos, cuja contrapartida judicial foi a suspensão do programa no dia 21 de setembro. O Ministro da Justiça, Márcio Thomaz Bastos, pronunciou-se contra a ação do Ministério Público Federal que tirou do ar o ?Domingo Legal? do dia 21 de setembro, alegando ser avesso a qualquer forma de censura prévia. Não sei se o Ministro teve tempo de acompanhar com atenção o incidente. Volto a reafirmar o que escrevi na semana passada: a punição pelas impropriedades cometidas por um meio de comunicação não deve ser confundida com a censura prévia, que já foi abolida no Brasil. O programa do dia 21 não foi suspenso devido a seu conteúdo, que pode ser veiculado outro dia, mas para que a emissora pagasse pela violação constitucional. Em nota explicativa à imprensa (que não vi reproduzida em nenhum jornal ou revista), o Ministério Público esclarece que ?a suspensão de determinado programa televisivo por violar a Constituição é uma das medidas possíveis? para fazer com que se cumpra a Lei. Não se trata de ?punição antes do exercício do direito de defesa?. ?A nossa legislação processual admite amplamente a antecipação dos efeitos da decisão judicial, quando houve risco de dano irreparável? (grifo meu).

A nota lembra o artigo 221 da Constituição brasileira, afirmando que ?…as empresas privadas são apenas concessionárias e devem cumprir a finalidade pública da concessão, evitando que a busca do lucro e da audiência ofendam os direitos fundamentais e a dignidade da pessoa humana?. Por fim, os procuradores enfatizam que a mesma Constituição que proíbe a censura, ?estabeleceu os valores a que as redes de televisão devem obediência?. O Procurador Geral da República Claudio Fonteles também emitiu nota afirmando que a suspensão de uma edição do programa de Gugu Liberato não tem o caráter de censura, mas de punição por desobediência aos princípios estabelecidos pela Constituição de 1988.

Mais grave do que o erro cometido pelo apresentador do ?Domingo Legal? de sete de setembro são suas tentativas de livrar a cara no velho estilo do ?jeitinho brasileiro?, com as quais dá (mau) exemplo público de falta de vergonha. Liberato não apenas recusa sua responsabilidade no caso como vem tentando tirar proveito da condição de vítima junto a seus fãs. Ao prestar depoimento no Deic, tentou se valer de uma suposta ?amizade? com o governador Geraldo Alckmin. Em seu programa do dia 28, mencionou ter recebido centenas de telegramas de apoio e amizade, dentre os quais um do publicitário Duda Mendonça e um telefonema carinhoso do senador Aloizio Mercadante. Não sei o que diz Duda Mendonça. Mas o governador de São Paulo negou amizade pessoal com Gugu. E Mercadante disse aos jornais que telefonou para aconselhar o apresentador a reconhecer seu erro. Maria Rita Kehl é poeta e psicanalista”

“A sociedade contra a TV”, copyright Folha de S. Paulo, 5/10/03

“Uma emissão televisiva local ou global tem hoje o poder de provocar uma comoção social. Medo, revolta, celebração e protesto que, em diferentes escalas, sinalizam para um difícil campo de batalha: a disputa pela reapropriação pública de um bem coletivo, a televisão, e a constituição de uma ?política do simbólico?. A encenação hiper-realista do ?Domingo Legal?, do SBT, com uma dupla de ?atores-criminosos? usando óculos escuros de grife sobre um capuz negro, revólver 38 na mão e ameaçando de morte apresentadores de televisão, políticos e figuras públicas, expõe uma comunicação sinistra que é a base de vários outros programas de TV sensacionalistas que têm como estímulo a violência e o fait divers. Por que um serviço que é concessão pública abre espaço para criminosos (verdadeiros ou falsos) fazerem sua ?comunicação? em rede nacional? Estamos diante de fragmentos de uma narrativa global excitante, como as imagens de Bin Laden, nos seus áudios e videotapes pré-gravados para a TV Al Jazeera, ou os vídeos com mensagens de Saddam Hussein, ?provando? que está vivo e é perigoso. Duas ?comunicações? até mesmo ?brandas? se comparadas à violência da encenação brasileira. As últimas fitas de Bin Laden, sem informações de data ou local onde são feitas, têm mostrado um homem envelhecido andando em uma região montanhosa com um cajado ou um rifle como apoio. A questão, claro, é como essa ?comunicação? é reinterpretada no imaginário global, pois, a cada fita divulgada, especialistas da CIA buscam decifrar mensagens secretas do líder da Al Qaeda e desdobrar sua aparição virtual em possíveis represálias, atentados e ondas de terror nos EUA e no mundo. Todo um discurso difuso, terrorismo de Estado, nas suas demandas por mais controle social e confrontos, reforçadas a cada nova emissão da rede árabe. Na emissão brasileira, a logística de Estado parece ausente, o terrorismo midiático tendo como objetivo a si mesmo: a audiência e a comercialização do imaginário do terror como alavancador de lucros imediatos. O que essas imagens vendem é o terror em estado puro (simbólico) e também um medo difuso comercializado com a admiração, fascínio e respeito por certos tipos sociais -violentos, agressivos, desviantes, perigosos e capazes de demonstrar poder. O criminoso erigido como modelo midiático global, capaz de produzir a comoção impotente da audiência: ?Quando a gente pegar ele [Marcelo Rezende, apresentador da Rede TV!], vai ver só. É isso aqui, oh: [neste momento o falso criminoso do PCC exibe um revólver calibre 38 para a câmera] bala na cabeça, só na testa? (trecho da entrevista do ?Domingo Legal?). É essa estratégia de captura da atenção do telespectador que vem sendo utilizada de forma abusiva pela televisão brasileira. Uma entrevista sensacionalista de outro assassino, no ?Fantástico?, da Globo, tempos atrás, transformava o ?maníaco do parque? em ?pop star? e criminoso paranormal e poderia suscitar os mesmos protestos atuais, mesmo em se tratando de um assassino real, francamente demonizado na edição para parecer ainda mais extravagante, terrível e ?fantástico?. Nessa combinação de ficção, jornalismo, fabulação e dramatização, os teleshows da realidade (?Cidade Alerta?, ?Repórter Cidadão?, ?Programa do Ratinho?, ?Domingo Legal?, mas também o ?Linha Direta?, da Globo) fazem não apenas uma espécie de teatralização e espetacularização do terror e da insegurança social, mas reforçam discursos bélicos, o racismo, o denuncismo e toda sorte de pregação moralizante, que inclui frequentemente apologia à pena de morte, ao justiçamento e linchamento, aos preconceitos de toda ordem, num discurso obscurantista e populista. Funcionam ainda como telenovelas do real, com a dramatização do cotidiano da classe média baixa e pobre, mantendo uma relação direta e histórica com a estética do folhetim, da radionovela, do circo e do melodrama. Ironicamente, enquanto o jornalismo se vale da ficção para reforçar o terror social, são as telenovelas que, com todas as ambiguidades, intervêm nos costumes de forma didática, num ?show? de cidadania e numa cruzada iluminista que esclarece sobre drogas, homossexualismo, violência doméstica, ecologia, armas, preconceito racial, numa eficiente reforma dos costumes que pauta o Congresso (a campanha do desarmamento em ?Mulheres Apaixonadas?, repercutindo contra o lobby da indústria de armas) e chega até os movimentos sociais. Nos dois casos, o show de ética e cidadania ou o terrorismo de mídia, o que parece estar em questão é o imediatismo do espetáculo e no máximo a satisfação individual, mais que uma política do comum, ampla, constituinte e democratizante. A idéia de uma cidadania pela mídia -com prestação de serviços, informações de interesse coletivo, formação de ?redes? de auxílio material, psicológico, emocional etc.- por enquanto é a face de um incipiente populismo de mercado, mas que guarda uma potência de transformação. Pois o regime de pilhagem sobre o corpo social segue difuso até que este proteste, caia extenuado ou se aproprie de um dos mais importantes bens públicos: política do simbólico que não será feita esperando-se uma autoregulamentação das próprias TVs (mesmo jornalistas esclarecidos protestaram contra a ?censura? do Ministério Público, que puniu a emissora tirando o programa ?Domingo Legal? do ar por um dia).

Queimar o filme

Para além do corporativismo, a emissão pelo SBT da falsa entrevista com ameaças de morte a figuras públicas conseguiu reunir, numa onda de protestos, atores sociais díspares: o Ministério Público, que puniu o SBT com a suspensão, os jornalistas ameaçados, televisões concorrentes, telespectadores indignados, anunciantes, políticos, jornalistas e, grande ironia, também os verdadeiros criminosos. A ?cúpula? do Primeiro Comando da Capital (PCC), facção criminosa que, com ajuda da TV, entra no folclore urbano, ficou ?revoltada? com a televisão por ?expor? e ?queimar? sua imagem em rede nacional, eles também detentores de um capital simbólico.

É preciso ?lutar no nível linguístico-simbólico? (Naomi Klein, Antonio Negri): é a mesma política do simbólico que levou o sindicato das empregadas domésticas a entrar com uma ação contra a exibição pela rede Globo de uma cena em que Zilda, empregada doméstica negra, teria relações sexuais com um garoto de classe média branco, Carlinhos, na novela ?Mulheres Apaixonadas?.

A crítica radical da comercialização do imaginário social, seu uso meramente capitalista, torna a colocar uma questão importante: qual o poder do consumidor sobre o produtor? Os telespectadores vigilantes desses fragmentos de uma narrativa global já perceberam que a política televisiva tem como objeto seus bens mais preciosos: desejos, imaginários, estilos de vida. Buscam capitalizar o imaterial… E essa caça à atenção do telespectador não é uma questão individual, como fazem crer os apresentadores (não desligue, não mude de canal, não saia da poltrona…), trata-se de uma dimensão maciça e coletiva da política cultural televisiva, que deve ser pensada e regulada socialmente. Entre as novas lutas no interior do capitalismo midiático parece chegado o momento de colocar a sociedade contra a TV, não para criticá-la externamente, de forma moralizante ou apocalíptica. Mas, idéia bem mais perturbadora, tomar posse dela, para se tornar mídia, tornar realmente pública e comum a grande indústria do social. (Ivana Bentes é professora da Escola de Comunicação da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), autora de ?Joaquim Pedro de Andrade? (ed. Relume-Dumará) e organizadora de ?Cartas ao Mundo? (Companhia das Letras).)”

“Gugu volta ao ?ranking da baixaria?, em 2?”, copyright Folha de S. Paulo, 3/10/03

“O quarto ?ranking da baixaria?, que será divulgado hoje pela campanha Quem Financia a Baixaria É contra a Cidadania, traz o ?Domingo Legal?, do SBT, em segundo lugar, com 75 ?denúncias? de um total de 747 colhidas entre 18 de junho e 23 de setembro.

O programa de Gugu Liberato ficou fora do terceiro ranking (julho), após o apresentador se comprometer a fazer mudanças. Está de volta por ter exibido falsa entrevista com ?membros? do PCC no último dia 7, por ?apologia ao crime, apelo sexual e desrespeito aos valores éticos e morais?.

João Kléber, que fez acordo semelhante ao de Gugu, foi excluído do ranking, que é liderado pela primeira vez pelo ?Programa do Ratinho?, com 107 reclamações.

Seis programas da Globo estão na nova lista. Com 61 denúncias, a novela das sete, ?Kubanacan?, aparece em terceiro, seguida por ?Mulheres Apaixonadas? (56), por ?apelo sexual?. ?Casseta & Planeta? ficou em sexto lugar, o ?Domingão do Faustão? em sétimo, ?Agora É que São Elas? em nono e ?Malhação?, em décimo. Completam a lista ?Hora da Verdade? (Band, quinto lugar) e ?Cidade Alerta? (Record, sétimo).

As assessorias de Gugu, Ratinho, Band e Record não comentaram. Luís Erlanger, porta-voz da Globo, diz que o ranking ?mostra o quanto a Globo tem qualidade?. ?É vista por 60 milhões de pessoas e o programa mais citado teve apenas 61 reclamações?, afirmou.”

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“Bicudo pede ação contra Silvio Santos”, copyright Folha de S. Paulo, 1/10/03

“O vice-prefeito de São Paulo, Hélio Bicudo, 81, entrou ontem com representação no Ministério Público do Estado de São Paulo pedindo a instauração de processo penal contra Senor Abravanel, o Silvio Santos, dono do SBT, o apresentador Gugu Liberato e o jornalista Wagner Mafezzoli.

Bicudo pediu a abertura da ação por ter sido uma das personalidades ameaçadas de morte em falsa entrevista com supostos membros da facção criminosa PCC veiculada pelo ?Domingo Legal? em 7 de setembro.

O vice-prefeito pede que Silvio Santos, Gugu e Mafezzoli sejam enquadrados no artigo 147 do Código Penal, pelo crime de ameaça, cuja pena é de detenção de um a seis meses ou multa. A representação foi entregue ao procurador-geral de Justiça do Estado de SP, Luiz Antonio Guimarães Marrey, que a encaminhou para a promotoria criminal de Osasco, sede do SBT. A assessoria de imprensa do SBT informou que a emissora não irá se pronunciar sobre o assunto.

Hoje, a promotora Gabriela Visconti, de Osasco, deve anunciar o encaminhamento que dará ao inquérito concluído na quinta passada pela Polícia Civil, no qual Gugu foi ouvido. O crime é o de divulgação de notícia falsa.”