Friday, 11 de October de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1309

O estuprado que aprenda a lição

MÍDIA GAÚCHA

Gilmar Antonio Crestani (*)

Nestes dias em que golpes são explicados com eufemismos, é sempre
confortável buscar nos registros mais remotos alguma luz para clarear
perguntas atuais ainda não respondidas pelos nossos coronéis eletrônicos.
Os fins justificam os meios?

Como bom repórter, o "pai da História", Heródoto
(484 – 425 a.C.), viajou pelo entorno do Mediterrâneo, da África
à Europa, visitando povos com os quais os gregos mantinham algum tipo
de relação. Com as informações colhidas nestas viagens
escreveu o primeiro livro de História. A globalização engendrada
por Alexandre Magno (356-323 a.C.), hoje entendida como helenização,
ainda não dera seu principal fruto, a Biblioteca de Alexandria, organizada
por um de seus generais, Ptolomeu I (305-283 a.C.). Pois é, já
não se fazem generais e globalizações como antigamente!

Heródoto acabou registrando fatos ilustrativos das relações
internacionais de seu tempo. Sem contar com o auxílio de bibliotecas
ou internet, recorreu aos mitos para tentar explicar as desavenças entre
gregos e persas. Atribui ao rapto de quatro mulheres, Io, Europa, Medéia
e Helena, a origem do que a história didaticamente sintetiza em Guerras
Médicas, ou Grego-Pérsicas. A primeira, a princesa Io, filha de
Inaco, maioral de Argos, teria sido raptada pelos fenícios, e conduzida
ao Egito. Pretendendo quitar o débito, os gregos foram a Tiro, na Fenícia,
e raptaram Europa. Alguns mitólogos atribuem este feito à safadeza
de Zeus, que teria se transformado em Touro para seduzir a donzela. Uma vez
resolvida a primeira parte, o chefe dos deuses foge a nado, com a moça
no lombo, em direção a Creta. Depois os gregos voltaram à
carga, literalmente, raptando Medéia, filha do rei da Cólquida.
Quase entornando o caldo, mas ainda não foi desta vez a gota d’água.
(Gota d’Água foi a peça que Chico Buarque escreveu inspirado
na Medéia do tragediógrafo grego Eurípides (485-406 aC).

A última das quatro, Helena, é a mais famosa das raptadas graças
ao esmero de Homero. Heródoto não tece juízo de valor a
respeito de tais episódios, mas, a crer nos estudiosos atuais, a questão
de fundo teria estado envolta nos mistérios do comércio e suas
conexões. Io, por exemplo, foi raptada enquanto estava "comprando
objetos de sua preferência". Europa, contudo, teria servido apenas
para satisfazer a libido de Zeus, o Touro que hoje faz parte do zodíaco.
"Ultimados os negócios que ali os levaram, arrebataram Medéia",
escreveu o historiador. A última, Helena, diz a lenda que foi seduzida
pelas riquezas de Páris, mas que não partira em sua companhia
de mãos abanando, já que Menelau também era rei. E a Guerra
de Tróia não passaria de uma disputa por um ponto comercial estratégico.

Sedução ou estupro

Na Antigüidade, os fatos estavam relacionados ao que acontecia a determinadas
pessoas, mormente relacionadas a uma família proeminente. As quatro figuras
femininas acima, por exemplo, tinham ascendência real. O registro de tais
fatos sobreviveu por ser emblemático, síntese de um espectro maior.

As figuras femininas atuais são conceitos, também raptados de
seu sentido denotativo.

A mídia seqüestrou a verdade para fazer dela instrumento de seus
interesses e, como resgate, nos oferece a manipulação. Se o exemplo
venezuelano é o mais gritante, o que acontece por estes pagos não
é menos verdadeiro. O conceito de liberdade e de democracia também
foram extorquidos do dicionário para fazer sentido às suas pretensões
econômicas.

No Sul, os mesmos coronéis eletrônicos que descobriram o problema
da segurança pública após a derrota de seu apaniguado usam
do banditismo para melhorar alguns pontos do Ibope, sem se importar com o risco
que as vítimas possam correr, conforme registrado na edição
passada. Não contentes, dão asas à imaginação
a macartistas entrincheirados na Fiergs, prontos a golpear quem não reze
pela mesma cartilha. Arvoram-se em defensores da liberdade, mas apóiam
golpistas.

No ímpeto de ajudar o governo federal, já que o empréstimo
do BNDES à Globocabo ainda não saiu, o jornal local da RBS sai-se
com esta manchete: "Impostos consomem 32% da renda de porto-alegrense."
O sentido fica mais claro no corpo da matéria, ao afirmar que os impostos
invisíveis pesam mais no bolso da classe média do que os descontos
do Imposto de Renda (IR). Não fosse o fato de o assunto coincidir com
o prazo de encerramento da declaração do ajuste anual, de interesse
do Fazenda Federal, resta ainda o gentílico "porto-alegrense"
para mostrar que os impostos castigam somente a classe média que vive
na capital gaúcha. É também a mesma empresa que ataca o
MST em seus editoriais, acusando-o de atentar contra a propriedade privada e
o direito de ir e vir, mas se fecha em copas quando deputados de sua base invadem
a prefeitura porto-alegrense.

Esta invasão levou o comentarista político José Barrionuevo
a ver no episódio apenas "deputados muito descontraídos",
como se estivessem em um piquenique. Se os empresários e latifundiários
do estado reagem às vistorias do Incra, impedindo o exercício
de uma atribuição legal, saca argumentos de que os fins justificam
os meios. Aliás, usaram o mesmo argumento para justificar o rapto da
democracia e a implantação da ditadura na Venezuela. Não
importava se Hugo Chávez havia sido eleito ou não, relevante mesmo
era eliminar o populismo pernicioso.

Não foram somente a revista Veja e a Rede Globo que ficaram mal
na foto com a torcida escancarada pelos golpistas venezuelanos protegidos pela
"democracia" ianque. A RBS vinha conquistando corações
e mentes, pois noticiava que a "república bolivariana" estava
em estado terminal por culpa das manifestações populares. Mas
o retorno de Chávez pegou-a de calças na mão, e, sem constrangimento,
liberou o retorno da conjunção adversativa "mas" que
havia raptado após os ataques terroristas de 11 de setembro. Tudo bem,
ele fora eleito, "mas" deveria aprender a não ser populista.
Para merecer permanecer no cargo para o qual fora eleito deveria implementar
mudanças, "mas" devia evitar uma caça às bruxas.
O estuprado deveria aprender com o estupro, remendando a velha lição
malufista.

Na sexta-feira em que Pedro Carmona se investira de poderes para fechar o Congresso
e a Suprema Corte, o jornal Zero Hora aproveitou para publicar uma foto
de Chávez com Lula, tecendo ironias sobre um eventual governo Lula. Que
tipo de jornalismo é este?

A relação da RBS com ditaduras, para terminar com Heródoto,
faz lembrar o tirano grego, Pisístrato, cuja esposa o acusou de "ter
com ela apenas contatos contra a natureza".

(*) Funcionário público