Friday, 11 de October de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1309

O crime continua impune

CIRCO DA RENÚNCIA
(*)

Retórica de segunda mão, teor de almanaque, prosódia de circo, pose de caudilho decadente, visual melancólico, cinismo cavalar, postura ignóbil, compostura nenhuma. E, no entanto, foi o discurso mais antecipado e mais inflado pela mídia dos últimos tempos. A farsa da renúncia encenada por ACM na quarta-feira é uma demonstração ao vivo e em cores de um processo de mistificação e manipulação em curso há três décadas e que não está esgotado. Ao contrário, tudo sinaliza para uma desesperada intensificação.

Durante uma semana, a sociedade brasileira foi persuadida de que assistiria a um episódio de alta relevância, digno de incorporar-se aos grandes momentos da nossa história política. Das manchetes espetaculares aos recantos obscuros das colunas mundanas, o ex-presidente do Congresso e delinqüente confesso, foi apresentado em embalagem heróica de fera ferida e cruzado impoluto.

O engodo mediático passaria desapercebido ? igual a tantos outros diariamente enfiados nas mentes crédulas ? não fosse o fato de que através desse jorro de venenos o ex-senador insistisse e persistisse na violação de uma votação secreta. Continuou a delinqüir. Ao distribuir para a imprensa as solertes informações sobre o teor dos votos na sessão que cassou Luiz Estevão, ACM repetiu o mesmo crime que custou-lhe o mandato. E, ao publicar informações de procedência duvidosa, sem qualquer possibilidade de comprovação, os jornais não apenas exibiram lampeiros a velha promiscuidade com o ex-senador mas assumiram-se ostensivamente como veiculadores de calúnias. Nenhum igualou-se a este JB.

ACM prevaricou, obrigou outros a prevaricar (ao que tudo indica diversas vezes, de acordo com as novas perícias no Prodasen) e continua prevaricando abertamente. Apesar da ridícula encenação martirológica no Senado, o infrator não foi castigado pelo vergonhoso comportamento. Sua renúncia atendeu às suas pr&oacuteoacute;prias conveniências e, não às exigências legais impostas pela sociedade.

Essa é uma verdade que não pode ser escamoteada ou esquecida: ACM abortou o seu julgamento. Driblou a justiça. Escarneceu de todos aqueles que se comportam com lisura e decência. O crime está ai, concreto e tecnicamente caracterizado. Novamente dominado pela psicose, o decrépito Sansão assumiu-se plenamente como criminoso através de reincidências sucessivas e flagrantes. E, no entanto, pretende escapar impune e impenitente. Relapso e contumaz. Maroto e solerte.

Se alguns ingênuos estão comemorando o fim da era do cabresto e outros imaginam que o episódio deve mudar os paradigmas de comportamento político, convém lembrar que nada disso será possível se o caso, sobretudo o caso de ACM, não for levado às últimas conseqüências.

O infrator já não pode esconder-se atrás da imunidade. As ondas de denúncias represadas e encobertas pela prepotência e pela leniência agora podem ter o curso normal. As acusações de Nicéia Pitta sobre a OAS, o encobrimento dos escândalos no Banco Econômico, a proteção a picaretas como Gilberto Miranda e a diplomatas como o lendário Ladrão de Bagdá, a fieira de episódios investigados no livro Memórias das Trevas, de João Carlos Teixeira Gomes, a extorsão no caso N.E.C., os abusos na administração do Senado que conduziram à violação do painel, a responsabilidade do carlismo na condução da política energética desde os tempos da ditadura – essa é uma pauta não para uma CPI, mas para uma purgação nacional.

Pela primeira vez em décadas, o poderoso e rotundo ACM é um cidadão igual aos demais. Conseguiu manter-se acima de qualquer suspeita simplesmente porque as sufocava com malvadeza ou ternura, chicote ou dinheiro. Agora é um cidadão que sequer merece o benefício da dúvida: junto com Maluf é uma das unanimidades nacionais em matéria de vilania.

Ontem, coincidentemente, os chefes de dois poderes da República (Jader Barbalho, presidente do Senado, e Marco Aurélio Mello, do STF) manifestaram-se contra a severidade da punição pedida pela Comissão de Ética do Senado. Se não é uma "operação abafa" é, no mínimo, uma "operação deixa-disso". Curiosa convergência: o senador cercado de corrupção por todos os lados e o magistrado levado à suprema função graças ao parentesco com um presidente deposto por corrupção juntam-se para iniciar um processo de reabilitação daquele que é o pai de todas as perversões políticas.

Sem o empenho da imprensa, o caso ACM ficará confinado à sua renúncia. Abastecida com tantos dossiês, grampos e perfídias, a mídia tem agora uma oportunidade de ouro para ajustar contas com aquele que mais a deslustrou no último meio século.

(*) Copyright Jornal do Brasil, 2/6/2001

Acabou.

O ex-senador Antonio Carlos Magalhães morreu pela boca. É o que diz a maior parte dos analistas políticos do país, concordando com a tese de que ACM foi o principal causador de sua renúncia, pois detonou todo o processo ao contar para o procurador Luiz Francisco que sabia o teor do voto da senadora Heloísa Helena (PT-AL) na sessão que cassou Luiz Estevão (PMDB-DF) .

Sem dúvida, ACM não teria sofrido tamanho revés se tivesse agido de forma um pouco menos arrogante e prepotente. Permito-me, porém, inverter um pouco o ângulo da questão: alguma vez, em toda a sua carreira política, o cacique baiano agiu de maneira diferente? A prepotência e a arrogância não são marcas da personalidade e do jeito de fazer política de Antonio Carlos Magalhães? Por que então só agora o vento soprou mais forte e derrubou a cidadela carlista?

Sim, eis que num belo dia, quem brincava de princesa, acostumou na fantasia, como diria Chico Buarque. O grande erro de ACM, no fundo, foi não ter percebido que os tempos mudaram e que a avenida em que ele cansou de desfilar a sua prepotência não é mais a mesma.

Para ser mais claro, a decadência de Antonio Carlos Magalhães tem relação direta com a gradual substituição de Roberto Marinho por seus filhos na direção das Organizações Globo, a grande avenida que sempre garantiu público e deu retaguarda para ACM.

Enquanto o patriarca dos Marinhos reinou absoluto no comando da Vênus Platinada, toda a arrogância do ex-senador era perdoada. Atos impulsivos e eventuais demonstrações de truculência do cacique baiano eram ocultados ou minimizados no noticiário global. Não sem razão, uma vez que o império dos Marinho só fazia crescer, muito especialmente enquanto ACM reinou soberano no ministério das Comunicações, no governo Sarney.

De um tempo para cá, porém, o pacto parecia ter sido rompido. Quem olhava de fora, via alguns sinais de desavenças entre Magalhães e os Marinho. ACM fez questão de tornar público um fax que enviou a João Roberto Marinho reclamando da cobertura dos órgãos de comunicação da empresa por ocasião das denúncias que Nicéia Pitta fez de seu envolvimento com a OAS e lembrando aos filhos a amizade que sempre privou com o patriarca.

Se alguém tinha alguma dúvida sobre o rompimento, não tem mais. A edição de O Globo do day after da renúncia de Antonio Carlos Magalhães diz tudo. Na primeira página, abaixo de uma manchete razoavelmente sóbria, vem o primeiro recado, digamos assim, sutil: a charge de Chico Caruso, em que o ex-senador aparece de costas, rodeado de colegas, com as nádegas de fora.

A mensagem principal, porém, está na página 3. Nem é necessário ler a reportagem para entender. Todo o espaço acima da dobra na página é ocupado por uma foto de ACM com os braços abertos e um olhar expressivo, no plenário do Senado. Acima da foto, a chamada de duas palavras; "Página Virada".

Será muito difícil para Antonio Carlos Magalhães reerguer-se sem o apoio de quem tanto o ajudou a chegar onde chegou. É sempre muito fácil ? e no mais das vezes, inconseqüente ? vaticinar o fim da carreira de um político importante. No caso de ACM, a julgar por seu "triunfal" retorno à Bahia ? as manifestações de comemoração por sua renúncia praticamente empataram com as que saudavam a sua volta, em que pese todo o empenho do esquema carlista, hoje detentor das máquinas estaduais e municipais ?, porém, o vaticínio faz sentido. E a decadência, pelo que se viu na semana passada, vai ser melancólica.

Já foi tarde.

(*) Copyright Correio da Cidadania, 2/6/2001

    
    
                     

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