Monday, 29 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1285

Nelson Ascher

QUALIDADE NA TV

ASPAS

VIOLÊNCIA E BAIXARIA

"Onde a violência está", copyright Folha de S. Paulo, 29/04/01

"Recentemente nesta página Hélio Schwartsman, à guisa de provocação, perguntou, no contexto do debate acerca da violência na TV e nos filmes, por que Shakespeare é melhor do que Stallone. Não é minha intenção discutir as respostas dele, ainda mais porque concordo com elas inteiramente. Acontece que Schwartsman investiga a questão valendo-se de refinadas categorias filosóficas, enquanto eu creio que podemos chegar a conclusões similares mesmo que a abordemos de outras maneiras. Afinal, se a superioridade qualitativa de Shakespeare em relação a Stallone é mais do que uma opinião arbitrária, ou seja, se, como diz Marcelo Coelho, gosto se discute, e um juízo de valor tem necessariamente um lastro factual, objetivo, deve ser possível alcançar Roma por muitos caminhos.

A verdade é que ?Rambo? é pior do que ?Macbeth? por várias razões, mas se o que estamos comparando nas duas obras é a violência que há nelas, então dificilmente se pode deixar de constatar que a peça shakespeareana é muito mais violenta do que o filme de ação. O que há de aparentemente violento num filme desses e em tantos outros produtos hollywoodianos não passa de uma fraude. Da violência que uma verdadeira obra de arte , seja ela ?Macbeth?, seja a tela ?Guernica? de Picasso, é capaz de materializar ou presentificar nem uma pálida sombra sequer se apresenta no grosso da cinematografia norte-americana. Mas, e todos os tiros, explosões, cadáveres etc.? Bom, que Stallone mate a granel soldados vietnamitas não implica, a rigor, mais violência do que aquela que existe quando se pratica tiro ao alvo num parque de diversões. Pois na economia do filme os inimigos são exatamente isso: bonecos, soldadinhos de chumbo; e o público sabe instintivamente disso.

A trama de um filme como ?Rambo? (e de outros que usam essas matanças de videogame) gravita menos em torno da violência do que do tema eternamente favorito da cinematografia americana: o amor. Stallone mesmo o declara num momento importante de seu filme: tudo o que ele quer é ser amado por seu país. Ou seja, ele é um bebezão que, por carência afetiva, quebra alguns brinquedos. Década após década as películas hollywoodianas que ameaçam tematizar um assunto qualquer, da política à prostituição, da religião às drogas, da guerra ao alpinismo, resolvem-se invariavelmente como histórias de amor. Esse tipo de cinema, injustamente acusado de violento, mostra de fato uma alergia à violência, à doença e à morte.

É por isso que quando parece que se fala de uma doença qualquer, fala-se mesmo é do heroísmo de quem não tanto a sofre quanto corajosamente a enfrenta; fala-se também do amor com que cônjuges, parentes e amigos envolvem o enfermo em horas tão difíceis. Hollywood não mostra a devastação de um organismo pela moléstia, a dor e a agonia, o horror da mutilação; seu assunto é algo assim como o amor à vida e ao mundo de um canceroso terminal, ou o modo como um tetraplégico superou suas limitações, tornando-se um grande pianista que toca com as pálpebras e o nariz… A morte tampouco pode ser o tema, e, assim, sempre há algum tipo de vida depois dela. A vida que a precedeu, por sua vez, sempre terá tido sentido e valido a pena. Quanto à guerra, ela é o pano de fundo ideal para os desencontros iniciais e o encontro definitivo dos amantes. Convém, aliás, tampouco esquecer que, nessas películas, crianças raramente sofrem ou morrem, e os vilões quase nunca escapam à justa punição. Trocando em miúdos, as produções à primeira vista mais agressivas são tão somente açucarados contos de fada aos quais se acrescentou um ou outro efeito especial. Nove entre dez letras de rock, por mais pesados que sejam seus metais, falam sobre o quê?

Portanto, uma, embora não a única, razão pela qual Stallone e similares são inferiores a Shakespeare é precisamente a incapacidade crônica deles de lidar com a violência, com paixões destrutivas e finais infelizes. O grosso do que se vê na telona ou na telinha se resume a variações pouquíssimo imaginativas e demasiado esterilizadas em torno de um ou dois temas monocórdios. Nada poderia estar mais longe da crueldade de Macbeth, da insaciável ambição de sua mulher ou do mundo impiedoso no qual a arrogante ingenuidade do rei Lear acarreta sua própria morte e o extermínio de sua estirpe. São pouquíssimos os filmes, norte-americanos ou não, em que se acompanha uma agonia ininterrupta e sem paliativo como a do personagem de Leão Tolstói chamado Ivan Ílitch, ou em que os ferimentos sofridos em batalha sejam retratados mais realista e sadicamente do que na ?Ilíada? de Homero. Ao contrário do que, com escassas exceções, sucede no cinema e na TV, as grandes obras não recuam diante do sangue, da dor e da morte. Agora, quem quer que se preocupe com a exibição e/ou descrição da violência deveria estar pleiteando a proibição não dos Rambos, dos Exterminadores do Futuro e de outras tantas historinhas de amor mal disfarçadas, mas sim desse livro incomparavelmente sanguinário que é o ?Antigo Testamento?."

"Linha Direta: Programa faz dois anos e ainda gera polêmica", copyright Folha de S. Paulo, 29/04/01

"O programa ?Linha Direta?, da Globo, vai completar dois anos no final de maio, revelando ao mesmo tempo o poder de fogo de sua audiência e a capacidade de suscitar polêmica.

Uma tese de mestrado que será defendida no próximo dia 3 na UFF (Universidade Federal Fluminense), em Niterói (a 13 km do Rio) chega à conclusão que o programa funciona como uma estratégia de imposição de autoridade da Globo em relação à Justiça.

A banca examinadora será formada pelo criminalista Nilo Batista, ex-governador do Rio, por Maria Cristina Franco Ferraz, doutora em filosofia pela Universidade de Paris 1 (Sorbonne), e por Tânia Clemente de Souza, pós-doutorada em linguística por Paris 7 (Denis-Diderot) e orientadora da tese.

?O programa se propõe a uma função que é diferente apenas de informar ou entreter. A Globo tem um cacife, que é a audiência, para mostrar à Justiça como ela deve funcionar?, afirma o jornalista Kleber Mendonça, 29, autor da tese ?Discurso e Mídia: de Tramas, Imagens e Sentidos – Um Estudo do ?Linha Direta?.

Segundo Mendonça, a ?estratégia de autoridade? da emissora em relação à Justiça estaria baseada na audiência de 30 milhões de pessoas que assistem ao programa nas noites de quinta-feira. ?É como se a Globo dissesse: ?Não sou eu que estou pedindo para que você (a Justiça) funcione direito, mas é minha imensa audiência?, diz o autor do trabalho.

A posição oficial da emissora é de que esse não é o objetivo do programa. Segundo o diretor da Central Globo de Comunicação (CGCom), Luis Erlanger, a segurança pública é dever de todos.

Até hoje, o ?Linha Direta? contribuiu para a captura de 111 foragidos da Justiça, de um total de 187 casos apresentados.

Discordâncias

Entre criminalistas ouvidos pela Folha, há opiniões divergentes. O advogado Eduardo Carnelós afirma que ?Linha Direta? fere garantias, como o direito à imagem, à privacidade.

?Esse programa é um desserviço à sociedade. É a antítese do que deve ocorrer no Estado democrático de direito. Confunde a liberdade total de informar com a liberdade total de acusar. É uma barbaridade?, diz Carnelós, para quem a captura de foragidos não deve funcionar pela mídia, mas pelos meios policiais.

Já o advogado Nélio Andrade pensa diferente. Para ele, a mídia tem papel fundamental na solução de crimes.

Em sua tese, Kleber Mendonça analisa as diferenças entre a verdade produzida pelo programa e a busca da verdade que a Justiça tradicionalmente faz.

A tese disseca os problemas de se utilizar a simulação para contar como o crime aconteceu. ?A emissora faz um acordo com o telespectador: ?Tudo que você vai ver na simulação é verdade?. Mas essa verdade não é tão fiel aos fatos e, o que é pior, inverte o ônus da prova?, diz.

Mendonça lembra o caso de um episódio que mostrava um marido suspeito da morte de sua mulher desaparecida. ?Para a Justiça, não há crime se não há o corpo. O programa não afirma explicitamente que o marido deu um sumiço no corpo da mulher. Mas, discursivamente, ele coloca um lugar muito claro para o marido naquele episódio. Durante a simulação, está muito definido o papel da vítima e o do vilão?, afirma o jornalista.

Para Mendonça, o artifício da simulação faria concessões à verdade. Ele cita o caso de um episódio que apresentou o diálogo entre a vítima, prestes a morrer, e os dois acusados de matá-la. ?É uma licença poética. Não há como comprovar esse diálogo, uma vez que as duas testemunhas estão foragidas?, diz.

Mendonça afirma que o ?Linha Direta? corre riscos ao não utilizar os meios tradicionais da Justiça para se chegar a uma verdade: ?O programa se equilibra o tempo todo entre a prestação de um serviço interessante -com a interatividade e a velocidade que a Justiça não possui- e o perigo de sua fórmula, que empacota o produto e está sujeita a erros?.

Ele cita o caso do ator Edson Sá, que teve sua casa cercada pela polícia, em julho de 99, após aparecer numa simulação do programa, interpretando um foragido. Ele foi ?denunciado? por uma vizinha, que confundiu realidade com ficção."

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"Para Globo, segurança é ?dever de todos?", copyright Folha de S. Paulo, 29/04/01

"O diretor da CGCom, Luís Erlanger, rebate críticas feitas ao programa ?Linha Direta? na tese de Kleber Mendonça.

Folha – Segundo a tese, o programa serviria a uma estratégia de autoridade da Globo em relação à Justiça. Como a empresa responde a essa afirmação?

Luis Erlanger – Pela Constituição, a segurança pública não é prerrogativa exclusiva da Justiça. Segundo o artigo 144, é dever do Estado, direito e responsabilidade de todos. O programa está na linha de movimentos da sociedade organizada como os sistemas de disque-denúncia -que apóia o projeto-, assim como de boa parte do Ministério Público, entre várias outras entidades de respeito. Nosso objetivo não é dizer à Justiça que ela deve funcionar direito, mas se isso for um efeito colateral, ótimo. Também é função jornalística zelar pelo bom funcionamento dos poderes da República.

Folha – A tese aponta que o programa teria uma linguagem maniqueísta e diálogos de difícil comprovação. É citada uma cena de simulação em que a vítima está conversando com os dois foragidos acusados de matá-la, sem que haja qualquer testemunha que pudesse relatar o diálogo.

Erlanger – Em primeiro lugar, fica ostensivo que se trata de uma simulação. Nem usamos a expressão reconstituição. De qualquer forma, jamais trabalhamos em cima de situações imaginárias. Todas as situações apresentadas pelo programa são baseadas na denúncia do Ministério Público e no inquérito policial. Nos casos como o citado, o diálogo foi baseado no depoimento do acusado. Ele confessou o crime à polícia e depois fugiu.

Folha – Advogados criminalistas afirmam que o programa faz um julgamento antecipado de suspeitos que ainda podem ser absolvidos pela Justiça. Para os advogados, não bastaria ao acusado ter um mandado de prisão, mas ser um foragido com sentença definitiva.

Erlanger – Pelo código de ética do nosso [departamento de? Jornalismo, não fazemos a exposição de suspeitos. Mas quando há um mandado de prisão e a pessoa está foragida, ela passa a ser procurada pela polícia. Isso é um fato e uma informação pública. O programa não julga, apenas revela que há alguém procurado pela polícia. Na única vez em que um procurado pela Justiça foi inocentado, o programa cumpriu seu dever de informar. Assim como o fez quando veiculou que era procurado pela polícia.

Folha – Para os advogados, as marcas da exposição poderiam destruir ?para sempre? a vida de um acusado que porventura seja absolvido pela Justiça. Mesmo que o foragido seja culpado, o programa estaria promovendo uma execração pública. Como a Globo responde a essas críticas?

Erlanger – O programa não faz julgamento. E se houve exposição foi por parte da Justiça, que concluiu que a pessoa deve responder por um crime. A tese incorporada na pergunta não leva em conta a ?destruição para sempre? das famílias das vítimas. Em quase dois anos de programa, não houve tempo suficiente para o julgamento da maior parte dos casos apresentados. Ainda assim, dos 111 foragidos presos, houve um único caso de absolvição e 19 de condenação.

Folha – Como a emissora responde às críticas de que há, em ?Linha Direta?, uma inversão da estrutura do Estado democrático de direito, que não deveria funcionar pela mídia, mas pela polícia?

Erlanger – Mais uma vez, essa tese atropela a Constituição do Brasil -que vive num Estado de direito democrático- e que prega no seu artigo 144 que segurança é dever de todos. Quem acusa é a promotoria, quem condena ou manda prender é um juiz e quem divulga nesse caso, cumprindo sua missão como qualquer outro veículo de comunicação, é a Globo."

RADIODIFUSÃO DO FUTURO

"Nada será como antes no rádio e na TV", copyright O Estado de S. Paulo, 29/04/01

"Responda, leitor: Que relação existe entre as supernovas, a mudança da letra do hino nacional russo e o pedido de concordata da empresa E-toys? Para nós, mortais comuns, nenhuma. Mas, para Eddie Fritts, presidente da Associação Nacional dos Radiodifusores dos EUA (a NAB-National Association of Broadcasters), os três fatos provam que coisas aparentemente imutáveis podem, de repente, mudar radicalmente, inclusive a Radiodifusão.

Explicando melhor: os cientistas buscam nas supernovas uma nova explicação para a origem do universo, talvez com a prova de que existem dois universos e não apenas um. No caso russo, a letra do antigo hino soviético, do tempo de Lênin, está em vias de ser substituída por outra que exalta a proteção de Deus e chama a Rússia de ?pátria sagrada?. Já o caso da E-toys (cujas ações caíram de 86 dólares para 9 cents em poucos meses) mostra o tremendo risco de uma aposta maluca no potencial da Internet.

Esses exemplos de Eddie Fritts enfatizam um fato indiscutível: as mudanças profundas e irreversíveis por que passam o rádio e a televisão. Essas mudanças ocorrem simultaneamente na tecnologia, no mercado e na política regulatória.

Um paralelo – No Brasil, as mudanças ainda são relativamente pequenas se comparadas com as que ocorrem nos países mais industrializados e desenvolvidos, em especial nos EUA. Assim, por exemplo, enquanto a entidade representativa da radiodifusão norte-americana passa por uma profunda transformação, buscando superar a crise de representatividade que a atingiu nos últimos anos, a Abert (Associação Brasileira das Emissoras de Rádio e Televisão), sua congênere no Brasil, continua mergulhada no mesmo mal da perda de identidade.

Por não mais representar o setor em sua grande maioria, a Abert perde a agressividade de suas lutas do passado, acomodando-se na defesa restrita dos interesses de seu grande e hegemônico associado: a Rede Globo. Talvez por isso a entidade tem ignorado (ou até aplaudido) o engavetamento do projeto da nova Lei de Comunicação Eletrônica de Massa pelo ministro Pimenta da Veiga, nos últimos dois anos.

Nos Estados Unidos, a NAB busca mais do que nunca enfrentar o triplo desafio das mudanças tecnológicas, econômicas e regulatórias. Que mudanças são essas? Na tecnologia, num sentido amplo, a convergência caracterizada pela multimídia e pela Internet e, num sentido mais restrito, a digitalização do rádio e da TV. Da televisão digital, o mundo passa, progressivamente, para a TV de alta definição. No mercado e na economia, a globalização acelera a queda de fronteiras.

Como enfatiza Jack Valenti, um dos mais renomados dirigentes da NAB, diante de uma pergunta que lhe fiz aqui em Las Vegas, ?a Internet veio para ficar, com todas as crises por que passam (e ainda continuarão passando) as empresas da Nova Economia?.

?No entanto – adverte Valenti – ignorar a Web é suicídio?. A tecnologia abre perspectivas novas e revolucionárias para a economia. Assim, o rádio digital deve mostrar transformações radicais, especialmente quando consideramos o potencial inovador da AM digital, a integração com a Internet, os novos serviços que a digitalização possibilita e a difusão via satélite.

Do lado político, a regulamentação refletirá essas mudanças – no mundo e no Brasil, abrindo novas possibilidades de competição, embora trazendo, ao mesmo tempo, desafios tão sérios quanto os que ameaçam a E-toys ou a Yahoo.

Que é Broadcasting? – Embora quase desconhecida do grande público, a palavra Radiodifusão é a melhor tradução em português para o inglês Broadcasting. Alguns leitores perguntariam, então: ?Que é Radiodifusão?? De forma simplificada, quer dizer difusão de dados, sons e imagens para livre recepção pelo público.

Esclarecendo: o rádio e a TV aberta são, portanto, ambos Radiodifusão ou Broadcasting. Redundantemente, a legislação brasileira tem usado a expressão ?radiodifusão de sons e imagens? para designar o rádio e a TV aberta. Coisa de burocratas.

O fato essencial que não se pode esquecer neste cenário de mudanças profundas é que o Brasil precisa de nova lei não apenas para a TV aberta ou para o rádio, mas para todas as formas de comunicação eletrônica de massa. Uma lei que reconheça o papel da comunicação de massa em sua plenitude, dentro dos limites éticos que a sociedade quer e que a Constituição consagra."

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