Monday, 29 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1285

O Brasil anda com vergonha do Brasil

TELEJORNALISMO EM CLOSE

Paulo José Cunha (*)

Primeiro foi uma baiana de uns 25 anos, que não sabia o que é "baião-de-dois". Anotei num bloquinho: "Explicar que baião-de-dois é arroz cozinhado com feijão". Depois, foi uma senhora, aí de seus 45 anos, contrariada com o belo verso que anunciava o tema do programa seguinte, na voz forte de Oliveira de Panelas, um dos maiores violeiros do Nordeste. "Coisa de caipira", disse ela, garantindo que nem as pessoas do interior suportam mais ouvir cantiga de violeiro. Anotei no caderninho: "Parece que o Oliveira dançou. Avaliar de fica ou sai". Depois, várias pessoas protestaram contra o sotaque dos personagens e o uso de algumas expressões típicas do Nordeste. "A gente tem é vergonha disso, coisa de matuto, a gente não é matuto pra falar desse jeito". Anotei no bloco: "Aliviar o sotaque, limar as expressões populares". Lá pelo fim da sessão, fechei as anotações no pé da página, em estado de profundo desânimo, anotando: "O orgulho derivado das características regionais brasileiras acabou. Salve Ipanema, padrão e modelo do Brasil! Abaixo o baião-de-dois, viva o rotidógui!"

Foi em Salvador, Bahia, durante uma pesquisa qualitativa para se aferir a receptividade de um programa de rádio do Sebrae que isso aí de cima aconteceu. Um grupo de ouvintes potenciais ouviu um programa-piloto que eu havia escrito e dirigido, e depois manifestou livremente suas opiniões. Por trás de um espelho daqueles de delegacia (que permitem acompanhar, sem ser visto, o que se passa dentro da sala) assustei-me com a revelação brusca, seca e direta, de que a variedade cultural brasileira, um de nossos maiores tesouros, tornou-se motivo de vergonha e rejeição.

Soube, depois, que em outras três sessões de pesquisa, realizadas em outros estados nordestinos com o mesmo programa, a reação do público tinha sido basicamente a mesma, o que me permitiu chegar à dolorosa conclusão de que o Brasil anda com vergonha do Brasil. Melhor: as tradições da cultura regional estão mesmo indo para o brejo, e as pessoas ? por influência de veículos pesados como a televisão com matriz cultural baseada no eixo Rio-São Paulo ? não apenas estão se esquecendo de suas características, mas renegando-as.

Outro dia, o fotógrafo e professor Luiz Humberto, da Universidade de Brasília, em debate transmitido pela TV Senado sobre a questão da cultura brasileira, lembrou que estamos repetindo, em âmbito regional, o mesmo esquema de dominação que a invasão da música e do cinema norte-americanos produz em âmbito nacional no imaginário brasileiro, destroçando a identidade e nos fazendo falar maravilhas de qualquer porcaria exibida na Broadway. Luiz Humberto reconheceu, porém, que vem da própria televisão ? um programa chamado Via Brasil, com reportagens que desvelam as variadas e fascinantes faces da cultura brasileira, exibido pela Globo News ? um dos melhores exemplos de reação ao aplainamento cultural por que passa o país.

O diabo é que a Globo News é vista por uma fração mínima da população, os privilegiados de classe média alta que podem assinar a uma TV a cabo. A grande massa de público ? o Brasil como um todo ? está refém de uma programação na TV de sinal aberto absolutamente descompromissada com a diversidade cultural brasileira.

Esta diversidade ? nosso maior tesouro, insisto ? não se encontra em risco de esquecimento: já se encontra em estágio mais perigoso ainda, o de rejeição pelos seus atores, usuários e consumidores. O Sebrae aplicou a mesma pesquisa aos demais programas, elaborados à feição das características culturais de cada região, e a conclusão é que o fenômeno é nacional ? ojeriza ao sotaque, desconhecimento e rejeição de traços regionais (com menor ênfase apenas no Sul do país, onde o cultivo das tradições é parte do conteúdo educacional da população, oficial e extra-oficialmente).

Não bastasse a penetração insidiosa do american way of life via cinema, pelo controle absoluto das salas de exibição em poder de companhias norte-americanas, com reforço da TV que re-exibe esses filmes em escala industrial, ainda sofremos a sufocação das manifestações regionais pela pressão dos conteúdos gerados nos centros de produção do eixo Rio-São Paulo (um lugar que fica ali entre Ipanema e a Avenida Paulista). O sociólogo e professor Domenico de Masi, no artigo "A globalização, o Brasil e a cultura" (O Globo, 12/9/03), comenta o controle norte-americano, dizendo: "Esta total globalização, que impõe, engloba e manipula, só pode ser confrontada, como única via de salvação, pela valorização das culturas locais". Noutro ponto, enfatiza:


"É essencial o reconhecimento dessa competência brasileira, dessa capacidade de o Brasil criar produtos audiovisuais sofisticados que funcionem como barreiras à imposição de uma estética e de símbolos externos. A dimensão e a importância dessa competência no contexto do grande jogo internacional não pode ser ignorada pelo povo brasileiro, pelos formadores de opinião e pelos governantes. Possuir esse ativo e prosseguir exibindo-o ao mundo inteiro é uma riqueza intangível, de enorme valor econômico, simbólico e político."


Mas, para que essa estética e esses símbolos possam ser valorizados, é preciso fazer com que os nordestinos voltem a saber que baião-de-dois é um prato delicioso, feito de arroz cozido com feijão. E não se envergonhem de comer baião-de-dois, nem de seu sotaque, nem de sua música, nem de suas danças, nem de seus folguedos. Os nordestinos e os brasileiros como um todo precisam parar de ter vergonha do Brasil.

(*) Jornalista, pesquisador, professor da UnB, documentarista, autor de A noite das reformas, O salto sem trapézio, Vermelho, um pessoal garantido, Caprichoso: a Terra é azul e Grande Enciclopédia Internacional de Piauiês. Este artigo é parte do projeto acadêmico Telejornalismo em Close <
http://www.tjemclose.hpg.com.br
>, coluna semanal de análise de mídia distribuída por e-mail. Pedidos para <pjcunha@unb.br>