Sunday, 28 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1285

O coqueiro de Voltaire

 

Reuniu-se em Macau, entre 7 e 9 de junho de 1999, o IV Congresso Internacional do Jornalismo de Língua Portuguesa, presidido por Alberto Dines e organizado pelo Observatório da Imprensa Centro de Estudos Avançados de Jornalismo (Portugal), em parceria com o Labjor (Brasil) e o Observatório da Imprensa (Brasil). Sob o tema geral “Jornalismo, palavras e imagens, encontro de culturas”, profissionais de empresas jornalísticas de Portugal, Brasil, Angola, Moçambique, São Tomé e Príncipe, Guiné-Bissau e Cabo Verde abordaram as questões mais atuais da atividade jornalística na perspectiva da aproximação cultural potenciada pela penetração dos media no espaço cultural lusófono. O próximo Congresso será realizado em 2000, em Recife (Brasil).

 

(*)

Alberto Dines

Costuma-se dizer de nós, jornalistas, que somos “homens de ação”. Ágeis, rápidos, eficientes, ousados. Somos mestres da síntese, artífices dos prazos e do tempo, senhores do imediatismo. Ainda não atinei com o sentido e a intenção dessas qualificações. Não sei se dizem isso de nós como elogio ou velada reprovação. Parece-me que é velada reprovação. Pois nesta era da velocidade e das máquinas fabulosas, nesses tempos em que tudo é possível, ser ágil, rápido, eficiente e ousado não chega a ser atributo especial nem “vantagem competitiva”. Basta acomodar-se ao ritmo geral e deixar rolar (como dizemos no Brasil). Ou abancar-se no comboio compulsório da modernidade.

Chego a pensar que estes apostos sobre agilidade, velocidade e ousadia são, na verdade, apodos. Por acreditarem que jornal de ontem só serve para embrulhar peixe, suspeito que colocam-nos na categoria de maratonistas como forma sutil de discriminação. Não dizem que somos capazes de converter informação em conhecimento. Não reconhecem que temos condição de converter periodicidade em perenidade. Recusam admitir que somos aptos a comparar, referir, prospectar. Falam nos media, mas não nos enxergam como mediadores, agentes de transformação.

Falei antes em maratonistas. Deveria dizer malabaristas. É assim que nos vêem os políticos, os economistas hoje convertidos em senhores da verdade e os acadêmicos. Nesta era do espetáculo somos vistos como os protagonistas do grande circo da notícia.

Acho que temos parte da culpa. Contribuímos de bom grado, sem reclamar e até com gosto, para compor essa imagem pública de trepidação e trivialidade.

E como penso que também sabemos pensar, como tenho a certeza de que, além da ousadia, rapidez e eficiência também somos capazes de refletir, proponho aqui uma reflexão sobre nós mesmos. O evento que nos reúne é designado como congresso. Quarto Congresso Internacional de Jornalismo em Língua Portuguesa. No entanto prefiro classificá-lo como colóquio. A palavra colóquio é menos solene e ritualística. Colóquio nos remete a Sócrates, Platão e Aristóteles, remete a encontro. Encontro remete a diálogo. E diálogo é uma de ferramentas do nosso ofício, só que tem o nome de entrevista. Colóquio é entrevista plural, intercâmbio generalizado de reflexões.

Tigre virou gato

Começo minha reflexão pelo começo: onde estamos? O que fazemos aqui? Viemos aos antípodas para fazer exatamente o quê – ver o mundo de ponta-cabeça? Em primeiro lugar viemos conhecer este marco do espírito, da bravura e do engenho português que é Macau. Dentro de poucos meses, este território deixará de ser formalmente português. Falo em Portugal mas penso nos seus filhos, o mundo lusófono – quase 200 milhões de pessoas espalhadas pelos quatro cantos do mundo falando a mesma língua e, não apenas isso, procurando através do idioma compartilhar os mesmos valores. Portugal do colonialismo acabou. Acabou a escravidão, acabou a Inquisição. Macau deixará de ser território português no exato momento em que Portugal assume perante o mundo lusófono o papel senão de pai, pelo menos de irmão mais velho. E como sabemos nem sempre foi assim.

Ao Brasil a Coroa só permitiu instalar uma tipografia 308 anos depois da Descoberta e isto porque na frota que trouxe D.João VI de Lisboa para a Bahia, e depois o Rio, havia uma prensa recém-comprada na Inglaterra, encaixotada e pronta para funcionar. Pode-se dizer que o Brasil entrou na era de Gutenberg graças à providencial expansão napoleônica.

Da mesma forma pode-se dizer que graças a um efeito perverso da globalização da economia, a Indonésia de tigre passou a gato e Timor pode afinal enxergar o fim destes 25 anos de terror. Significa que as histórias às vezes demoram para chegar ao desfecho, mas a História é caprichosa e infalível: quando menos se espera eis-nos diante da realização de nossos sonhos.

Aqui chego ao ponto central da minha reflexão. Gostaria de denominá-lo “O coqueiro de Voltaire”. Imagino que os amigos e amigas entreolham-se e comentam em voz baixa: lá vem os brasileiros como uma nova telenovela.

O título é ótimo mas não é de brasileiros. Nem é de telenovela. É título de um livro recém-publicado nos EUA e Inglaterra, de um autor que é repórter e dos bons, mas também é crítico de idéias e de livros. Trabalhou aqui perto, na Índia, e colabora nas principais publicações inglesas e americanas. Chama-se Ian Buruma, nasceu na Holanda e por suas veias misturam-se a Alemanha, a Inglaterra e os dois mil anos de judaísmo.

Agentes de transformação

O Coqueiro de Voltaire não trata de botânica. Mas trata da Anglofilia, a fascinação pela Inglaterra, fenômeno não apenas europeu mas universal. A obra gira em torno de uma proposição do filósofo Voltaire quando chegou a Londres, em 1726. Entusiasmou-se com o que lá viu: o império da razão, a tolerância religiosa, e o equilibrado sistema político inglês. Então imaginou que aquele sistema político, para ele o melhor do mundo, poderia ser exportado. Inclusive para a sua França querida, absolutista e despótica. Os seus conterrâneos, blasés e céticos como sempre, objetaram alegando que um coqueiro trazido da Índia não poderia desenvolver-se em Roma.

Ao que o filósofo iluminista contestou: esses coqueiros levaram muitos séculos até se aclimatarem à Inglaterra. É prova de que poderiam ser levados para outras paragens. E, como exemplo de paragens remotas e atrasadas, Voltaire citou a Bósnia e a Sérvia. Para Voltaire o que importava era a vontade de começar a plantá-los agora.

A Teoria do Coqueiro, de Voltaire-Buruma, gira em torno da discussão: as idéias ou os sistemas podem ser considerados “nativos” e exclusivos de certos lugares? Só prosperam em condições e circunstâncias específicas? Ou fazem parte de um movimento transformador e evolutivo que pode produzir repetições? A democracia é essencialmente inglesa ou pode ser reproduzida?

Já naquela época, antes mesmo do Iluminismo, Voltaire já se assumia como um iluminista. Isto é, um humanista. Acreditava no potencial do homem, na sua capacidade de superar dificuldades climáticas ou culturais. Acreditava que o homem é um transformador.

Esta parábola voltairiana tem um sentido especial para nós jornalistas. Coqueiros transplantam-se. Idéias também se transplantam. Acredito nós jornalistas, nós os mediadores, somos os agentes dessas milagrosas transformações. Somos essenciais para que a metáfora dos coqueiros possa valer não apenas para a democracia, mas também na cultura e no aperfeiçoamento do ser humano.

Em nossos países deixamos a azáfama das redações, essa obrigação de correr esbaforidos atrás de coisa nenhuma. Neste encontro, que aqui se inicia na véspera de mais um Dia de Camões, convém pensar também em Voltaire e na sua cândida e poderosa crença nas qualidades humanas.

(*) Discurso de abertura proferido por A.D., presidente do IV Congresso Internacional do Jornalismo de Língua Portuguesa, em 7 de junho de 1999.

 

Rui Araújo

“Fui intimada a testemunhar. E cheguei rapidamente à conclusão – à única conclusão possível – que não devia testemunhar porque se o fizesse não podia continuar a trabalhar como repórter – ou pelo menos continuar a ser aquilo que eu considerava ser um repórter. Um repórter não denuncia fontes! É uma questão de consciência.”

Palavras de Loretta Tofani, do Washington Post. Pouco importam as fontes em causa. Neste caso eram estupradores.

Ben Bradlee, o editor de Loretta Tofani – um dos homens da investigação do caso Watergate – surpreendentemente considerava que a repórter devia testemunhar, denunciar as fontes. Para Bradlee “os jornalistas têm responsabilidades, como qualquer bom cidadão”.

O caso foi então para tribunal. Loretta Tofani não testemunhou e o jornal foi forçado a apoiá-la. Os estupradores foram condenados.

A jornalista trabalhou durante dez anos para o Washington Post e ganhou o Prêmio Pulitzer de reportagem de investigação em 1983. Independentemente dos princípios, seriedade e coragem da repórter americana que agora trabalha para o Philadelphia Inquirer, aquilo que está em causa é a independência fora e dentro da sala de redação.

A relação com as fontes é uma questão atual e controversa. Há pelo menos quatro regras que é importante respeitar:

1) Não manter relações pessoais com as fontes.

2) Não dar justificações às fontes. E também não as aconselhar.

3) Demonstrar transparência. Tanto em relação às fontes como aos próprios leitores – que devem sempre poder determinar a credibilidade de uma fonte anônima, entender a razão que levou a fonte a falar e ainda conseguir situar as suas afirmações num contexto mais amplo.

4) Não divulgar a fonte nunca – à exceção das situações extremas, vidas em perigo (os jornalistas não são polícias). Nunca divulgar uma fonte mesmo quando essa mesma fonte não é considerada “fiável”… porque não há fontes fiáveis. Há, isso sim, repórteres que não recortam a informação, repórteres que não dominam a matéria; e há ainda repórteres inconscientes ou sem princípios.

O relacionamento com as fontes é uma questão atual – os jornalistas portugueses que o digam. Os dois casos ocorridos no início de junho em Portugal – Diário de Notícias e Independente – contrariam de maneira inequívoca as quatro regras que acabei de apresentar e são tanto mais preocupantes quanto as direções dos dois jornais se associaram – explícita ou silenciosamente – à atuação vergonhosa dos jornalistas – porque aquilo que aconteceu é uma vergonha.

Crise interna

É tempo de começar a chamar as coisas pelos nomes, sobretudo quando se trata da classe jornalística. O silêncio cúmplice, aqui, é sinônimo de mediocridade.

No Diário de Notícias, Margarida Maria não só terá denunciado uma fonte como também terá divulgado contatos on e off the record com essa mesma fonte. E mais: terá permitido a Ribeiro Ferreira e a Rudolfo Rebelo escutar uma conversa com Fernando Negrão, então diretor da Polícia Judiciária, sem este saber – a pretexto da fonte não ser fiável.

Os jornalistas e a Direção do Diário de Notícias não só tiveram uma atitude pouco transparente e pouco leal em relação a uma fonte como também traíram essa mesma fonte: pecaram por covardia – a intimidação, se a houve, foi resultado. Excluo a má-fé.

Curiosamente, as informações fornecidas por uma fonte considerada “pouco fiável” são publicadas no DN sem serem minimamente recortadas. Em nome da defesa de uma estabilidade que é só aparente, a Direção do jornal apóia a jornalista. Como dizia há uns anos José Manuel Barata Feyo, “não é por se esconder o mar que ele deixa de existir”.

O DN aparentemente evitou – para já – uma crise interna mas está confrontado com algo mais grave que podia ter evitado e não evitou: uma página negra do jornalismo português que em qualquer país democrático com instituições de controle – chamem-lhe ordem, alta autoridade ou o que quiserem – teria como conseqüência os jornalistas perderem a carteira e não poderem exercer de fato a profissão e ainda um jornal e os seus jornalistas ficarem sem fontes.

Jogo diário

Na última edição do Independente, Torcarto Sepúlveda não só divulga uma conversa off the record como também denuncia a fonte, que por acaso até é um jornalista, Joaquim Vieira. É grave.

Não deixa também de ser lamentável o silêncio do Sindicato dos Jornalistas, sempre tão preocupado em denunciar ofensivas e manobras, incluindo outras guerras como a do Kosovo.

A competição e a corrida desenfreada atrás do scoop [do furo] não justificam tudo, sobretudo quando divulgar fontes significa “tramar” pessoas que de alguma forma confiaram em nós.

Há fontes que perdem empregos, a reputação, a liberdade. Algumas, em climas menos moderados, perdem a vida.

“Tramar” fontes é questionar a nossa credibilidade. A relação entre o repórter e a fonte é delicada – em nome da liberdade de informar – um tema decididamente atual em Macau. Em nome da liberdade de informar e da nossa credibilidade é vital examinar esse relacionamento.

O mesmo acontece relativamente à relação com a empresa. Manter a independência em relação às fontes e à empresa é extremamente difícil, senão impossível. É pois importante tentar reduzir a dependência. Como? Através de muitas formas: mais fontes – no top e na periferia das instituições e não só. O jornalista deve dominar as disciplinas que trata, é preciso haver mais… mais repórteres com capacidade para ver, ouvir, escutar e pensar em vez de acreditarem em tudo o que lhes dizem. Mais tempo, também.

É verdade que inúmeras fontes têm por vocação influenciar os jornalistas e através deles a opinião pública – em nome da conquista do Poder, da apetência pelo dinheiro ou da defesa dos princípios – todos e mais alguns.

Há fontes que procuram usurpar o papel de advogado do diabo – que é o nosso –, ditar os termos da interação, determinar as condições de divulgação da notícia, o timing… Tentam persuadir, manipular os jornalistas. É o jogo. Um jogo que questiona diariamente a nossa independência e o distanciamento entre o jornalista e a notícia.

A informação é poder. A intenção dos governos, das empresas, das instituições e dos partidos – a lista não é exaustiva – é utilizar a informação, escondê-la, manipulá-la. A nossa missão é contrariar o poder. O verdadeiro problema é que, hoje, são poucas as empresas preocupadas com a qualidade do jornalismo.

Max Frankel, um ex-executivo do New York Times, disse isto mesmo há umas semanas. É banal? É. Mas é importante não esquecer.

“No comments”

A independência em relação às empresas é outro problema. Jornalismo não é aquilo que fazemos, é aquilo que somos. E o que não somos é invertebrados. É essencial continuar a demonstrar a diferença entre aquilo que fazemos e tudo o que produz informação. Por mais alheadas que as empresas estejam da deontologia, os jornalistas devem demonstrar profissionalismo, consciência e agressividade.

Não é fácil, não se ganha sempre, mas pode-se sempre tentar…

A questão das fontes é problemática no mundo inteiro. É um erro considerar que as fontes são aliadas dos jornalistas. Não são. Não podem e não devem sê-lo. O fato é que cada reportagem requer fontes várias e quanto mais diversificadas elas forem melhor para toda a gente.

Isto é a teoria. Um estudo recente do Committee of Concerned Journalists indica que 40% das reportagens efetuadas nos Estados Unidos durante os primeiros seis dias do escândalo Clinton-Lewinsky, e baseadas em fontes anônimas, tinham como fonte uma única pessoa. Apenas uma citação em cada cem tinha duas ou mais fontes identificadas.

Um estudo realizado seis meses depois pelo mesmo Comitê demonstrou que 59% das fontes anônimas eram caracterizadas nestes termos “fontes disseram”, “fontes contaram ao nosso jornal”. E menos de dois em cada dez testemunhos permitiam ao leitor ter uma idéia do gênero de fonte.

As fontes anônimas são as mais perigosas. Para a revista de jornalismo da Universidade de Columbia, utilizar fontes anônimas é como escorregar numa calçada molhada. Quanto mais depressa for, pior. “Primeiro, é a fonte anônima mas bem identificada; depois, anônima mas fracamente identificada; em seguida, anônima mas sem identificação; anônima mas falsamente identificada; anônima e protegida com o ‘no comments’”.

O mais grave ainda é a fonte anônima inventada. Para o Committee of Concerned Journalists, é “uma forma de enganar os leitores para os informar”.

A credibilidade destas fontes é relativa; a nossa é nula. É por isso que os jornalistas do Orange County Register deixaram de poder mencionar fontes anônimas. É uma solução. Drástica. Não é a única.

Relação desejável

A ausência de fontes permite, por vezes, melhor jornalismo de investigação. Um exemplo: em 1987, passei quatro meses a investigar para a CBS News, a participação portuguesa no Irangate. Eric Engberg, da editoria Internacional da emissora, em Washington, pediu-me para confirmar se os aviões de algumas companhias aéreas a trabalhar para a CIA tinham passado por Lisboa.

Contactei a ANA, solicitei a lista dos vôos civis das referidas companhias – eram umas vinte. Zew Blaufucks, solícito, prometeu-me a lista, mas a data anunciada para a entrega da informação nunca chegou. O funcionário da ANA informou-me que tinha recebido ordens da Secretaria de Estado dos Transportes para não me facultar o documento.

Contactei a Secretaria de Estado dos Transportes. Resposta? Também tinham recebido ordens. De quem? Não disseram. Em contrapartida remeteram-me para os tribunais. Com sorte teria a lista uns meses ou anos depois.

Contactei uma fonte do aeroporto de Lisboa. O homem fez-me passar pelo seu sobrinho. Consultei os originais dos vôos, umas folhas azuis, formato A4 horizontal, com nomes de companhias, origem, datas, horas de chegada e partida, nomes da tripulação e dos passageiros, carregamentos, destinos finais. Todos os documentos de uma das companhias referiam a Guatemala, “defense equipment”. todos exceto um: indicava como destino final ILO.

Parti do princípio que tinha tudo ido para ILO… Ilopango, a base dos “contras”. Depois, foi fácil confirmar o resto.

Sem o silêncio da fonte oficial, a recusa ilegal e peremptória da ANA, uma empresa pública, nunca teria conseguido descobrir o lapso ou o zelo de um funcionário do aeroporto. Deu mais trabalho mas resultou em cheio.

Como referiu Bill Kovach, um antigo editor do New York Times – neste momento é o presidente da Nieman Foundation For Journalists at Harvard University – “é vital examinar a relação repórter-fonte e determinar de que forma influencia o nosso trabalho hoje. Qual a relação social aceitável entre o repórter e a fonte? Que negociação é aceitável? Que apoio o repórter pode dar à fonte – incluindo o apoio financeiro? Pode um repórter enganar uma fonte, expor uma fonte? E se sim, quando e por quê?”

É o debate que proponho.

 

José Pedro Castanheira

Em 21 de março de 1999, participei num dos acontecimentos mais engraçados e estimulantes dos últimos anos, na tripla qualidade de jornalista, de cidadão e de atleta. Foi a IX Meia-Maratona de Lisboa, mais conhecida por Corrida da Ponte, pelo fato de começar do outro lado da Ponte 25 de Abril sobre o Tejo – o único dia do ano, aliás, em que ela pode ser percorrida a pé (e olhem que vale a pena). Desculpem-me a imodéstia, mas foi um acontecimento interessantíssimo, repito, mesmo em termos jornalísticos. Passo a apresentar sete razões explicativas – e outras poderia encontrar.

1) Foi a maior corrida jamais realizada em Portugal, envolvendo cerca de 22 mil pessoas, desde os mais famosos campeoníssimos até lentos amadores como eu.

2) Este número significa, igualmente, a maior participação popular de sempre num evento desportivo, já que as dezenas de milhares de pessoas que todos os domingos vão aos estádios de futebol (e chegaram a ser 120 mil nos bons velhos tempos do glorioso Benfica) não estão exatamente a praticar desporto, mas tão só a assistir a um espetáculo.

3) Pela primeira vez em Portugal, uma corrida foi aproveitada para fins de solidariedade ou de caráter humanitário (como se queira). Tratou-se da adaptação de uma experiência muito comum na Europa e nos Estados Unidos e que atinge o ponto mais alto na célebre Maratona de Londres, que constitui o maior peditório que se realiza anualmente no Reino Unido, a favor de causas tão variadas como a erradicação das minas anti-pessoas, um programa de investigação da doença de Alzheimer, a preservação do rinoceronte branco ou a independência do Tibete.

4) A causa escolhida para a Meia Maratona de Lisboa dificilmente poderia ser mais consensual e simultaneamente mais mediática: a Associação Acreditar, que se destina a apoiar as crianças com câncer.

5) O motor desta iniciativa foi um grupo de pessoas, organizado no absolutamente informal Clube do Stress – médicos, advogados, economistas, publicitários, jornalistas – , cuja figura de proa é o atual secretário de Estado da Comunicação Social, Alberto Arons de Carvalho.

6) Como “madrinha” desta corrida muito especial, fomos buscar Rosa Mota, a melhor maratonista de todos os tempos, campeã européia, mundial e olímpica da distância, que correu integrada no pelotão do Clube do Stress e com uma camiseta especial a favor das crianças com câncer.

7) Como resultado, conseguiu-se angariar – junto de empresas privadas e públicas, departamentos oficiais e simples particulares – uma verba de 31 mil contos [cerca de 160 mil dólares], o que excedeu largamente todas as expectativas, mesmo as mais otimistas.

Estamos, portanto, perante uma boa mistura jornalística. É verdade que não houve nem mortos, nem violência, nem sexo, mas ainda assim as sete razões que enunciei davam para uma notícia com fartos ingredientes. Resumindo: a maior corrida do país, aproveitada para uma iniciativa ímpar e inédita, que era ajudar as crianças com câncer, envolvendo um membro do Governo e a mais famosa atleta portuguesa, e de que resultou mais de trinta mil contos.

Os resultados desta iniciativa foram muito variados.

No plano atlético, e se é certo que a Rosa Mota se limitou a aproveitar os 21 quilômetros da prova para fazer um treino morno, a maioria dos atletas [profissionais] que aderiram a esta iniciativa (e foram quase 80) bateram os seus recordes pessoais. Foi gente que levou o seu compromisso a sério, que treinou durante meses, se esforçou e suou, que não só participou como chegou ao fim com o melhor tempo possível.

No plano da cidadania, foi extremamente agradável e reconfortante registrar a adesão de tantas empresas, instituições e simples particulares (alguns deles anônimos), para uma causa de caráter humanitário de óbvio interesse público. E sobretudo verificar a satisfação com que a idéia foi acolhida por muitos pais e outros familiares dos muitos milhares de crianças vítimas de câncer, de Portugal e dos países africanos de expressão portuguesa.

No plano informativo, o saldo foi pouco menos que um desastre. A iniciativa prolongou-se por cerca de cinco semanas, mas os telejornais dos quatro canais abertos de televisão portuguesa ignoraram-na pura e simplesmente. O serviço público, por exemplo, remeteu-a para um espaço secundário de um secundário programa desportivo do segundo canal. As rádios portaram-se um pouco melhor, sobretudo a pública Antena 1.

Impacto humanitário

A imprensa dedicou ao caso um tratamento muito pouco homogêneo. Dos três jornais diários desportivos, um – O Jogo – não lhe deu uma única linha. O Record fez-lhe três envergonhadíssimas referências, a maior das quais tinha 17 linhas, uns 700 caracteres, incluída (vá-se lá saber o porquê) numa seção intitulada “Pessoas & Negócios”. Já A Bola [o maior e mais tradicional jornal esportivo português] dispensou-lhe um tratamento bastante generoso, para o que contribuiu decisivamente o envolvimento pessoal do seu diretor.

Entre a imprensa diária generalista, a maior cobertura pertenceu ao Correio da Manhã, o que se explica pelo fato de ser o jornal oficial da Meia Maratona. O Jornal de Notícias – o maior diário do país – deu-lhe uma única notícia, de mil caracteres. Das duas revistas dedicadas exclusivamente ao atletismo, o melhor que conseguimos foram duas linhas numa foto-legenda em uma delas. A melhor cobertura, em termos de repercussão pública, foi uma simpática reportagem num programa de uma televisão comercial (a SIC) sobre as coisas e modas do jet set

Poderia continuar a apresentar muitos mais dados, sobre como os media não cobriram este acontecimento. Apesar do apoio empenhado e desinteressado de uma das mais cotadas agências de comunicação do mercado e dos inúmeros contatos pessoais mantidos com diretores, editores e chefes de redação, que fizeram o seu melhor para dar ao caso alguma projeção. Mas não me vou lamentar mais. Darei apenas mais um dado, até porque também revela um outro aspecto da nossa comunicação social: a sua preguiça e incompetência. Todas as notícias se basearam ou em press releases, ou em conferências de imprensa, ou, na melhor das hipóteses, em entrevistas com os principais estrelas da corrida. Não houve um único inquérito sobre a importância deste gênero de iniciativas. Não houve uma única investigação sobre este tipo de corridas no estrangeiro e o seu impacto desportivo, social e humanitário. Não houve uma única reportagem junto da Associação Acreditar e sobre crianças com câncer, muitas delas condenadas, e que estão depositadas nos institutos de oncologia de Lisboa, Porto, Coimbra ou Funchal. Não houve nenhum órgão de comunicação que tivesse feito uma reportagem sobre o interior da própria corrida – e posso garantir-vos que daria uma excelente reportagem.

Dever e obrigação

Esta história – e espero não vos ter cansado com tão longa maratona – é um caso que ilustra particularmente bem o problema dos critérios jornalísticos. Diria mesmo: o da sua, por vezes flagrante, inadequação à realidade e aos interesses e quotidiano da comunidade que é suposto servirem.

Quatro breves notas para eventual discussão:

1) As principais fontes da nossa informação são de caráter institucional. É a administração pública. São os partidos políticos. Os clubes desportivos. Os grandes grupos econômicos. A sociedade civil – os sindicatos, as associações de solidariedade, as organizações não-governamentais, os grupos de cidadãos – têm uma dificuldade enorme em chegarem aos media, ocupados com os nomes consagrados, monopolizados pela agenda oficial. Novas fontes, fora do esquema ritual e tradicional da informação institucional, são, por vezes, encaradas com desconfiança, com enfado, guardados na gaveta ou enviados diretamente para o lixo. Quando surge um grupo de maduros, extra-campeonato, fora dos quadros dos clubes ou das associações ou federações de atletismo, ou das marcas desportivas, com objetivos diferentes dos recordes, são votados muitas vezes ao esquecimento ou ignorados.

2) Sempre julguei que a informação estivesse aberta àquilo que se apresenta de novo, de diferente, de original, de inédito, de contrário à rotina. Estava errado. Quando o alpinista João Garcia subiu ao cume do monte Everest e quase ia morrendo na difícil e penosa descida, eu imaginei que teríamos a comunicação social portuguesa em peso à procura dele, para mostrar este novo herói-mártir, para contar a sua história com todos os detalhes e exibir as fotografias que conseguiu fazer no teto do mundo. Já passaram umas três semanas e ainda não vimos o homem nem as suas famosas fotografias – vamos vê-las no próximo Expresso, passe a publicidade… E não duvidem: se houve coisa, nos últimos meses, a prender e a emocionar a opinião pública portuguesa foi o feito épico e trágico do nosso alpinista. Novo, diferente, original, inédito – estavam lá todos os ingredientes que, julgava eu, deveriam fazer as delícias de qualquer jornalista, de qualquer jornal, de qualquer televisão. Estava enganado: apesar de rotineiro, os media lamberam-se foi com mais um campeonato nacional de futebol ganho pelo Porto.

3) Mas, afinal, o que é mais importante? Os acontecimentos em si, e o seu enquadramento em termos de causas e efeitos, ou a valoração que deles é feita, os preconceitos com que são apreciados, os juízos e opiniões que suscitam? Uma boa questão, sem dúvida. É curioso e revelador que das três notícias publicadas no diário Público sobre aquela meia-maratona, nenhuma tenha sido inserida na rubrica desportiva – foram todas para a página de sociedade. De onde se deduz que, de acordo com este critério, correr 21 quilômetros não é desporto – só é desporto quando se é profissional do dito ou se é campeão e recordista. Da mesma maneira, a revista Nova Gente – a mais antiga publicação lusa sobre a beautiful people – meteu a corrida numa salsada sobre “festas” e “acontecimentos sociais”, ao lado da apresentação de uma nova coleção outono/inverno da Casa Ayer, da enésima homenagem ao craque Eusébio e de uma inevitável party lisboeta a propósito da entrega do Oscar, em Hollywood.

Eu sei que o processo informativo, estudado e investigado por tantos professores e universidades, é uma coisa complexa e complicada; mas tanto também não! Fatos são fatos, aprendi eu, quando entrei para o jornalismo, já lá vão 25 anos. Hoje continuo a pensar que este deve ser o critério essencial. Não o único, decerto. Mas o determinante, o mais importante, o prevalecente.

Ao ler muitas crônicas parlamentares de jornais diários, fico apenas a saber a avaliação do repórter sobre o discurso do primeiro-ministro, o juízo sobre a eficácia do protesto da oposição, a opinião sobre uma viva polêmica parlamentar. Infelizmente, quase nada se fica a saber sobre o que realmente disseram o chefe do Governo, o líder da oposição ou os deputados que pelejaram bravamente.

4) Quando se pede uma definição do que é uma notícia, costuma-se desenterrar o exemplo clássico do homem que mordeu o cão – vocês sabem… À beira de um novo milênio, os media decidiram levar a um extremo negativo esta definição simplista. Nas páginas dos jornais, nos flashes radiofônicos, nos telejornais, a esmagadora maioria das notícias – perdoe-se-me agora o simplismo – são más notícias. São notícias de conteúdo desagradável, de pendor negativo. São as guerras, os crimes, as catástrofes, as doenças, a corrupção, os negócios duvidosos, as traficâncias, as arbitrariedades, as prepotências, sei lá que mais…

Tudo isto, entendamo-nos, são notícias. Que os media têm o dever e a obrigação de dar e de trabalhar. Mas é só isto que se passa na nossa comunidade, na cidade, no país, no mundo?

Peculiarísssimo território

Há uns anos, fiz um trabalho sobre um ambicioso projeto governamental de construção de centros culturais e escolas portuguesas na África e no Brasil. Não era, obviamente, uma daquelas coisas que dão água na boca, mas ainda assim reportava um daqueles elementos estruturantes de uma política cultural ativa, essencial para o futuro da lusofonia e dos povos de fala portuguesa. Foi uma carga de trabalhos para a publicar. A notícia saiu na metade de baixo de uma longínqua página par – e foi preciso uma par de berros, uns murros na mesa e um puxão de orelhas a editores e diretores para sacar uma ridícula chamada na primeira página. Não duvido que, com os critérios dominantes, uma carta aberta de um qualquer leitor de português em Pequim, os protestos de alguns alunos em Providence, ou o atraso numas obras na escola de Maputo teriam um tratamento noticioso bem mais nobre.

Durante quase um ano, os media nunca deixaram de falar (e bem, como lhes competia) na guerra civil na Guiné-Bissau, que nunca foi visitada por tantos jornalistas. A guerra acabou. Os problemas persistem. Desde há um ano que o país não tem praticamente eletricidade, água, telefones… Mas os jornalistas decidiram levantar acampamento. A reconstrução de um país, a aprendizagem da democracia, o renascer da esperança deixaram de interessar aos media, convertidos ao espetáculo, à superficialidade, à espuma dos acontecimentos, ao primado de critérios como a violência e o sangue.

Jornalista mas, antes de tudo, cidadão, muitas vezes não me revejo no relato noticioso que é feito da minha cidade e do meu país. Durante alguns anos, dediquei-me ao chamado jornalismo de investigação, puro e duro, que é seguramente uma das vertentes mais úteis e eficazes dos media. Mas não se confunda nunca a árvore (mesmo que sejam muitas árvores) com a floresta. Há que ter o indispensável distanciamento. Sejamos sérios e francos: eu sei que não vivo numa cidade apenas de crápulas, de vigaristas, de criminosos, de corruptos. Razão tinha Ted Turner quando, há uns tempos, se insurgia contra o excessivo caudal do que designou de más notícias dadas pela sua CNN. Empresário que sempre condicionou as suas decisões à regra sacrossanta das audiências, não acredito que Turner tenha decidido agora dar uma de santinho. Se ele se queixa é certamente porque essa é uma das sensibilidades detectadas no estudo do mercado das audiências.

Não percebo porque é que as boas notícias – chamemos-lhes assim – são sistematicamente desvalorizadas, no limite ignoradas. Este congresso em Macau – o último que se realiza antes da transferência da administração deste peculiarísssimo território para a China –, este congresso, pergunto, é ou não notícia? Duvido que o seja para a maior parte dos media. Não será chegado o tempo dos jornalistas começarem a fazer uma reavaliação dos critérios das suas notícias? É também disso que se trata quando se defende e reclama uma informação completa – que éeacute;, afinal, o dever maior dos órgãos de informação.

 

Beatriz Wagner Miranda (*)

A SBS (Special Broadcasting Service) é uma emissora de rádio e televisão do governo australiano dirigida às comunidades étnicas no país. A rádio transmite em 68 idiomas, sendo neste sentido a maior organização multicultural do planeta, abrangendo mais de 200 diferentes comunidades étnicas na Austrália. A emissora transmite em rede nacional, em todas as capitais dos estados e territórios australianos e em grandes cidades do interior.

A TV SBS transmite metade de sua programação em inglês e a outra metade em outros idiomas. Nos últimos dois meses tivemos na TV os filmes Mortinho por chegar à casa e O convento, de Portugal, e Carlota Joaquina, brasileiro. No ano passado, a TV SBS passou o filme Os olhos azuis de Yonta, da Guiné-Bissau. Todos os programas e filmes estrangeiros são traduzidos na própria emissora, que tem um departamento de legendas. Só no setor de língua portuguesa a TV SBS tem três funcionários em tempo integral, legendando a programação originalmente produzida em português.

O Programa de Língua Portuguesa é dirigido às comunidades de expressão portuguesa na Austrália. A maior é a de Portugal, seguida das comunidades timorense, brasileira e, em escala bem reduzida, as comunidades dos Palop (Países Africanos de Língua Oficial Portuguesa), Macau e outras.

Mundo lusófono

Os desafios para a produção de um programa de rádio que interesse a todos estes falantes de português são grandes e ao mesmo tempo fascinantes. Como fazer para chegar a uma fórmula que atraia a todos os ouvintes? E esta fórmula existe? O que nós, lusófonos da Austrália, temos em comum além do idioma?

A partir da nossa experiência concreta, temos a percepção de que alguns temas são consenso no interesse geral, como o futebol e a música. Outros parecem ser de interesse específico de determinadas comunidades, principalmente notícias e cobertura da “terra natal”. Arriscaria citar a distância da Austrália do resto do mundo como um potencializador da saudade e da necessidade maior de notícias do seu país, o que poderia não ser tão forte entre, por exemplo, portugueses vivendo nos Palop ou vice-versa. O isolamento desta “ilha-continente” poderia explicar essa ligação maior à pátria e o interesse reduzido por notícias de outros países lusófonos.

A nossa atuação no programa é ser um fator de união das diversas comunidades. Todos os locutores do Programa de Língua Portuguesa (dos quatro continentes) trabalham no sentido de criar pontes entre as diferentes comunidades, fazendo paralelos entre diferentes situações e sempre tendo em mente que estamos falando para todos, e não para uma comunidade específica. Assim, os correspondentes no exterior – seja em Portugal, no Brasil ou nos Palop, falam sempre não se dirigindo às suas comunidades, mas a um universo lusófono maior. Todos os temas abordados são explicados em detalhes, para que todos possam acompanhar os eventos na terra natal sem prejuízo da compreensão do que está sendo dito. Se há uma CPI dos Bancos no Brasil, a correspondente em Brasília vai explicar o que é uma CPI, como funcionam os bancos no Brasil, tendo em mente também um público não-brasileiro. Ao falar das eleições européias ou de eleições em Portugal, o correspondente em Lisboa vai detalhar como funciona a votação, o sistema eleitoral e daí por diante. Isto se aplica também ao futebol. O esquema de eliminatórias da Taça Africana, do campeonato brasileiro ou do português será explicado em detalhes, o que não aconteceria se o correspondente em São Paulo, por exemplo, estivesse falando apenas para brasileiros. No futebol isso tem funcionado, com o público acompanhando todos os boletins com interesse.

Dois exemplos concretos mostram que não há regras nas reações do público lusófono do programa. No futebol tivemos um fato interessante. Na última Copa do Mundo, na França, a SBS detinha os direitos de transmissão dos jogos para a Austrália. Como a rádio opera em duas freqüências, decidiu-se transmitir a locução no idioma dos países em campo. No caso do Brasil, único país de língua portuguesa na França, teríamos a transmissão da RDP, que chega diretamente por satélite à SBS. Mas a exemplo do que aconteceu com a língua espanhola e a árabe, chegou-se à conclusão de que os jogos deveriam ter locutores dos países que disputavam – dentro do conceito de transmissão baseada na comunidade, e não no idioma, ao contrário do que é norma permanente da Rádio SBS, uma emissora baseada em idiomas, e não em comunidades.

Enquanto num tema de interesse geral como o futebol podemos encontrar divergências, na questão do noticiário há pontos de união. A questão timorense parece desempenhar um papel aglutinador de todas as comunidades. Timor Leste tem ocupado um grande espaço das nossas emissões, não só pela dimensão do drama que o povo timorense tem sofrido e pelo tamanho da comunidade na Austrália (calculada em torno de 20 mil pessoas), mas também pela importância estratégica de Timor Leste para o governo australiano. O interesse entre os timorenses é óbvio. Entre os portugueses, Timor Leste é um tema de consenso tanto dentro como fora de Portugal, reforçado na diplomacia portuguesa, atuante na ONU e em outros fóruns internacionais. Na Austrália, o tema é seguido tanto na mídia étnica como na grande mídia nacional. E cabe ressaltar que a Austrália tem uma espécie de política de duas faces em relação aos timorenses.

Se por um lado mantém seus compromissos com a Indonésia, entre eles o tratado de exploração de petróleo no Mar de Timor e e um tratado de segurança militar, além de ser o único país do mundo a reconhecer de jure a anexação de Timor Leste pela Indonésia, por outro lado abriga o maior número de refugiados timorenses no mundo, e dá a eles condições dignas de vida. É irônico também pensar que a Austrália, com sua posição oficial, tenha no seu solo esses refugiados e mantenha um programa de rádio que supre em grande medida as necessidades de informações dessa comunidade. Quanto às comunidades dos Palop e aos brasileiros, há o interesse pela descoberta desse lugar do mundo onde se fala o português e que é, portanto, uma terra irmã que teve até há bem pouco tempo negado o seu direito à autodeterminação.

Experiência inovadora

Em relação à cobertura que fazemos da questão timorense, é importante ressaltar que muito material veiculado inicialmente nos nossos programas acaba virando manchete na grande imprensa australiana. O fato de termos acesso a fontes em português e de acompanhar diariamente a evolução dos fatos nos coloca numa posição privilegiada de observadores dentro da Austrália, em relação aos nossos colegas jornalistas australianos.

Não gostaria de encerrar sem destacar o papel fundamental da agencia Lusa de informações e da RDP junto à mídia étnica no exterior. No caso da Rádio SBS, essa cooperação tem sido fundamental. A agência Lusa tem desempenhado este papel aglutinador do mundo lusófono, e é nela que buscamos grande parte das “notícias da terra natal”, esteja esta terra na Europa, na África, na América do Sul ou na Ásia. A RDP tem tido um papel importantíssimo para os nossos noticiários, uma vez que também tem uma atuação ligada a todos os países lusófonos e interesse em estabelecer contatos com a mídia em língua portuguesa espalhada pelo mundo. Destaco a cooperação da RDP África, especialmente no recente conflito da Guiné-Bissau, onde a nossa cobertura foi toda proporcionada pela organização.

Como um testemunho, gostaria de destacar ainda a importância da agência Lusa na Austrália não só junto à comunicação étnica (jornais portugueses e outras rádios), mas também junto à grande imprensa australiana. A questão de Timor Leste, o vizinho mais próximo da Austrália, é muito mais importante do que qualquer outra no que se refere às relações estrangeiras – mais do que a guerra de Kosovo, por exemplo. Incontáveis vezes, furos de reportagem da Lusa, entrevistas com lideranças timorenses ou declarações de autoridades portuguesas viraram matéria de primeira página na Austrália, com a devida identificação da fonte.

A Rádio SBS comemora no ano que vem 25 anos de existência e é hoje um patrimônio da sociedade australiana, atingindo praticamente um quarto da população do país, o universo dos imigrantes. No segundo semestre de 1999 será feita uma pesquisa de audiência do Programa de Língua Portuguesa. Muitas das teorias e percepções colocadas aqui poderão ser esclarecidas. Saberemos melhor quem acompanha o programa, por que, o que querem e o de que não gostam. O Programa de Língua Portuguesa da Rádio SBS é um processo em construção, uma experiência inovadora, que só pode acontecer fora dos países onde se fala o português. É um microcosmo do que poderá vir a ser a comunidade lusófona na era cibernética. Poderemos estar todos unidos, através do idioma, sem importar onde estejamos fisicamente no mundo. Formaremos a comunidade lusófona mundial? Talvez a rádio SBS seja uma avant prémiere deste espaço, com suas dúvidas, desafios e esperanças. A conferir.

(*) Gaúcha, diretora do Programa de Língua Portuguesa da Rádio SBS em Sidney, Austrália, onde vive desde 1993.

 

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(*) Clique no sublinhado para ler a íntegra do texto.

António Marinho e Pinto

Desde que há alguns anos os órgãos de comunicação social [de Portugal] começaram a incomodar alguns poderosos deste país, o poder político reagiu desencadeando alterações legislativas que no seu conjunto constituem um verdadeiro cerco legal à actividade jornalística. Esse cerco consolidou-se quando os principais dirigentes constataram que, em matéria de delitos de imprensa, os tribunais começavam a interpretar e aplicar as leis em conformidade com a Constituição da República Portuguesa e sobretudo tendo em atenção a moderna doutrina jurídica que tende a conferir ao direito de informar e à liberdade de imprensa um carácter de prevalência sobre outros bens jurídicos de idêntica dignidade. (Arquivo em formato word.)