Tuesday, 15 de October de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1309

O Congresso e a boca-de-fumo

TELEJORNALISMO

Paulo José Cunha (*)

O metalúrgico Luiz Inácio Lula da Silva é um homem sens&iacuiacute;vel. Outro dia contou que não resiste às lágrimas quando escuta Lobato, o viciado em álcool e drogas da novela O Clone, revelar no divã do psicólogo sua luta contra o vício. Poucos dias depois, a imprensa noticiou o crescimento do número de viciados que, cada vez mais jovens, buscam ajuda para se livrar do vício, motivados pelo drama de Mel, a menina rica que entrou para o submundo das drogas na novela de Glória Perez, hoje ocupando as mais altas posições no ibope.

A televisão, a boa televisão, devia ser isto ? um veículo que consegue associar com eficiência o entretenimento com a prestação de serviço. Um eficiente mecanismo de mobilização social. Um precioso aliado na luta contra a opressão, o vício, a discriminação, a corrupção, a miséria. Tudo isto sem perder ? pelo contrário, agregando ? audiência. O que Glória Perez vem fazendo toda noite na televisão brasileira é o desmonte do mito de que audiência é filha do vale-tudo. De que televisão de sucesso precisa abdicar dos conteúdos educativos. De que é impossível o casamento entre audiência (leia-se faturamento) com o que preceitua a Constituição no capítulo que trata das funções educativo-culturais da tevê.

Pois Glória Perez, escancaradamente, à vista da sociedade, dos estudiosos, dos professores e, sobretudo, dos departamentos de marketing das emissoras, vem provando e comprovando que é possível ser campeã de audiência sem precisar baixar as calças à imbecilidade dos brothers. Por isto mesmo, Glória Perez está virando uma pedra no sapato dentro da própria Rede Globo ao provar com extrema competência e ousadia que qualidade é uma boa rima para popularidade. E tudo isto no momento em que a terceira maior rede de televisão do mundo sucumbe vergonhosamente ao mercado com as diversas versões dos reality shows que invadiram sua grade de programação.

Convenhamos que Glória Perez, ao ocupar com sua novela que presta relevante serviço público o primeiro lugar da audiência, tornou-se um bicho esquisito dentro de uma casa que trabalha em sentido contrário, buscando o faturamento via mundo-cão, com gente comendo baratas ou planejando golpes sob o olhar de trocentas câmeras para faturar um troco legal no fim da maratona. Daria um braço para ver um debate entre o diretor do Big Brother e a Glória. A guerra entre a baixaria e a tevê responsável. O duelo entre a burrice que vende entretenimento de buraco de fechadura e a competência que alavanca o faturamento com o resgate da dignidade humana. Não vou ver. Quem teria interesse nisso?

Que não fiquem nas lágrimas

Ao ferir de morte a ordem natural das coisas, Glória Perez oferece, de graça, o argumento que faltava para a elaboração por algum candidato de uma plataforma eleitoral efetivamente comprometida com as funções constitucionais da televisão brasileira. A Constituição, no artigo que trata da destinação educativo-cultural dos meios eletrônicos, é hoje refém de um bando de engraxates travestidos de parlamentares que, com raras e conhecidas exceções, não têm feito mais do que lustrar as botas dos proprietários das principais emissoras. E se revelado incapazes de instalar o Conselho de Comunicação Social, criado há 14 anos, controlar com o rigor que a lei exige a concessão de novos canais ou exigir a prestação de contas para a renovação dos atuais. Faz tempo que o Legislativo, de controlador, passou a controlado. Para não correr o risco de entrar no index dos indesejáveis e sair do foco dos holofotes (que, para políticos, exercem a mesma função das drogas pesadas), raros são os parlamentares, inclusive na esquerda, com coragem para enfrentar a hidra. Mesmo os que quiserem, como qualquer drogado, vão precisar de uma ajuda de fora para ter sucesso.

Resta, pois, ao futuro ocupante do 4? andar do Palácio do Planalto, chamar a si a responsabilidade pela situação e oferecer mecanismos capazes de romper o ciclo vicioso instalado nas duas casas do Congresso, onde a grandes redes mantêm pelo cabresto bancadas tão fiéis que alguns de seus membros são até seus sócios na exploração dos serviços de rádio e tevê.

Lula já chorou. Aposto que os outros candidatos, se forem igualmente sensíveis a causas justas como a luta contra a dependência, também já devem ter chorado. Pois que não fiquem nas lágrimas. Com o drama de Mel e Lobato, estamos aprendendo que chorar é bom mas é pouco para vencer a dependência. E o Congresso, em sua maioria, tornou-se assim uma espécie de dependente dos holofotes. Precisa, portanto, de uma força, um impulso, uma mãozinha que o retire da imobilidade e lhe permita se livrar (e nos livrar) da droga. Ou será que não tem ninguém aí com coragem ou vontade pra enfrentar o poder dos donos dessa boca-de-fumo?

(*) Jornalista, pesquisador, professor de Telejornalismo, diretor do Centro de Produção de Cinema e Televisão da Universidade de Brasília. Este artigo é parte do projeto acadêmico “Telejornalismo em Close”, coluna semanal de análise de mídia distribuída por e-mail. Pedidos para <upj@persocom.com.br>