Saturday, 27 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1285

O passado que condena

HENRY KISSINGER

Argemiro Ferreira, de Nova York

Henry Kissinger não chega a ser uma fabricação da mídia. Mas é inegável o caso de amor dos dois ? fato que ajudou a garantir-lhe a permanência no poder de agosto de 1974 a janeiro de 1977, apesar das contundentes revelações que confirmavam seu papel conspícuo no prolongamento da guerra do Vietnam, no "grampeamento" telefônico de auxiliares e nas ilegalidades que forçaram o presidente Richard Nixon a renunciar.

Transformado, depois, em lobista de corporações gigantes e intermediador de negócios pelo mundo, Kissinger continuou a vender a imagem de estadista enquanto a mesma mídia ? até os grandes jornais do establishment liberal do Leste, New York Times e Washington Post ? preferia subestimar o conteúdo cada vez mais grave dos documentos sobre seu papel na formulação da política externa americana entre 1969 e 1977.

Agora, a organização FAIR (Fairness & Accuracy in Reporting) está fazendo nova revelação que em nada engrandece a mídia do país. Para dar entrevistas, Kissinger passou a impor compromisso prévio de não haver pergunta alguma sobre os crimes de guerra de que tem sido acusado. Nem mesmo sobre a decisão do juiz francês que, aproveitando a presença dele em Paris, tentou convocá-lo a depor num processo.

Também a Justiça chilena já revelou interesse em interrogar Kissinger sobre crimes da ditadura Pinochet e da Operação Condor, mas ele se esforça com relativo sucesso para tirar o assunto da mídia americana. Enquanto as notícias saem normalmente em outras partes do mundo e na Europa recebem destaque especial, aqui nos EUA ou são totalmente ignoradas ou só aparecem em poucas linhas num canto de página.

Como também chegou às livrarias mais um livro de Kissinger, Does America Need a Foreign Policy? (A América precisa de uma política externa?), ele está em pleno circuito de entrevistas para o lançamento. Só que impõe a condição prévia ? nenhuma pergunta sobre crimes de guerra, tribunal internacional, o conteúdo de um livro de Christopher Hitchens, a palavra de juízes da França, Chile e outras partes.

Provas do crime

O mais insólito é a mídia sujeitar-se à imposição ? que, no caso de qualquer outro, repele com indignação. A última suspeita, por exemplo, refere-se à TV pública, em geral mais independente. Charlie Rose, da PBS, entrevistou-o em 20 de junho. Não deu um pio sobre o assunto. Antes Kissinger falara a Paula Zahn na Fox News, dia 13. E depois, dia 21, a Wolf Blitzer, na CNN.

Nem Rose, nem Zahn e nem Blitzer ousaram fazer referência, mesmo de passagem, à disposição do juiz francês em ouvi-lo sobre o desaparecimento de quatro cidadãos franceses nos primeiros dias do golpe do Chile, exatamente como o americano do filme Missing, Charles Horman, cujo pai recorreu à Justiça dos EUA para responsabilizar Kissinger como cúmplice dos assassinos da ditadura Pinochet.

Esse tipo de omissão na mídia costumava ser prontamente cobrado quase como fuga ao dever profissional por parte dos entrevistadores. Teoricamente nem presidentes escapavam. Para fugir a certas perguntas, Nixon (em meio à crise de Watergate) e Clinton (no furacão do caso Monica Lewinsky) viram-se obrigados a passar meses sem dar qualquer entrevista.

A que se deve a mudança de comportamento? Talvez à era dos impérios de mídia (como GE e Westinghouse), cujos negócios bilionários vão das revistinhas de fofocas às armas espaciais da Guerra nas Estrelas. Antes do caso Kissinger, a revista do New York Times já tinha dito que para entrevistar Roger Ailes, chefão da Fox News, Charlie Rose tivera de prometer por escrito não fazer perguntas sobre política.

Em relação a Kissinger, o mais grave é que até organizações jornalísticas parecem mais inclinadas hoje a aceitarem novas regras, a se julgar pelo respeitado National Press Club (NPC, Clube Nacional da Imprensa, uma espécie de ABI dos EUA). Dois jornalistas notaram que não fora lida ali, dia 21, nenhuma pergunta a Kissinger sobre o assunto. Quiseram saber então se o NPC tinha feito "arranjo prévio" com ele.

O moderador do NPC, Richard Koonce, cheio de dedos, deu a explicação aos dois, Russell Mokhiber e Robert Weissman, mais ou menos nos seguintes termos: "Vocês entendem, era algo muito ?sensível? para se perguntar. Kissinger ficou com medo de que a gente entrasse numa discussão que, para a grande maioria das pessoas, exigiria tempo para se entender todo o contexto. Assim, era preferível evitarmos a questão".

Localizado a um par de quadras da Casa Branca, o NPC geralmente encarrega um moderador de ler as perguntas feitas pelos jornalistas presentes. Assim, presume-se que Koonce tenha excluído as "inconvenientes". O que, segundo a FAIR, coloca uma questão: "um ex-secretário de Estado é solicitado por um juiz a explicar o que sabe sobre assassinato, tortura e desaparecimentos, se isso não é notícia, o que é?"

Curiosamente, um dos jornalistas com escritório no prédio do NPC é Seymour Hersh, que, em 1983, publicou o livro The Price of Power (O Preço do Poder), o primeiro a devassar o papel de Kissinger na Casa Branca de Nixon. Hersh é um dos dois jornalistas independentes e com trânsito livre em grandes veículos a furar o barreira compacta que protege na mídia a reputação do ex-secretário.

O outro é Christopher Hitchens, que lançou em 2001 o livro The Trial of Henry Kissinger, para expor provas de crimes de guerra que podem justificar o julgamento de Kissinger em tribunal internacional. Nem Hersh e nem Hitchens são marginais. O primeiro foi a estrela do New York Times na cobertura de Watergate, após ganhar todos os prêmios de jornalismo em 1969 pela investigação do massacre de My Lai.

Prática saudável

Ao me receber em 1978 na redação do Times, Hersh puxou uma gaveta repleta de pastas. Explicou: "Tenho o melhor emprego do mundo. Ao fazer denúncias sobre a Gulf + Western [hoje Viacom], a alta direção do jornal resistiu às pressões e intimidações dessa corporação para impedir a publicação da reportagem. Mas aqui nesta gaveta há muito mais coisa, que não posso publicar, por várias razões".

Embora não tenha entrado em detalhes, entendi (pelo resto da conversa) que uma dessas coisas era o que acumulara sobre Kissinger, da maneira torpe como vazara à campanha de Nixon detalhes das conversações de paz do governo Johnson em Paris sobre o Vietnã (o que contribuiu para o fracasso delas) ao apoio clandestino dos EUA ao banho de sangue para depor Salvador Allende no Chile e instalar a ditadura sob o comando do general Augusto Pinochet.

De fato, coisas que estavam naquela gaveta sairiam cinco anos depois no livro The Price of Power. Hersh ainda publica reportagens no Times e na revista The New Yorker, como free lancer, mas prefere ter seus textos de investigação em livros. Hitchens, inglês de nascimento, tem coluna na Vanity Fair, escreve ainda para revistas como Harper’s e é frequente debatedor em programas de TV.

Em The Trial of Henry Kissinger, formalizou a acusação para os crimes de guerra que atribui a Kissinger, antecipada em dois números de Harper’s. Claro que a hipótese do julgamento internacional é remota, mas a tentativa da mídia dos EUA de ignorar o livro, os fatos e as provas ? de fingir que nada disso existe, a ponto de calar as perguntas por imposição dele ? escancara um incrível cinismo.

Kissinger, aliás, ainda é um ilustre membro da mídia. Tem contrato especial com a rede ABC, para a qual faz análises de política externa. Além disso, escreve coluna semanal, publicada em dezenas de jornais. Que eu saiba, só um deles, o Washington Post, tinha o escrúpulo de explicar ao leitor, no pé, que "o autor é sócio da Kissinger Associates, que representa corporações com interesses em várias partes do mundo".

A prática saudável devia ser adotada pelos jornais brasileiros nos artigos desse personagem controvertido. Até porque multiplicaram-se os negócios dele na América Latina desde que acrescentou o sócio Thomas (Mack) McLarty e mudou o nome para Kissinger-McLarty Associates. A ética de McLarty é a mesma: ele deixou o governo (Clinton) para faturar com as relações feitas ali (como assessor para as Américas).

    
    
              

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