Monday, 29 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1285

Meios de comunicação e política no Cone Sul

O ESPELHO DE TIMÓTEO
(*)

Alberto Dines

Espera-se de jornalistas análises diretas, relatos objetivos, opiniões contundentes. Lamento informar que embora jornalista há meio século minha contribuição aqui será em outra direção ? pretendo convidá-los para uma reflexão. Fazer pensar é um dos resultados do trabalho jornalístico. A reflexão que proponho, muito a propósito, começa com reflexos e espelhos, sendo que a função da imprensa é espelhar.

Tanto em castelhano como em português, espelho origina-se do latim speculum que em nossos idiomas também produziu o verbo especular (ponderar, refletir, meditar, considerar). Hoje, em nossos países, especular significa o contrário. Fiquemos com o sentido original de speculum, mais nobre e decente.

Escolhi um conto, quase uma fábula, de autoria de um extraordinário escritor italiano, infelizmente desaparecido, Primo Levi. Chama-se O Fabricante de Espelhos.

De forma resumida, trata-se da história de Timóteo que pertencia a uma antiga família de espelheiros. Como todos os jovens, Timóteo não estava interessado em fabricar espelhos comuns tal como seus antepassados o faziam há tanto tempo. Queria espelhos revolucionários, diferentes, menos simplistas, e começou a pesquisar outros tipos de prismas.

Nosso herói fez diversas experiências ? não vou contá-las ? até que inventou um espelho pequeno que, colocado na testa de uma pessoa, permitia ao interlocutor ver a si mesmo como o Outro o via. Em outras palavras, o espelho refletia a nossa imagem através dos olhos dos outros. Não o que somos mas o que pensam de nós.

Primo Levi termina a sua fábula informando que Timóteo não encontrou muitos compradores para a sua inconveniente invenção, vendeu pouquíssimos exemplares e, para não morrer de fome, voltou a fabricar os mesmos espelhos de excelente qualidade, porém normais [Primo Levi, Racconti e Saggi, Editrice La Stampa, Turin, 1986; Le Fabricant de Miroirs", Liana Levi, Paris, 1989].

O seu fracasso é compreensível: além de inconfortável e antinatural era também anti-social, com ele seria impossível qualquer forma de convivência. Primo Levi deixou aos leitores a tarefa de escolher a moral da história que mais lhe convém. Para mim, as desventuras do fabricante de espelhos oferecem uma leitura que se ajusta perfeitamente ao tema que nos reúne. Brasileiros e argentinos devem recusar aqueles espelhos de Timóteo. Eles produzem caricaturas inquietantes e irritantes que nos afastam ainda mais do que o futebol.

No momento em que uma aliança ou parceria está sendo posta à prova, um olhar crítico e deformante só servirá para agravar a sensação de particularismo e individualismo. Agora precisamos do contrário ? da sensação de igualdade. Precisamos sentir a mesma apreensão, os mesmos receios e a mesma insegurança. Tenho ouvido no Brasil nestes dias que "não somos uma Argentina". E de argentinos que "não somos um Brasil". Cada um olha o outro como sua antítese.

Permito-me discordar. Apesar de diferentes graus, intensidades e escalas estamos nas mesmas condições. Nossas situações são basicamente as mesmas. Se não somos iguais, estamos iguais. Aqui faço uma pausa de caráter lingüístico. Em inglês, francês ou alemão há um verbo único para expressar a condição elementar: to be, être ou sein. Nestes idiomas Ser e Estar constituem uma circunstância única. Já em português e castelhano temos dois verbos distintos mas que acabam convergindo e poderão expressar a mesma coisa: se estamos iguais por muito tempo, seremos iguais logo adiante.

O empréstimo de 30 bilhões de dólares do FMI ao Brasil sugere, à primeira vista, uma enorme diferença na situação econômica dos dois países. Mas, no médio prazo, os dois países estão presos aos mesmos constrangimentos. O governo argentino prometeu neste fim de semana que promoverá um crescimento de 3% no próximo ano, já o Brasil terá que crescer 3,5% em 2003. Como a situação mundial indica que os investimentos externos serão escassos, é fácil adivinhar que este crescimento far-se-á às custas de um rigoroso aperto fiscal. Conhecemos esta história.

No lado político a situação não é muito diferente. A Argentina vive as angústias de um partido único e desgastado. No Brasil temos a mesma angústia em sentido inverso: meia dúzia de partidos fracionados por interesses pessoais e alianças aleatórias que depois das elei&ccedilccedil;ões de outubro dificilmente conseguirão dar sustentação a uma política firme do sucessor de Fernando Henrique Cardoso. A questão da governabilidade é comum.

Sim, temos diferenças em matéria de liquidez monetária; sim, temos diferenças nos fundamentos das nossas economias, na dimensão, na organização política, nos padrões de cultura e educação, nas atitudes e comportamentos. Mas essas diferenças podem volatilizar-se rapidamente. Não esqueçamos que estamos na era da volatilização, os fenômenos são mais velozes do que o tempo para observá-los.

Vejamos o caso da desigualdade social, isto é, a distância entre os mais ricos e mais pobres. Na Argentina a desigualdade social subiu cerca 46 vezes em dez anos. No Brasil, ao contrário, diminuiu a concentração de renda embora os rendimentos mínimos tenham caído. No entanto, se os dois processos mantiverem-se inalterados, em algum momento da próxima década podemos estar proporcionalmente muito próximos.

Somos diferentes no sentido étnico, musical, psicológico e, sobretudo, no tocante às percepções do trágico. No entanto, apesar das discrepâncias, será conveniente recusar os espelhos de Timóteo porque eles nos impedem de ver semelhanças irreversíveis e irrevogáveis.

A começar pela geografia. Estamos no Cone Sul e dele não sairemos. Fomos colonizados da mesma forma, começamos a libertação praticamente na mesma hora histórica e alguns dos mais importantes protagonistas deste processo conviveram em Londres. Nossos idiomas são facilmente assimiláveis pelas partes. Pensem no orgulho ferido de um francês ao dirigir-se a um alemão em inglês e verão quão abençoados somos em utilizar as nossas próprias línguas e sermos razoavelmente entendidos pelos outros.

Deixo os espelhos e as especulações filosóficas para reassumir a posição de jornalista, atento aos fatos e obrigado a estabelecer vínculos entre eles.

A terceira superpotência mundial chama-se União Européia e, no entanto, ela começou há exatamente 50 anos, em 1952, quando a Alemanha e a França, cansados das guerras, incomodados com os espelhos deformadores que usavam nas testas durante dois séculos, resolveram encarar o que poderiam fazer juntos, como iguais. E fundaram a Comunidade Européia do Carvão e do Aço.

Os políticos talvez não tenham a coragem de dizer, mas esta é a hora de desenvolver o Mercosul para torná-lo tão viável quanto o foi o Mercado Comum Europeu antes de transformar-se em União Européia. Esta é a hora justamente porque estamos passando (ou vamos passar) pelas mesmas tribulações. Mais tarde, se um dos pacientes melhorar será difícil convencê-lo a aceitar tratamentos tão radicais.

Todos sabemos que o Mercosul é inevitável. Dizê-lo agora pode ser uma temeridade mas penso que não temos como escapar deste dilema: ou a idéia do Mercosul é retomada com coragem ou ficamos condenados à condição de eternos náufragos de tormentas que não provocamos.

Pergunta-se: o que podemos fazer nós, jornalistas, pelo Mercosul? De forma simplista, na linha de Primo Levi, eu proporia que jamais usássemos os espelhos de Timóteo. Temos que nos observar em espelhos normais, de preferência grandes, para cabermos na mesma imagem e, juntos, possamos verificar nossas semelhanças.

Semelhança pressupõe identidade e quando se fala em identidade é obrigatório tratar da comunicação. Perdoem a nova tirada etimológica mas comunicação vem de communis, comum. Comunicação é a busca de uma comunidade, identidade comum capaz de permitir o intercâmbio. Só os semelhantes são capazes de comunicar-se entre si.

Penso que os nossos meios de comunicação estão acompanhando as crises do vizinho de forma, digamos, regular. Regular nos padrões jornalísticos hoje vigentes. Mas os padrões jornalísticos hoje vigentes estão longe dos padrões jornalísticos desejáveis.

Não é este o lugar para examinar em profundidade as transformações sofridas pelo jornalismo em nossos países e no mundo em geral, mas não estarei longe da verdade se disser que as duas crises, brasileira e argentina, estão sendo acompanhadas nos últimos anos de uma forma olímpica, distante. Nossos meios de comunicação comportam-se como se o princípio dos vasos comunicantes já estivesse abolido, comportam-se como se ainda valesse a antiquada lei jornalística segundo a qual um morto na esquina é mais importante do que 100 mortos em Bangladesh. Seria um avanço formidável em matéria de jornalismo se conseguíssemos ampliar o conceito e a dimensão das esquinas para nelas cabermos todos.

Temos que encontrar alguma maneira de acionar o sentimento de proximidade. Solidariedade é algo abstrato mas a noção de adjacência é concreta. Basta lembrar o que disse o secretário do Tesouro dos EUA a respeito de nossos países. Estamos no mesmo barco e a tormenta, na sua essência, é a mesma.

Há cerca de três décadas, vivia eu em Nova York e nas redações americanas usava-se uma misteriosa sigla, acrônimo, MEGO ? My Eyes Glaze Over, meus olhos passam por cima. MEGO, para os jornalistas, era o território da repetição e da desatenção. MEGO aplicava-se às matérias reiteradas que deixaram de chamar a atenção do leitor. MEGO torna o que foi importante em desimportante.

Por coincidência, a primeira vez em que vi o acrônimo MEGO impresso foi num artigo de William Safire, no New York Times, justamente sobre a nossa América Latina. O articulista referia-se às intermináveis reclamações sobre o noticiário envolvendo nosso continente. A culpa, dizia ele, era dos que produziam as notícias sempre iguais ? portanto, nós ?; a culpa não era daqueles que as escreviam ou editavam ? eles.

MEGO está em toda parte, é decorrência do jornalismo-espetáculo, da fragmentação e da falta de contextualização do noticiário. A objetividade sem referências produz um ambiente MEGO. A TV a cabo com as emissoras all news, tornam MEGO o que deveria ser surpreendente, banalizam o inesperado. Sem responder aos "por quê?" todas as ocorrências se parecem. O inusitado torna-se usual porque retiram-se dele as circunstâncias diferenciadoras. A homogeneização do material informativo tornou tudo igual, portanto tudo desinteressante. Estamos caminhando para um imenso MEGO.

No passado, a obrigação primária do profissional de imprensa visava a manutenção do interesse do leitor, ouvinte ou telespectador, qualquer que fosse a duração do evento. A qualidade do jornalismo relacionava-se com a sua capacidade de acompanhar um acontecimento ou situação através de emissões periódicas e constantes.

Hoje, a obrigação primária vai na direção oposta: é preciso inventar novidades. Eventos e conseqüências dos eventos deixam de ser aprofundadas por causa do temor de que a superexposição converta-os em MEGO.

E neste circulo vicioso, as tragédias e, sobretudo, as emoções provocadas pelas tragédias têm duração tragicamente abreviada. Ficamos desprovidos de catarses. O sensacionalismo criou uma perigosa sensação de imunidade porque o leitor, devidamente condicionado pela velocidade, imagina que tudo é passageiro. Não é. Nem a Argentina pode ser território MEGO para os brasileiros nem o Brasil deve ser MEGO para os argentinos.

Aqui gostaria de relatar uma experiência muito significativa para mim e, creio, importante para vocês. Exatamente há um ano, em agosto passado, quando começou a crise argentina, li num grande jornal brasileiro a transcrição de um artigo comovente publicado no Clarín, assinado pela psicanalista Silvia Bleichmar. A questão era perturbadora: todos falam em risco-país mas alguém está estudando a dor-país?

A pergunta foi tão forte e foi tão fundo que a comentei dois dias depois no meu artigo do Jornal do Brasil. E diante das reações dos leitores fui levado a prosseguir: tomei o tema para uma das edições televisivas do Observatório da Imprensa. A imprensa brasileira havia esquecido a dor-país. A crise argentina resumia-se aos índices, rankings, cotações, estatísticas. Obcecados pela numerologia, esquecemos que somos narradores e ao nosso lado estava uma história que deveria ser narrada com detalhes.

O percurso deste grito é extraordinário: uma psicanalista em Buenos Aires, provavelmente depois de ouvir as angústias dos seus pacientes, escreve um artigo num grande jornal argentino, este artigo é reproduzido por um grande jornal brasileiro que imediatamente gera uma sucessão de respostas sendo que uma delas retorna agora a Buenos Aires e daqui pode irradiar-se novamente.

Este é um contágio salutar, desvenda as enormes possibilidades de transportar sentimentos além das fronteiras. É o que se pode chamar de con+vivência e co+emoção, comoção. Comunicação efetiva.

Passado um ano ainda não descobri como se faz a medição da dor-país. Mas encontrei alguns antídotos para enfrentar a anestesia do MEGO. Em primeiro lugar, devolvi ao falecido Primo Levi o espelho fabricado por Timóteo. Talvez no futuro tenha utilidade, agora não. Quero ver-vos exatamente como me vêem.

Eliminadas as diferenças e as distorções recorro a um sermão escrito há quase 400 anos. É uma das epígrafes preferidas dos escritores, tantas vezes usado como metáfora ou recurso retórico que pode parecer lugar-comum, espécie de MEGO literário. No entanto, penso que nós, jornalistas, deveríamos transformar estas linhas de John Donne em profissão de fé:

"Nenhum homem é uma ilha…Cada homem é um pedaço do continente. Parte de um todo… Qualquer morte me diminui porque estou envolvido pela humanidade…"

O resto todos conhecem.

(*) Conferência proferida no Goethe Institut, Buenos Aires, em 15/8/02