Saturday, 27 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1285

O futuro dos jornais

JORNALISMO DIÁRIO

Ricardo Noblat


Segundo tópico do capítulo 1 de A arte de fazer um jornal diário, de Ricardo Noblat, 174 pp., Editora Contexto, São Paulo, 2002


É feia a crise. Estou convencido de que donos de jornal e jornalistas compartilham o firme propósito de acabar com os jornais. Ou então são burros. Até admito que acabar com os jornais não seja a real intenção deles. Quando nada porque os donos ficariam sem seus negócios e os jornalistas, sem seus empregos.

Mas que parece terem firmado uma santa aliança para acabar com os jornais, parece sim. Os donos porque administram mal as empresas; os jornalistas porque insistem com um modelo de jornal que desagrada às pessoas. Pensem um pouco na gravidade dos seguintes fatos:

  1. a receita de publicidade dos jornais em 2001 foi 7,2% menor em termos reais do que a do ano anterior. Nos Estados Unidos, a queda foi de 11,5%, a maior desde a "Grande Recessão" dos anos 30;
  2. os jornais venderam 0,46% a mais de exemplares em 2001 se comparado com 2000. Só que desde 1977 eles vinham crescendo a uma taxa média anual de 4,8%;
  3. nos últimos seis anos, o volume de dinheiro gasto com publicidade aumentou em 75% no Brasil. Mas a participação dos jornais no bolo publicitário caiu de 28% em 1995 para 21% em 2001;
  4. entre março de 2001 e março de 2002, os 15 maiores jornais brasileiros, responsáveis por 74% do volume total de exemplares vendidos no país, diminuíram sua circulação em 12%. Deixaram de vender exatos 346.376 exemplares. É como se uma edição inteira da Folha de S.Paulo tivesse deixado de circular.

Os jovens, principalmente eles, fogem da leitura dos jornais e preferem informar-se por outros meios. Ou simplesmente não se informam. Uma fatia crescente deles adere à internet.

A Associação Americana de Jornais entrevistou 4.003 adultos com mais de 18 anos nos dois primeiros meses de 2000. Setenta e cinco por cento dos entrevistados de 18 a 24 anos disseram que a internet "mexe" com a imaginação deles. E somente 45% disseram o mesmo em relação aos jornais.

A pesquisa revelou que a utilização da internet como fonte de notícias aumentou nos Estados Unidos em 127% entre 1997 e 2000. No mesmo período, o consumo de jornais despencou quase 12% e os telejornais nacionais e mundiais perderam 14% de sua audiência.

A internet também começa a tomar anúncios antes destinados aos jornais. Até 2010, os jornais deverão perder para a Web de 10 a 30% de sua receita com publicidade, segundo executivos da área ouvidos em 2001 pela Innovation Internacional Media Consulting Group. Somente nos Estados Unidos, a publicidade on-line saltou de 200 milhões de dólares em 1996 para 4 bilhões a 12 bilhões de dólares em 2000, a depender da fonte que se consulte. É muito dinheiro. E o salto foi muito grande.

A Associação Americana de Jornais vem anotando há 50 anos as queixas mais comuns dos leitores de jornais. E elas são quase sempre as mesmas. Queixam-se os leitores de constantes erros de ortografia, da tinta usada pelos jornais que lhes mancham as mãos e a roupa, das páginas que se soltam quando manipuladas, do excesso de páginas e do formato dos jornais.

E o que os jornais fizeram ou estão fazendo para atender as reclamações dos leitores? Pouca coisa. No segundo semestre de 2002, por exemplo, não chegava a meia dúzia o número de jornais no Brasil que desenvolvia algum tipo de programa para combater o número de erros de ortografia. Aqui e em toda parte, os leitores continuam a receber jornais maçudos que nem mesmo os jornalistas conseguem ler integralmente.

A direção do The New York Times descobriu em 2001 que seus leitores mais fiéis só liam 10% do jornal.

Os leitores acham que o cardápio de assuntos dos jornais está mais de acordo com o gosto dos jornalistas do que com o gosto deles. E que a visão que os jornalistas têm da vida é muito distante da visão que eles têm. Nada disso, porém, parece abalar jornalistas e donos de jornal. Eles se comportam como se soubessem, mais do que os leitores, o que estes querem, têm obrigação de querer ou devem deixar de querer.

No caso brasileiro, acrescente-se ao rol das queixas a cobrança por jornais mais baratos. Os nossos são muito caros. E é pequeno o público disposto a pagar por eles.

Como vender muitos jornais em um país que é pentacampeão mundial de futebol e semifinalista no quesito pior distribuição de renda do mundo?

Temos 53 milhões de pessoas que vivem abaixo da linha de pobreza. E 23 milhões delas são miseráveis. Nos últimos cinco anos, a taxa de desemprego aumentou em 23% e o poder de compra dos salários desabou em 35%. O país cresceu 14% em 1973 e, em 2002, só deverá crescer 1%, se tanto.

Em 2000, cada grupo de mil japoneses comprava 500 exemplares de jornais. Aqui, no mesmo período, cada grupo de mil pessoas só comprava 44 exemplares.

As empresas costumam atribuir ao fabricantes de papel e de outros insumos a culpa pelos elevados preços dos jornais no Brasil. É fato que quase toda a matéria-prima empregada na confecção de um jornal é importada. E que o preço da tonelada do papel foi reajustado 22 vezes nos últimos 31 anos.

Mas se for descontada a inflação do período, o preço do papel baixou em vez de subir. O que subiu 31 vezes em 31 anos foi o preço dos anúncios nos jornais.

O que também aumentou ou no mínimo permaneceu estável foi o nível de incompetência das empresas para gerir seus negócios.

Com o aparecimento do real em julho de 1994, as empresas jornalísticas acreditaram no sonho de um país sem inflação e com taxas de crescimento econômico para lá de razoáveis. Deram todo o apoio possível ao governo que lhes fez essa promessa. Endividaram-se em dólares. Modernizaram seus parques gráficos. Lançaram novos títulos de jornais. Diversificaram seus investimentos. Resultado: no início do segundo semestre de 2002, a maioria delas estava quase quebrada. Várias estavam literalmente quebradas.

O modelo dos jornais está em xeque. E não é porque donos de jornal e jornalistas desconheçam esse fato. O modelo está em xeque porque o medo de mudar é maior do que o medo de conservar algo que se desmancha no ar. Donos de jornal e jornalistas estão cansados de saber que os jornais devem:

  1. renovar sua pauta de assuntos para ganhar mais leitores, principalmente mulheres e jovens;
  2. surpreender mais e mais os leitores com informações que eles desconheçam;
  3. humanizar o noticiário e abordar os temas pela óptica dos leitores;
  4. interagir com os leitores e abrir mais espaço para que falem e sejam ouvidos;
  5. conferir menos importância às notícias de ontem e ocupar-se em antecipar as que ainda estão por vir;
  6. apostar em reportagens porque são elas que diferenciam um jornal de outro;
  7. dar mais tempo aos repórteres para que apurem e escrevam bem;
  8. publicar textos que emocionem, comovam e inquietem;
  9. resistir à tentação de absorver prioridades tão características da televisão: superficialismo, entretenimento, diversão, busca de audiência a qualquer preço;
  10. investir pesado na qualificação dos seus profissionais;
  11. depender menos de anúncios e mais da venda de exemplares;
  12. e mais importante do que tudo acima, fazer jornalismo com independência e que tome partido da sociedade.

É o conteúdo que vende jornal. Somente uma mudança radical de conteúdo, aqui e em qualquer outro lugar, será capaz de prolongar a lenta agonia dos jornais.

Mas como promovê-la se os donos de jornal não querem correr riscos, se no caso do Brasil os jornalistas mais experientes se desencantam com a profissão e a abandonam em troca de empregos que lhes paguem melhor e que lhes ofereçam melhores condições de vida, e se as redações estão cada vez mais povoadas de jovens?

Nada tenho contra os jovens. Até porque já fui um deles e comecei a trabalhar em jornal com 17 anos. Mas são poucas as pessoas com menos de 25 anos que já leram muito, aprenderam muito e acumularam muitas experiências. E quando entrei em uma redação pela primeira vez quase todos que nela encontrei tinham cabelo grisalho.

Jovens deveriam ser minoria nas redações de jornais. Porque o exercício do jornalismo sério, responsável e de qualidade superior exige o que a maioria dos jovens jornalistas ainda não tem por causa de sua pouca idade. Mas jornalista recém-formado custa barato. E as empresas preferem gastar menos com os produtores de conteúdo e mais com equipamentos gráficos e eletrônicos de última geração, consultorias para tudo e qualquer coisa e adoção de novos modelos de gerenciamento.

Por toda parte, as redações são vistas pelos donos e administradores de empresas jornalísticas como sorvedouros de recursos, perdulárias e alvos prioritários de medidas de economia. As redações não estão apenas mais jovens. Estão cada vez mais enxutas ? e, por extensão, sobrecarregadas.

Como exigir, pois, que jovens recém-formados, mal pagos e obrigados a cumprir exaustivas jornadas de trabalho ajudem a reinventar os jornais e interrompam sua trajetória ladeira abaixo?

O atestado de óbito dos jornais diários foi assinado e lavrado em cartório pelo menos quatro vezes no século passado. A primeira vez, quando se inventou o rádio; a segunda, quando a televisão entrou no ar; a terceira, quando surgiu a internet; e a última, quando a revolução digital juntou em um único sistema o que antes existia em separado ? a escrita, o som e a imagem.

O dono e fundador da Microsoft, Bill Gates, previu em 1998 que daí a dois anos não mais existiriam jornais e revistas. E no início de 2002, o executivo Dick Brass, empregado de Gates, previu que a última edição do The New York Times circularia em 2018. Ao saber da profecia de Brass, o principal diretor do The New York Times, Arthur Sulzberg Jr., deu de ombros e resmungou: "Que fazer?". E acrescentou: "Vamos continuar como a principal fonte de notícias e informações dos Estados Unidos. E talvez do mundo".

A soberba, mãe de todos os pecados, costuma ditar o comportamento de jornalistas poderosos. E dos poderosos em geral. Sulzberg Jr. tem o poder. Porque manda no melhor e mais influente jornal do planeta. Mas não incorreu em pecado quando respondeu a Brass naqueles termos. Na verdade, as empresas jornalísticas que conseguirem atravessar os turbulentos anos da primeira década do século XXI permanecerão como produtoras importantes de conteúdo. Talvez as mais importantes.

Os jornais, contudo, morrerão, sinto dizer-lhes isso. Tal como existem hoje, tudo indica que morrerão. Só não me arrisco a dizer quando.

Que viva, pois, o jornalismo! Porque pouco importa a forma que os jornais venham a tomar no futuro, pouco importa se alguns deles acabarão preservados como espécies de relíquias ? o homem sempre precisará de informações.

Se vocês quiserem, contudo, dar sua contribuição para prolongar a vida dos atuais jornais ou pelo menos reunir argumentos para falar mal deles, prestem atenção ao que lhes direi nos próximos capítulos. E se o que lhes disser não for de todo enfadonho, leiam este livro até o fim.

Ele foi concebido para ser útil a qualquer pessoa que se interesse por jornalismo, ao estudante, ao recém-formado, e também ao jornalista veterano que alimentar o intuito solerte de decretar depois, com ar arrogante: "Dei uma lida no livro assim por cima. Não tem nada demais". Na ocasião, aposto que ele ouvirá de outro colega: "Achei uma merda". E um terceiro, adepto de frases feitas, encerrará a discussão com a sentença definitiva: "Não li e não gostei".

Que fazer? Nós, jornalistas, somos assim mesmo. E para alguma coisa servimos.