Tuesday, 30 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1285

O premiado e o porta-voz

COLUNISTAS AMERICANOS

Luiz Weis (*)

Dos sete prêmios Pulitzer de jornalismo que o New York Times ganhou na semana passada, um foi para o colunista de assuntos internacionais Thomas L. Friedman. Ele foi premiado pela "clareza de visão" dos seus artigos sobre o impacto mundial do terrorismo.

É o terceiro Pulitzer desse jornalista bigodudo de 48 anos. O primeiro foi em 1983, por suas reportagens sobre o Líbano, como chefe da sucursal do Times em Beirute. O segundo foi em 1988 por suas reportagens sobre Israel, como chefe da sucursal do jornal em Jerusalém.

Dizem que o que ele não sabe sobre o Oriente Médio não vale a pena saber. Dois dos seus três livros tratam da região.

Friedman leva todo o jeito de faturar mais um Pulitzer no ano que vem. Porque foi para ele, em meados de fevereiro último, que o príncipe regente Abdullah Abdulaziz, da Arábia Saudita, revelou pela primeira vez o histórico plano para acabar com o conflito entre israelenses e palestinos. Histórico por ter partido de quem partiu e pelo conteúdo.

O plano, adotado pela Liga Árabe ? no mesmo dia em que um suicida palestino se explodiu com 26 judeus em Netanya, no norte de Israel, e na véspera da entrada das tropas de Sharon na Cisjordânia ? oferece ao Estado judeu a "plena normalização" de suas relações com o mundo islâmico, em troca da devolução dos territórios ocupados pelos israelenses em 1967, incluíndo Jerusalém Oriental, que passariam a formar o novo Estado palestino.

O engraçado foi como a proposta veio à luz. Segundo Friedman, no curso de uma conversa ? não uma entrevista formal ? com o príncipe, em Riad, sobre a tragédia no Oriente Médio, em dado momento o jornalista lhe perguntou se, por acaso, ele não teria numa gaveta algumas anotações sobre como fazer cessar as matanças entre árabes e judeus. Abdullah respondeu "tenho, sim", abriu o jogo e autorizou Friedman a dar o furo. (Não é impossível que o príncipe tenha chamado o jornalista exatamente para vazar a idéia.)

No dia seguinte, depois de submeter as declarações de Abdullah a um assessor dele, para ver se o assessorado não ía dar o dito pelo não-dito, e de receber o sinal verde de Sua Alteza, o colunista foi se entender com as pretinhas, como se dizia nos tempos pré-históricos da máquina de escrever.

O seu texto é um monumento de cuidados. Em nenhuma passagem sugere qualquer coisa parecida com um "parem as máquinas", "furo mundial" ou outra forma de transbordamento em que um repórter menos calejado dificilmente deixaria de cair. Ele relatou a conversa, o follow up do dia seguinte, chamou a atenção para o que havia de inédito na proposta principesca, mas, conhecedor íntimo das areias movediças da política no Oriente Médio, fez questão de ressaltar que vendia o peixe como o tinha comprado. Tanto faz: virou notícia no mundo inteiro.

Friedman tem um companheiro de espaço, o colunista William Safire, o judeu que nos anos 70 escrevia discursos para o anti-semita Richard Nixon, que é, sem tirar nem pôr, o outro lado da moeda. Enquanto o primeiro é crítico tanto do governo de Israel como de Yasser Arafat, Safire é o assumido porta-voz de Ariel Sharon ? e seu incontestado canal de comunicação com a opinião pública americana. O que é coisa da pesada.

Para o bem e para o mal, colunistas são donos dos espaços que lhe foram concedidos por suas publicações e a nenhum editor ocorreria censurar os seus textos, enquanto eles forem pagos para escrevê-los. Mas, no caso Safire/Sharon, o buraco é mais embaixo.

"Estenógrafo de chefe de Estado"

O jornalista, que não tem o menor problema em se definir publicamente como um "direitista linha-dura", articula e exprime uma das posições possíveis no espectro político de uma sociedade livre. O Times, cuja op-ed page (página oposta à dos editoriais) se abre para os comentários de liberais-progressistas como Frank Rich, Nicholas Kristof e Paul Krugman, e do esquerdista Bob Herbert, além de convidados também de todos os matizes, não poderia passar sem um colunista que fizesse o contraponto a eles.

(Registre-se, a bem da verdade, que o direitista linha-dura Safire é um espécime sui generis. Ele escreveu pilhas de colunas desancando o governo do presidente George W. Bush pelo encarceramento, sem acusações formais, de centenas de imigrantes de países árabes que poderiam ter ligações com o al-Qaeda, depois do 11 de setembro, e pela decisão de criar tribunais militares de exceção para julgar réus de atos terroristas.)

O maior problema do que Safire escreve sobre Sharon, seu amigo há mais de 25 anos e sua alma-gêmea ideológica, não é nem o da promiscuidade entre jornalista e fonte. É a forte suspeita de que Safire apresente ao mundo uma "versão sanitizada e mais palatável" do hidrófobo general israelense ? no dizer de Mark Jurkowitz, crítico de mídia do Boston Globe, a quem repugna a idéia de um jornalista virar "estenógrafo de chefe de Estado".

Safire talvez peneire o que Sharon lhe diz, para impedir que os seus leitores ? especialmente os leitores qualificados, com poder de decisão política, nos Estados Unidos e no exterior, que não passam sem o New York Times ? sejam postos cara a cara com a ferocidade nua e crua do desbocado primeiro-ministro.

Jornalista confiável

Não faz muito, Sharon confessou numa entrevista ao jornal israelense Yediot Aharonot estar arrependido por não ter mandado matar Arafat, quando este e todo o alto comando da Organização para a Libertação da Palestina (OLP) estavam literalmente na mira das tropas de Israel que, por ordem dele, então ministro da Defesa, cercaram Beirute em 1982.

Se ele tivesse dito essa enormidade para Safire, acredita-se nas redações americanas, o colunista não a publicaria. A propósito, o comentarista David Remnick escreveu na edição da semana retrasada da revista New Yorker que Sharon foi aconselhado por seus assessores a falar somente com jornalistas confiáveis, para não correr o risco de se expôr demais. Remnick citou Safire como um desses jornalistas.

O colunista pode estar fazendo mais do que podar os excessos de truculência verbal do governante israelense. Nas conversas de bar entre jornalistas americanos, pipoca a desconfiança de que Safire ponha na boca do homem palavras que dêem a entender que ele não é o carrasco que os seus inimigos, judeus e gentios, estão convencidos de que seja.

O citado Jurkowitz, do Globe, notou, significativamente, que, na coluna de 4 de abril, Safire citou Sharon como tendo dito que "como soldado que conhece os horrores da guerra, eu busco a paz com cada país árabe" e que sonha terminar a sua carreira como estadista e pacificador.

O mote secular do New York Times é "All the news that?s fit to print" (Todas as notícias que é adequado publicar). Não parece que isso se aplique às entrevistas de Safire com Sharon ? que os jornais brasileiros com direito ao conteúdo do Times quase sempre transcrevem.

(*) Jornalista