Wednesday, 09 de October de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1308

Os benefícios da insônia

TELEJORNALISMO

Paulo José Cunha (*)

Quarto de hotel, madrugada de um dia qualquer de fevereiro passado em Manaus. E eis que ela chega e, de repente, invade o quarto, se instala, se adona da cama, da madrugada, do tempo, dos sonhos.

É assim, inesperadamente, que a insônia aparece e fica até resolver, a seu talante, a hora de ir embora. Acostumado com suas visitas, mantenho sempre ao alcance da mão um bom livro ou o controle remoto da tevê. E foi assim, sem paciência para enfrentar mais um capítulo do Habermas que repousava ao lado, que me deparei naquela madrugada com um programa especial da Globo News reunindo os repórteres Pedro Bial, William Waack e Sílio Boccanera, os três relaxados e surpreendentemente humanos ? como se fossem vizinhos que aparecessem para dois dedos de prosa ? falando de suas experiências na cobertura de campos de refugiados. Belo programa! Sem a obrigação de "falar de carreirinha", Bial, Waack e Boccanera demoravam-se em observações pessoais, não se incomodavam com o olho da câmera, distraídos em suas reminiscências, avaliando o apurado, pesando o sal da memória de quem testemunhou o cotidiano de seres humanos desprovidos (por uma pancada do destino) de qualquer futuro, os olhos vagando na ausência de casa, terra, país, esperança.

Belo programa! Aula de humanismo da melhor qualidade, produto tão raro hoje em dia.

Bendita insônia. Sem ela não teria acompanhado uma produção tão singela quanto excelente porque foi buscar não apenas a informação impactante que define a liderança no ibope, mas a reflexão cuidadosa, a troca de idéias, a inteligência em movimento, formadora da opinião que altera, que intervém no mundo íntimo dos homens para torná-los melhores.

Ao mesmo tempo, forçoso foi reconhecer que, naquela madrugada amazonense, eu era um dos poucos privilegiados com acesso à informação qualificada, já que a chamada tevê geralista ou de sinal aberto, ao abdicar da qualidade em nome da corrida pela audiência, diariamente dá a sua parcela de contribuição para aprofundar ainda mais a diferença social e econômica entre os habitantes do mesmo país. E não existe teste melhor para comprovar isso do que ter uma insônia e só dispor de um televisor com acesso aos canais abertos. Experimente, depois me conte.

O apartheid social fica evidente quando, fora algumas mínimas exceções, a gente corre o controle remoto e encontra o mesmo Pedro Bial pilotando um programa sobre livros no GNT, ou o noticiário das mais remotas comunidades ocupa espaço na programação dos canais de "hard news", em contraposição à indigência intelectual dos brothers (com o mesmo Pedro Bial negando seu belo passado de repórter tarimbado e responsável ancorando as abobrinhas que alimentam o apetite dos voyeurs), casas de artistas e hipertensões que premiam não a inteligência, mas a nojeira de quem consegue comer baratas, ratos, taturanas ou chafurdar na podridão dos esgotos.

Ainda há poucos dias, o fosso entre os brasileiros bem e mal-informados cresceu com uma ajudinha da GNT, que promoveu às 9 da noite excelentes debates comandados por Míriam Leitão com os presidenciáveis já lançados. Quem tem grana pra assinar a tevê a cabo conheceu melhor as propostas de cada um. Mas o povão ? que forma a fatia mais grossa desse bolo eleitoral e é quem decide a parada ? teve de se contentar com as edições compactadas dos debates no Jornal Nacional. Custava alguma coisa ter repetido os debates, mesmo que fosse nas madrugadas hoje recheadas de filmes B e abobrinhas Z? A sério: será que não dá pra exercitar, ao menos um pouquinho, essa tal de responsabilidade social dos canais de concessão pública?

E pensar que já houve tempo em que a qualidade e não a baixaria balizavam a disputa pela audiência… Alguma coisa de muito grave anda acontecendo. Não se trata de saudosismo mas de mera constatação a marcha à ré da qualidade em que a tevê de sinal aberto se enfiou. Um buraco tão esquisito e sórdido que não escapou sequer do comentário insuspeito de José Bonifácio de Oliveira Sobrinho, o Boni. Na semana passada ele distribuiu uma nota a um grupo de amigos comentando ofício dos irmãos Marinho negando interesse em tê-lo de volta à Globo (Ricardo Boechat, 27/4/02). Lembrou ter entregue aos herdeiros de Dr. Roberto "uma das maiores empresas de TV do mundo". E acrescentou: "Manter o que deixamos pode ser considerado façanha, mas é apenas obrigação. Resta saber a que custo. (…) Prefiro não entrar nessa questão, já que a imprensa e os balanços revelam o que estamos cansados de saber. Sem reproduzir programas estrangeiros e incorporando importantes contribuições culturais e artísticas brasileiras, criamos um Padrão de Qualidade, hoje em fase explícita de extinção".

Se tivesse sido eu a escrever isso aí, tudo bem, ninguém precisava levar a sério mesmo. Mas se foi o Boni, então é porque a coisa anda mesmo complicada. Tão complicada que se tornou extremamente perigoso enfrentar uma crise de insônia sem um controle remoto de tevê a cabo por perto. Deus que nos defenda de tão cruel castigo. Pouco antes de fechar este artigo deparei-me com a coluna de Eugênio Bucci, na Folha de domingo passado. Na mesma linha, ele finaliza o artigo escrevendo: "A TV às vezes parece ser feita não para o povão, mas contra o povão, algo assim como um desaforo. A TV é o verdadeiro prato de vermes que vai goela abaixo dos outros, mas nunca é servida à mesa dos magnatas."

Os magnatas da TV estão assistindo a um DVD. Ou sintonizam um canal a cabo pra exercitar o inglês da Cultura. O que Bucci não percebeu é que a TV foi, sim, feita para o povão. Pois para continuar povão é preciso que essa gente seja educada a comer baratas, educada a morar nos esgotos. Vocês não estão vendo que isso aí é a tal da tevê educativa, gente?

(*) Jornalista, pesquisador, professor de Telejornalismo, diretor do Centro de Produção de Cinema e Televisão da Universidade de Brasília. Este artigo é parte do projeto acadêmico "Telejornalismo em Close", coluna semanal de análise de mídia distribuída por e-mail. Pedidos para <upj@persocom.com.br>