Monday, 29 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1285

Nelson de Sá

ASPAS

"Da catarse ao discurso", copyright Folha de S. Paulo, 24/04/01

"Em seus primórdios, mais de quatro décadas atrás, a crítica à espetacularização da política tinha como alvo o poder. Era o poder que usava o espetáculo, sobretudo da televisão e sobretudo em campanhas eleitorais, para distorcer a verdade e se perpetuar.

Agora, pelo que se viu em muitas reações ao depoimento da ex-diretora do Prodasen, semana passada, a crítica à espetacularização também serve ao próprio poder. Na imediata sequência do depoimento, passou-se a ler que a depoente era excelente atriz, insinuando-se que muito dela poderia ser falso.

(Pelo sim, pelo não, o depoimento de ontem sobre o tema, do assessor parlamentar Domingos Lamoglia, foi fechado ao público. Sem transmissão ao vivo.)

Mas a insinuação de que o depoimento seria falso, mero teatro, foi logo atropelada. O que Regina Célia Borges disse se firmou como a verdade -em parte, como acontece em escândalos assim, pela presença na escalada de manchetes e no primeiro bloco do ?Jornal Nacional?.

E ontem surgiu na tela a imagem de José Roberto Arruda, em discurso no plenário do Senado, dizendo que errou. Seguiu à risca a dramaturgia, o roteiro de Regina Célia Borges. Ela havia mostrado traços de um heroísmo trágico -sozinha, sem advogado, com marido e filho. Ela pediu desculpas, se disse fraca, enfim, levou Brasília e os telejornais a uma breve catarse política.

José Roberto Arruda fez a mesma encenação, mas a tragédia se repetiu, em parte ao menos, com um estranhamento de farsa. Ele se desculpou ao país e aos filhos, chorou. Inesperadamente, se desculpou ?ao governo?. Nada acrescentou ao que já se tinha como verdade, até pelo contrário. Embora dizendo ser ?inútil resistir à verdade?, insinuou que a iniciativa de violar o painel de votação foi de Regina Borges, não dele.

Há muita coisa a separar um espetáculo de outro, a catarse de Regina Borges do discurso do senador Arruda -começando pela espontaneidade dos atos e passando pelas reações que provocaram em partes interessadas. Enquanto o depoimento enfrentou insinuações de teatro, o segundo já era dado ontem na televisão, pelo líder do governo no Congresso, depois pelo porta-voz do presidente Fernando Henrique Cardoso, como sinal de honradez, coragem.

Até Antonio Carlos Magalhães, que afundou um pouco mais com o discurso de ontem, reapareceu firme na televisão, em sua própria defesa, mostrando conhecer detalhes do que falou o senador e enfrentando agressivamente os repórteres. Aceitando, quando muito, ao ser questionado se havia rompido o decoro parlamentar: ?Relativamente, sim?.

De semana em semana, a verdade vem se apresentando cada vez menos relativa. (Nelson de Sá é editor da Ilustrada)"

"Lealdade safada", copyright Folha de S. Paulo, 30/04/01

"O senador Antonio Carlos Magalhães dizia, antes de seu depoimento ao Conselho de Ética, na última quinta-feira, que o tratamento da imprensa à sua fala era determinante para seu futuro.

Falava com conhecimento de causa, com a experiência de quem sempre usou a imprensa a seu favor e contra seus inimigos durante sua vida política. Depois que assistiu aos telejornais naquela noite e leu os jornais no dia seguinte, disparou, no seu velho estilo: ?A mídia é safada. Não traduziu a verdade. Jogou os senadores contra mim?.

Sua reação demonstra que, mesmo acuado, isolado e fragilizado, ACM não consegue se ver em outro papel que não o de coronel.

O senador baiano engana-se ao avaliar que a mídia jogou os seus colegas contra ele. A imprensa apenas retratou o que aconteceu naquele dia. Um senador tentando vender a imagem de santo, quando bem sabe que, nesse episódio, não é.

O que o ex-presidente do Senado viu nas TVs e jornais, que ele detestou, foi apenas como seus pares classificaram seu desempenho naquela tarde de quinta-feira. Até seus aliados conseguiram enxergar o que ele não deseja nem vislumbrar: sua versão não convenceu.

ACM está sendo vítima de seu próprio veneno, que usou sem parcimônia e com muita astúcia em sua carreira. A parcela da imprensa que antes lhe era fiel, que outrora o ajudou a conquistar o poder e derrubar inimigos, mostrou que os tempos são outros.

Afinal, é difícil ficar contra os fatos. Principalmente quando se tem concorrência. E eles, os fatos, no momento, apontam contra o senador.

Basta lembrar que ACM sempre teve grande zelo por sua autoridade. Difícil então imaginar, impossível até, que algum subalterno seu fizesse algo sem seu conhecimento. Ou, se o fizesse, que não fosse alvo de sua fúria.

E aí, tenha certeza, subalterna não era apenas a ex-diretora do Prodasen Regina Célia Borges. O senador José Roberto Arruda, quem conhece a alma de ACM sabe disso, também era considerado um inferior de sua armada. Não só Arruda, mas muitos outros senadores são vistos assim pelo ex-presidente do Senado.

São esses que agora vão julgá-lo. Os mesmos que ele destratou e também aqueles que ACM acreditava serem leais a seu comando até o fim. Dos primeiros, ele já sabe muito bem o que esperar, a sentença máxima.

E são muitos. Dos outros, que já não são tantos, ele poderá descobrir que lhe dispensavam, na verdade, uma lealdade safada.

Afinal, a lealdade não era conquistada, mas sim imposta pelo medo que provocava em seus subordinados. Agora, na planície, alquebrado, ACM poderá descobrir que esses aliados estavam na espreita, loucos para se livrar de seu carcereiro.

E, por ironia do destino, a vingança -afinal, é esse o sentimento de muitos senadores- contra ACM poderá ser manifestada secretamente.

Como deveriam ter sido os votos na cassação de Luiz Estevão. Votos que o senador baiano tanto quis ver para cobrar traições. Agora, a traição maior, pelo visto, está a caminho. E não é da mídia, mas de seus pares. (Valdo Cruz, diretor-executivo da Sucursal de Brasília)"

"A razão cínica venceu?", copyright O Globo, 28/04/01

"Numa alegre reunião de jornalistas, o assunto é a lista do Senado. O ambiente não pode ser melhor, o uísque é farto, a cerveja está gelada e as línguas, soltas. As afirmações e os palpites são os mais irresponsáveis, como sempre ocorre quando esses profissionais se juntam em roda: falam sobre tudo, sabendo ou não. Jornalista só apura quando é obrigado. Assim como um ginecologista deve gostar de passar as noites jogando pôquer com os amigos, nós também queremos distância de tudo o que lembra trabalho quando estamos de folga.

Experimente perguntar a alguém ?o que você tá achando da situação??. Se for jornalista, ele jamais dirá ?não sei?. Jornalista sabe tudo. Tem sempre uma fonte em Brasília que é assim com FH, que acabou de lhe confidenciar que o ACM está perdido etc, etc. Eu, por exemplo, quando quero impressionar, cito o Miro Teixeira, que tem fama de bem informado e é um dos poucos políticos a quem tenho acesso, pois já trabalhamos juntos numa revista semanal. ?O Miro me ligou agora de Brasília…?. Faz o maior efeito.

Parecia uma reunião de pauta, aquela em que nas redações se discutem os assuntos que vão entrar na edição seguinte: violação do painel do Senado, confissão de Regina Célia, quem era pior, ACM ou Barbalho, corrupção na Sudam, na Sudene, Fernandinho Beira-Mar, o crime do caseiro, o tio que era pai. Antigamente a gente se queixava de fome de notícia, hoje há indigestão. Existe informação demais, e isso também não faz bem. Como se sabe, excesso de informação é ruído, é essa entropia que nos cerca.

A roda esquentou quando eu me recusei a acreditar que a senadora Heloísa Helena tivesse votado contra a cassação de Luiz Estevão. Aleguei que ela era uma parlamentar séria, corajosa. ?É uma vítima da infâmia e do preconceito?, argumentei, ?basta ver a indignação dela?.

?O problema é exatamente esse?, me cortou uma voz cínica, ?ela se indignou demais. Se fosse inocente, não ficaria tão histérica?.

Achei um absurdo o argumento. Se ela mostrasse indiferença, diriam: ?Viu? Ela nem reagiu, quem cala consente?. Como reagiu indignada, está sendo condenada pela indignação. Me ocorreu um contra-ataque:

– Nesse caso então, o Luiz Estevão seria um santo, porque ninguém é menos indignado, mais cínico.

– Mas esse não vale, não tem superego – disse outra voz. – O Luiz Estevão é caso patológico, ele acredita nas mentiras que diz.

Eu já estava derrotado, e só não me retirei porque se deve ser o último a sair dessas rodas, que são um festival de divertida maledicência. Foi então que outro colega resolveu me levar definitivamente à lona. Primeiro, me gozou dizendo que, pelo jeito, eu devia estar acreditando também na inocência do Arruda (o pior é que eu acreditava mesmo, foi antes do segundo discurso). Depois lançou à queima-roupa:

– Você não sabe que o Calheiros deu a maior força à eleição da Heloísa Helena em Alagoas? Você não sabe também do relacionamento dela com o Estevão?

Naquele dia mesmo, eu tinha lido a veemente resposta da senadora a essa torpe insinuação de que mantivera um affaire com o ex-senador. Eu decorara a sua fala: ?Se eu tivesse um homem desse tipo, bonitinho e ordinário, faria questão de vomitar em cima dele?, repeti alto, com a ênfase de um senador arrependido. Não adiantou. O mais inconveniente da roda, um gaiato, emendou:

– Vai dizer que não sabe que essa é a tara dela?

A gargalhada geral me deixou com cara de babaca. Só não fiquei indignado porque, depois daquela conversa, vou me conter: nada de indignação, nada de histeria. Me esforço para acreditar que haja um ingrediente terapêutico nessa crise, que isso seja uma purgação, como acontece quando a gente espreme um furúnculo. Como diz o belo poema de Gullar, ?Uma parte de mim/ pesa, pondera/ outra parte/ delira?. Uma parte de mim acha aquilo, a outra acredita que a razão cínica venceu. Que seja a que delira."

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