Sunday, 28 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1285

O caminho da violência à crueldade

ESPELHO DA MÍDIA

Muniz Sodré (*)

A atual crônica jornalística da criminalidade cotidiana no Rio de Janeiro é a melhor matéria-prima para uma compreensão sociológica da violência e suas relações com os fundamentos da sociabilidade humana. De fato, os acontecimentos recentes ? desde a virtual paralisação da cidade no dia 30 de setembro até a madrugada de 15 de outubro, quando o Palácio do Governo estadual foi metralhado ? fornecem-nos material para uma reflexão tanto sobre a violência quanto sobre o que poderíamos chamar de "cimento" da sociabilidade. O método reflexivo está na própria superfície da notícia.

Assim, é possível encaixar os ditos acontecimentos em dois fatos noticiados, que vão aqui funcionar provisoriamente como categorias. Isto significa que usar o material jornalístico como uma base heurística para se lançar alguma luz sobre outros acontecimentos correlatos. Em termos de método, o fato-categoria é o esboço de uma forma social, num dos sentidos que Georg Simmel dá a este termo, ou seja, o de um padrão de interação capaz de sublinhar conteúdos mutantes das relações sociais.

O primeiro fato-categoria, portanto, o primeiro padrão, é a paralisação parcial da vida organizativa e institucional da cidade no dia 30 de setembro de 2002, por ordem de traficantes de drogas e, segundo algumas suspeitas, de figuras ocultas da sociedade civil com oblíquos interesses, na antevéspera das eleições. Para os jornais, na verdade para toda a mídia, medo foi o significante-síntese do acontecimento e ações derivadas. Diante da aparente impotência do Estado ? portanto da sociedade política, que classicamente monopoliza a violência ou o emprego da força ? a sociedade civil encolheu-se, amedrontada, como um rebanho de cordeiros diante de uma matilha de lobos.

O segundo fato-categoria é um incidente de meados do mês de setembro, em principio isolado, mas que se repetiu em 1? de outubro: da primeira vez, no subúrbio de Senador Câmara, traficantes jogaram gasolina em um ôocirc;nibus, impedindo em seguida que alguns dos passageiros abandonassem o veículo e causando a morte de uma pessoa, além de queimaduras sérias em várias outras; da segunda, conforme relato jornalístico, "os traficantes surgiram do nada, em meio a uma rua do bairro Nova Pian, Belford Roxo. Quatro deles invadiram o ônibus da empresa Vera Cruz pelas janelas e deram a ordem: todo mundo tinha que sair, pois o transporte seria queimado. Apavorada, Vera Lúcia Laffer 48 anos, não conseguiu se mover com agilidade que os bandidos queriam. Impacientes, eles atiraram álcool no corpo da passageira e decidiram queimar o ônibus com ela dentro. Resgatada das chamas por populares, Vera teve cerca de 30% do corpo queimados e agora luta pela vida no Hospital Municipal Souza Aguiar" (Jornal do Brasil, 2/10/02). Para nós, crueldade é o significante-síntese desses dois episódios, constantes do segundo caso de fato-categoria.

Em ambos os casos, faz-se presente a violência, entendida como o uso de força destrutiva frente a um outro sujeito social. Num trabalho recente (Sociedade, Violência e Mídia, Editora Sulina, 2002) levamos em consideração duas grandes modalidades de violência. A primeira refere-se propriamente àquela violência, "freqüentemente ignorada, dos poderes instituídos; a violência dos órgãos burocráticos, dos Estados, do Serviço Público". Temos aí a violência invisível, violência institucional ou estado de violência, isto é, uma condição contínua, estrutural e irrebatível.

A segunda modalidade é a violência visível ou violência anômica, entendida como a ruptura, pela força desordenada e explosiva, da ordem jurídico-social, que dá lugar à delinqüência, à marginalidade ou aos muitos ilegalismos coibíveis pelo poder de Estado. Inscreve-se neste campo o ato de violência, em que implicam os crimes de morte, os assaltos, os massacres e outras variantes.

Por consenso

Acentuar os aspectos ato e estado no que diz respeito à violência não implica, a rigor, afirmar nada de novo. No entanto, o ponto de inserção da violência na experiência do Terceiro Mundo latino-americano é racionalmente inteligível, quando se olha para o "estado violento" como traço estrutural do modo de organização social implantado nos países terceiromundistas.

É necessário, por isso, examinar o conceito de "violência social", como o de um efeito organicamente inerente à sociedade de classes, que ocorre de fato em todos os planos (econômico, político, psicológico) da existência na forma de dois tipos básicos: a violência direta, ou emprego imediato de força física; e a violência indireta (latente), que inclui os diversos modos de pressão (econômicos, políticos, psicológicos). Este conceito apenas deixa mais claro que considerar violência como puro ato é conotar negativamente só as ações que contrariem a legitimidade da camada dirigente.

De fato, como bem observa Sorel, a contenção da violência só se institui com a moral moderna, cujos valores se orientam no sentido do respeito formal à pessoa humana e de uma espécie de condescendência piedosa pelos mais fracos. Cabe então à disciplina, entendida como a regularidade da conduta por pressão, tanto externa quanto interna, substituir o emprego da força física. Mas é preciso atentar para o fato de que a contenção só se realiza com constância, ou pelo menos com maior constância, nos espaços plenos da Modernidade ? que são os espaços ditos de Primeiro Mundo.

Só que o monopólio jurídico da violência pelo Estado e a disseminação das ideologias de disciplina e autocontrole não contêm por inteiro a eclosão da violência em seus variados aspectos. Isso fica mais nítido quando se torna visível a diversidade das ordens de modelização do organismo. A modelização societária ? isto é, a sociedade liberal moderna com seus aparelhos de Estado e uma infra-estrutura institucional de mediação política e negociação pública, a que se possa dar o nome de sociedade civil ? concentra todas as representações e dispositivos disciplinares, de contenção da força bruta e monopolização estatal da violência. Como bem demonstrou Foucault, os enclausuramentos e as instituições da sociedade civil (prisões, hospícios, escola, família, partido, sindicato etc.) compõem a estrutura disciplinar, normalizando os indivíduos e produzindo hegemonia, isto é, dominação por consenso.

Medo da morte

Há, porém, uma outra modelização consentânea a formações humanas que, embora sob a égide jurídica dos dispositivos societários, situa-se à margem da centralidade produtiva da economia moderna, da produção de bens, desejos e identidades socialmente valorizáveis. Podemos chamá-la de modelização comunitária, destacando-a da dialética institucional das forças sociais que lastreiam o poder de Estado. "Comunitário" tem, aqui, o sentido de uma modelização de relacionamento humano caracterizada por uma forte dinâmica de identificação, diferenciação e aproximação.

Falar dessa temática é, em princípio, falar também de Hobbes, um dos mais convictos adversários clássicos da comunidade, precisamente por nela ter feito a descoberta de que no mais íntimo da sociabilidade humana está o medo. Como assim? É preciso, antes de mais nada, entender que o munus de communis (ou communitas) é a obrigação radical que se tem para com o outro. É o imposto originário a pagar. Na comunidade se encontra a origem do dar e receber, da troca simbólica, do identificar e diferenciar-se. No fundo dessa obrigação (munus), Hobbes enxerga o medo ? o medo da morte, em última análise. O homem é mortal e, por isso, sujeito do medo e ao medo.

Assim, na teoria hobbesiana, a morte é a própria origem da comunidade, no que ela tem de mais terrível. O medo da morte atravessa e constitui a sociabilidade de tal modo que se tem medo do medo, isto é, o temor de que isto que se sente naturalmente comum a todos seja propriamente nosso. Em torno do princípio de que "os homens, pela paixão natural, ofendem uns aos outros", Hobbes constrói uma antropologia da comunidade, segundo a qual aquilo que os homens têm em comum é a capacidade de matar e, portanto, de ser morto.

Deus Mercado

Ora, é a realização histórica dessa comunidade no Ocidente que Hobbes e a modernidade rejeitam. O processo civilizatório da modernidade ocidental repõe os conflitos inerentes à vida comunitária numa sociabilidade caracterizada pela separação dos indivíduos e regida por laços jurídicos. O fato societário é exatamente este: indivíduos autônomos e isolados, mas juridicamente relacionados. A sociedade tem mais a ver com immunitas do que com communitas. Isso não quer dizer, entretanto, que desapareça o vínculo comunitário. Na sociedade liberal clássica, o fato comunitário (que permanece manifesto e latente nas relações de família, de vizinhança, mas também em toda e qualquer formação humana que explicite a sua dinâmica de identificação e diferenciação) era controlado principalmente pela sociedade civil, que Hegel entendia como o conjunto das instituições capitalistas para a organização do trabalho. Nela se destaca o papel sociabilizante e educativo do trabalho. Na contemporaneidade, emergem outros dispositivos de neutralização das tensões comunitárias, realçando a produção de desejos, identidades e necessidades.

O principal deles é a mídia, que se constitui como uma nova forma de vida, um novo bios, uma esfera existencial inteiramente regida pela economia monetária. Esta forma contemporânea, apesar de simular a naturalidade do mundo, afasta-se das condições concretas ou real-históricas de existência, movendo-se portanto numa esfera cada vez mais abstrata com relação ao trabalho e às formas concretas de existência. A mídia é uma espécie de "boca de Deus", um deus chamado Mercado, que não mais pode ser entendido apenas como um lugar técnico para compra e venda de mercadorias e circulação de dinheiro, mas um lugar que vetoriza as relações sociais, no instante histórico em que se enfraquecem ou fenecem a sociedade política e a sociedade civil.

Excesso animalesco

Há um estado de violência ou violência invisível presente nessa modelização abstrata com relação à diversidade humana e territorial. Vivemos numa economia plenamente monetária, onde tudo passa pelo dinheiro, onde o progresso se mede pelo avanço do capital, mas onde não existe moeda para todo mundo, nem as mesmas possibilidades de acesso aos ganhos do capital.

Nas zonas periféricas a essa ordem, que é principalmente uma linguagem de hegemonia, assiste-se à constituição de focos de reação anômicos, caracterizados por atos de violência ? a violência visível, anômica, dos assaltos, dos assassinatos, dos ilegalismos. Reage-se às condições reais geradoras de frustrações: desemprego, falta de dinheiro, péssimas condições de vida, serviços públicos precários, falta de horizontes existenciais; reage-se à falta de inserção na nova dinâmica identitária acionada pelo mercado; reage-se principalmente à brutal indiferença das elites dirigentes.

A violência é uma espécie de contra-linguagem comunitária, em que aquele que não tem moeda ou não está discursivamente inserido na esfera da hegemonia (por educação, por capital social) conhece a exceção soberana que incita à desconstrução das relações sociais. Ali se muda o foco de quem manda. A soberania implica afastar-se da ordem vigente para negá-la e impor uma outra, caótica, terrível.

A crueldade, nosso segundo fato-categoria, emerge no interior da contra-linguagem dessa comunidade negativa, que se afirma como soberana na paisagem do caos institucional. É pequena a distância entre o franco-atirador bósnio que alveja mulheres e crianças na fila do pão e o traficante que ateia fogo aos passageiros de um ônibus. Crueldade vem de crudus, cru, ou seja, uma fase da alimentação, mas também da civilização, em que se está mais próximo do animal.

A crueldade é o excesso animalesco da violência. Ela é índice de que a própria violência já perdeu sua finalidade histórica (a construção de uma outra ordem, a obtenção de um butim), derivando para um ódio surdo, que atesta a dissolução do pacto comunitário. À crueldade da indiferença culta das elites (governantes, intelectuais, os bem aquinhoados pela renda etc.) contrapõem-se a inimizade e a crueldade como único laço social possível.

O que tem-nos dito a leitura cotidiana dos jornais é que estamos começando a viver essa realidade nos maiores centros urbanos brasileiros, em especial o Rio de Janeiro e São Paulo.

(*) Jornalista, escritor e professor-titular da Universidade Federal do Rio de Janeiro