Saturday, 27 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1285

O xadrez da FCC

PROPRIEDADE CRUZADA

Beatriz Singer

É difícil discordar do presidente da Comissão Federal de Comunicações (FCC, sigla em inglês), Michael Powell, quando qualifica de “caos midiático” o atual estado de sua agência na empreitada de redefinir as regras da indústria da mídia.

Está montado o tabuleiro do xadrez político, cuja partida, já iniciada, promete ser exaustiva para ambos os lados. O jogo, no entanto, é desigual: apenas um dos lados possui rei e rainha, exatamente o lado com menos peões. Em outras palavras, a Casa Branca (o rei) pode vetar ? e já ameaça fazê-lo ? o projeto de lei casoeste tente impor de volta os valores originais das regras de propriedade de mídia, reguladas pela FCC (a rainha), que tenta aprovar as medidas de “afrouxamento” dessas regras. Do outro lado, não há rei nem rainha, só uma imensidade de peças de pequeno valor (os peões) que lutam na Justiça para postergar o máximo possível, se não for possível eliminar por completo, a aprovação do projeto da FCC.

Desde que anunciou medidas para afrouxar as regras de propriedade da mídia, há três meses, Michael Powell (filho de Colin Powell, secretário de Estado americano) tem enfrentado uma verdadeira guerra política. As mais polêmicas dessas medidas causaram furor por aparentemente beneficiarem grandes conglomerados, permitindo que fiquem ainda maiores e “engulam” pequenos veículos. Uma delas consiste em elevar de 35% para 45% o teto de audiência nacional que uma rede de TV pode alcançar. Outra visa a aliviar barreiras à propriedade cruzada, permitindo que uma só companhia tenha estações de TV e jornais numa mesma cidade. Há ainda uma que permitirá a um único dono ter três estações de TV no mercado nacional, em vez de duas.

Em 3/9, o 3? Tribunal de Apelações da Pensilvânia despachou uma liminar suspendendo as novas regras da FCC, atendendo à queixa de um grupo de rádios comunitárias. O tribunal alegou que se as novas regras entrassem em vigor causariam danos irreparáveis ao Prometheus Radio Project, organização com sede na Filadélfia que auxilia grupos interessados em instalar rádios comunitárias.

Funcionários da FCC afirmam que a suspensão pode levar de seis a nove meses, ou mais. Com fusões em andamento, grandes empresas como News Corp, Viacom e Disney estão impacientes ? e ficarão ainda mais irritadas se, ao que tudo indica, o Senado se posicionar junto à Câmara dos Deputados a fim de bloquear uma das mudanças, ao proibir a FCC de gastar mais dinheiro com sua implementação.

Peças brancas, peças pretas

De forma geral, as regras aprovadas em junho, e que valeriam a partir de 4/9 não fosse a liminar, encontram muita resistência em grupos que temem uma nova onda de fusões capaz de abalar a mídia regional.

As grandes corporações, favoráveis à desregulamentação, argumentam que ela é necessária num mercado transformado pela TV paga e pela internet. Grandes redes de TV americanas, como ABC, CBS, NBC e Fox, se engajaram em campanha em prol das novas regras. Além de propaganda em revistas, as emissoras estão divulgando uma pesquisa segundo a qual 87% dos americanos estariam satisfeitos com o grau de diversidade dos veículos. Ao lado dos conglomerados da mídia está aCasa Branca, que ameaça vetar decisão do Senado que contrarie a desregulamentação.

Entre os senadores há amplo apoio à proposta de veto ? mesmo entre os republicanos, que são maioria. Na Câmara dos Deputados, no entanto, apesar de haver apoio da base democrata e republicana, líderes do partido do presidente George W. Bush se recusam a trazer para votação o bloqueio às medidas da FCC.

Fora da esfera legislativa, grupos poderosos fazem lobby em ambas as direções. A Newspaper Association of America, entidade representante dos jornais, quer a liberalização. Já a National Broadcast Association, associação de emissoras de rádio e TV, é contra.

Um artigo recente da revista britânica The Economist [11/9/03] aponta que agora o presidente da FCC terá ainda mais dificuldades de dar o xeque-mate, ao enfrentar a rejeição de diversos políticos, de dois colegas da comissão e dos tribunais. “Ao menos [Michael] Powell tem o apoio do presidente George Bush, que poderia exercer pela primeira vez seu direito de vetar uma legislação a fim de resgatar o presidente da FCC de seus inimigos no Congresso”, diz o artigo.

Exército de peões

A pressão de diversas ONGs e a adesão de novos políticos ? dois democratas da FCC acabam de dizer que as novas regras servem apenas para aumentar o poder opressivo dos conglomerados da mídia ? contra as regras de afrouxamento não parecem intimidar Powell. Ele se recusa a mudar as novas regras e, de acordo com a Economist, duvida que a voz de seus opositores represente a voz do povo.

A resistência do Congresso é, para Powell, menos uma manifestação contra suas políticas que um exemplo de políticos “punindo a grande mídia”.

Tudo começou em 1996

As mudanças de Powell não deveriam ter virado uma briga judicial. Em 1996, foi assinado a Lei das Telecomunicações (Telecommunications Act), no qual o Congresso requereu da FCC uma revisão das regras de mídia a cada dois anos, com o objetivo de anular os itens desnecessários.

O artigo da Economist explica que as duas primeiras revisões passaram sem que a FCC fizesse qualquer mudança. “A justiça, então, achou que a FCC não estava justificando apropriadamente suas decisões e riscara algumas regras as quais considerava impossíveis de justificar. Opositores da desregulamentação da mídia desafiaram essas novas normas, reclamando da estupidez de ?juízes conservadores?”, diz o artigo.

Já faz 23 meses que a FCC enfrentou sua terceira revisão bienal. Powell esperava convencer a Justiça de que sua estratégia era baseada em fato e razão. Os opositores alegam que o poder da grande mídia está crescendo. Powell afirma o contrário, devido ao crescimento de TV a cabo e via satélite e da mídia digital, que fez crescer o número de proprietários em todos os EUA.

Quem dita as regras

A agência reguladora insiste em afirmar que suas revisões continuam refletindo os três objetivos primordiais da FCC: promover a diversidade, o regionalismo e a competição.

O meio-de-campo embolou. Além da briga acerca dos “achismos factuais” da FCC, a oposição diz que, tendo já deixado de regular o conteúdo da TV aberta, a FCC agora está sendo negligente em seu dever de garantir material de interesse público. A FCC nega a negligência, embora reconheça ter até certo ponto abandonado a prática de vigiar o conteúdo por considerá-la “perigosa”.

As peças da FCC são mais fortes, mas provavelmente menos numerosas e barulhentas. O grande erro de jogadores de xadrez afoitos e em vantagem é justamente ignorar os peões adversários, esquecendo que basta chegarem à oitava casa do tabuleiro para virarem rainhas.