Wednesday, 09 de October de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1308

Nada a comemorar

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ACM E A MÍDIA

José Antonio Palhano

Está no ar um tão festivo quanto perigoso revival, cujos principais protagonistas são o picareta que deu uma rasteira nos Anões do Orçamento e o motorista que detonou a República das Alagoas. É festivo pela simples razão de que não poderia deixar de sê-lo, face à espetacular performance de Dona Regina Célia Borges diante dos apalermados (ou nem tanto) senadores. Não é todo dia, reconheça-se, que a burocracia da Corte brasiliense permite que qualquer dos seus quadros desça à condição humana de forma tão explícita e convincente. Aplausos.

Perigoso por motivos que compreensivelmente fogem à percepção comum, dada a sensação típica de estouro de boiada que acaba de arrebentar uma das porteiras da tal de demanda reprimida por moral e compostura nos costumes institucionais, se é que as instituições ainda podem ser invocadas em meio a tanta podridão. É só reparar a freqüência com que os dois primeiros personagens são citados na mídia, inclusive na usualmente correta GloboNews, para perceber uma infantil e grotesca tentativa de encadear seus respectivos feitos num processo lógico, inevitável e messiânico, a partir do qual a nação haverá sempre de sacar anônimos, providenciais e milagrosos heróis toda vez que sofrer um ataque especulativo em sua dignidade.

Semelhante cacoete ? que aliás perderia tal natureza se utilizado eventualmente em jornalísticas retrospectivas ? é no mínimo alienante. Não bastasse essa curiosa e detestável mania nossa de repercutir fatos e acontecimentos políticos embrulhados na pretensão de serem lidos exclusivamente por quem "entende" e "gosta" do tema, estamos a empurrar para o distinto público grosseira e irresponsável falsificação: a democracia se consolida apenas e tão somente graças às cíclicas e patrióticas blitze sanitárias que sapecamos no Congresso Nacional.

Dessa forma, no lugar do amadurecimento gradual e irreversível a que toda civilização (pelo menos desde Atenas) está sujeita, temos aí uma mixórdia segundo a qual chegaremos lá desde que nos entreguemos com denodo e fervor cívico à arrebatadora missão de desratizar o Parlamento de tempos em tempos. Nada mais falso, ingênuo e burro, até mesmo por conta de razões zoológicas, visto que ratos são espécimes de extraordinária e incomparável capacidade de sobreviver a condições adversas. Não é mera coincidência, assim, que guardem tanta analogia com os também jurássicos tubarões na terminologia política brasileira.

Sôfregos e levianos

Urge, então, não permitir que prevaleçam ânimos e disposições, já aborrecidamente perceptíveis, que sinalizem para asneiras do tipo "dever cumprido", "finalmente a sociedade acordou", "ninguém pode com a cidadania", "agora vai", "passamos a limpo" etc., etc. Sob pena de escamotearmos dos leitores os edificantes e mui promissores produtos do nosso mercado futuro político. Por exemplo, que o suplente de ACM, em caso de sua cassação (possibilidade a que nos entregamos feito torcedores em final de Copa do Mundo), é ninguém menos que seu filho Júnior, ironia de matar. Se conseguirmos afinal sangrar Jader Barbalho (nem profundamente guardado por Netuno Ulysses Guimarães tem sossego), é de arrepiar uma simples olhadinha no seu espólio: Renan Calheiros, Eliseu Padilha, Geddel Vieira Lima…

A realidade é mais embaixo e dói bem mais ainda. Roubar a coisa pública é e será por muito tempo um grande negócio, magnífico case do qual é de se duvidar que bandos de globalizados e inescrupulosos consultores já não estejam organizando seminários e workshops intensivos (não esquecer que a rapinagem aqui está indissoluvelmente ligada à compulsão de ostentar e debochar).

Já dá para prever a portentosa onda de artigos, ensaios, editoriais e crônicas e capas que dirão aos berros da queda espetaculosa e humilhante de Antonio Carlos Magalhães e quejandos. Conversa fiada. Mesmo que o baiano seja enforcado e sepultado em funda cova de cal na badalada e gostosa Porto Seguro, isto será o de menos. Vergonha suprema mesmo é o tombo de todos nós, bestamente iludidos com uma democracia fajuta que embala e entrega senadores amolecados e agatunados em domicílio, via TV de todo dia, que como todas as outras mídias passa o resto do tempo (ou todo ele, escândalos não brotam a toda hora) a matraquear que esses senhores, assim como os deputados, devem ser reverenciados e respeitados. Nós, da imprensa, andamos tão sôfregos e levianos em apontar mocinhos, bandidos e soluções finais quanto a esquerda, doentia e irrecuperavelmente ocupada em pregar o golpismo, na falta do que fazer de melhor.

Prever a jogada seguinte não deve ser atributo a ser lido como exclusivo de Romário ou de Guga. Ao jornalismo cabe se antecipar de forma a traduzir, com o máximo de clareza, comedimento e continuidade, (pré) movimentos no Congresso que dizem apenas de quadrilhas especializadas, jamais de homens públicos. Convenhamos: ler todo santo dia por aí que "todo mundo sabia há tempos da roubalheira na Sudam e na Sudene" é de embrulhar o estômago.

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