Sunday, 28 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1285

Mídia prefere Apocalipse

BIG-BANG vs. EVOLUÇÃO

Alberto Dines

Semanários, cadernos e programas especiais todos estão batendo na mesma tecla: o mundo mudou depois dos atentados em Nova York e Washington. Nada será como antes. Dia "D" da nova Era. Gênese, parte II.

Solução fácil e confortável, justifica omissões e descuidos anteriores, implanta o reino do catastrofismo e garante o sucesso das próximas calamidades. O sistema mediático não faz conspirações, age por instinto, coerente nos impulsos e respostas.

Prefere os paroxismos ? custa menos e repercute mais. A História apresentada como um conjunto de espasmos torna-se imprevisível, o que dispensa a mídia de comportar-se como sensor de mudanças e radar de cataclismos.

Já a História, como um desenrolar contínuo em planos diversos e mesma direção, obriga as "testemunhas oculares" a estar mais atentas e vigilantes. Continuarão ocorrendo guinadas e surtos, mas o grau de surpresa será menor.

A Grande Bolha que se seguiu ao desabamento do muro de Berlim produziu, no dizer de Jean Baudrillard, uma "greve de acontecimentos" furada apenas pela Guerra do Golfo. Razão pela qual esta foi coberta na base de saturação para matar a fome e a sede das audiências por trepidações. Depois, o silêncio, a impressão de segurança, a balela do fim da História. Para Baudrillard, o ataque terrorista do ano passado foi o Acontecimento Absoluto que concentra acontecimentos que jamais tiveram lugar [Jean Baudrillard, Le Monde, 3/11/2001; edição portuguesa: "O Espírito do terrorismo" (Campo das Letras, Porto, 2002)].

História como desdobramento de situações versus História como sucessão de sobressaltos ? esta é a questão. Historiadores acompanhados por jornalistas bem vividos enxergam os processos em curso, já os profissionais que apenas gostam do barulho do jornalismo preferem sobressaltos. Em outras palavras: voltamos a discutir imanência versus arbítrio, criacionismo versus evolucionismo.

A excitação apocalíptica dos últimos dias passou por cima de algumas premissas:

** A vulnerabilidade americana é anterior, desvendada pelo Unabomber e pelo atentado de Oklahoma.

** A recessão econômica já estava visível quando George W. Bush tomou posse ? razão pela qual apelou para uma imediata baixa nos impostos.

** A fadiga da democracia americana ficou exposta na eleição, apuração e batalha judicial para garantir a posse de Bush bin Bush. Os arroubos repressivos depois dos atentados são ações ampliadas de um grupo político que usa a camuflagem democr&aaaacute;tica para esconder o vale-tudo que sempre praticou.

** A crise no braço financeiro do capitalismo selvagem não foi provocada pelo 11-S. As fraudes na Enron e na WorldCom não são acidentes, mas pontas de um iceberg que navega desguarnecido e impune há anos.

** O unilateralismo, o isolacionismo e o desprezo dos conservadores americanos pela comunidade internacional não começou no ano passado. Bush foi eleito com o apoio ostensivo dos grupos anti-ambientalistas, da indústria farmacêutica e tabaqueira.

** George W. Bush não caiu de pára-quedas. É filho de outro George Bush e irmão do governador da Flórida Jeb Bush, aninhado num dos centros mais peçonhentos do cenário político americano.

** Foi eleito porque os progressistas americanos foram insensíveis às diferenças entre ele e Al Gore.

** Bin Laden e al-Qaeda são vedetes recentes de um terrorismo islâmico em evolução constante e crescente desde o fim dos anos 1960. O fundamentalismo do Taliban distingue-se da revolução iraniana apenas no cenário ? o Afeganistão sempre foi mais tribalista e primitivo do que a antiga Pérsia.

O 11-S não mudou o mundo. Apenas explicitou e encorpou crises e contradições que corriam em surdina. Quem não soube detectá-las, surpreendeu-se. Absolutamente novo é o conceito de beligerância estendido indiscriminadamente à população civil. A guerra iniciada pelo al-Qaeda opõe-se à própria essência do conflito bélico ao rasgar as convenções dos últimos milênios nas quais foi estabelecido que guerras são guerreadas por soldados (daí os uniformes diferenciadores).

Apesar do esforço para reacender as emoções dos impactos do ano passado ? sobretudo contra as torres gêmeas ? faltou dizer que o terrorismo só alcança seus objetivos quando aciona a mídia. Sem repercussão não há terror. Como diz Baudrillard, não há bom ou mau uso da mídia, ela faz parte do acontecimento.

Para não servir à selvageria só existe uma saída: antecipar-se ao horror. O Big Bang só assusta os desatentos.

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