Friday, 03 de May de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1286

Os boletins semanais de Julio Mesquita

A GUERRA (1914-1918)

Gilles Lapouge (*)

A Guerra (1914-1918), de Julio Mesquita, 4 volumes e em CD-Rom, co-edição O Estado de S.Paulo/Editora Terceiro Nome, São Paulo, 2002; <www.terceironome.com.br>, telefone (11) 3483-0333

As guerras não acabam. Pelo menos as sérias ? e a de 1914-18 foi a mais séria de todas. A mais terrível.

Ainda hoje, obuses soterrados nas florestas de Verdun ou do Somme explodem, e corpos de soldados mortos há quase um século ressurgem do fundo da terra. De tempos em tempos, é preciso evacuar uma cidade inteira para permitir que os "caçadores de bombas" desarmem enormes quantidades de obuses enterrados. O trabalho de purgação é longo: no ritmo em que se trabalha, o subsolo francês só deverá estar totalmente limpo em setecentos anos.

As hostilidades terminaram no dia 2 de novembro de 1918, e toques ensolarados de clarim levaram a boa nova ao mundo ? mas, enquanto isso, a guerra continuava, muda, subterrânea ? e, quase um século depois, ainda prossegue, já que, às vezes, ainda mata uma criança que brinca distraída, nas dunas, com uma bomba lançada em 1917.

Estava eu exatamente refletindo sobre esse tema quando, em junho de 2000, um documento extraordinário caiu-me nas mãos: os artigos que Julio Mesquita escreveu todas as segundas-feiras, durante cinco anos, em O Estado de S. Paulo, sobre o monstruoso conflito que se transformou, para o mundo inteiro, no arquétipo da "guerra moderna".

Folheei atentamente aquelas páginas. Elas primeiro me apaixonaram, depois me perturbaram: as palavras, renascidas do silêncio, mudaram todas as imagens que eu tinha da Grande Guerra. Todas as figuras do conflito se metamorfoseavam diante dos textos escritos por um jornalista brasileiro, tão longe da França. A "minha" guerra de 14-18, que eu acreditava inerte e petrificada para todo o sempre, revivia. Em vez de ficar ajuizadamente quieta em um canto da memória, ela se agitava, me acenava. Seu estilo, sua figura, seus segredos, sua parte desconhecida, seu incognoscível, tudo, de súbito, mudava de cor.

E eu via desenhar-se, sob meus olhos, uma guerra que era ao mesmo tempo a mesma e, ainda assim, outra. Creio que isso se deve a duas razões: primeiro, o talento do autor, tema a que voltarei, e, depois, o lugar de onde Julio Mesquita observava a tragédia ? o Brasil, tão longínquo, sobretudo nesses tempos em que o correio ainda mal funcionava e as notícias se arrastavam na travessia dos oceanos, perdendo-se, às vezes, pelo caminho.

Na França, tínhamos o nariz enterrado na guerra: cada um de nós, da minha geração, tinha um avô, ou um pai, um tio, um parente morto nos bosques de Argonne ou nas casamatas de Verdun. Nas noites da nossa infância, ouvíamos, fascinados e horrorizados, os relatos dos sobreviventes. E se fazíamos um passeio, aos domingos, atravessávamos aldeias adormecidas onde monumentos aos mortos compõem uma grande biblioteca-fantasma, tendo, às vezes, gravados em mármore negro, numa aldeia minúscula, os nomes de quatro, cinco ou até seis irmãos aniquilados na tormenta.

Assim cristalizou-se em nós, franceses, o sentimento de que aquela guerra mundial havia sido uma guerra que pertencera apenas à França e à Alemanha. Era nossa. Nossa especialidade, nosso triste tesouro, nossa memória e nossa propriedade, nossa desgraça pessoal, nosso inferno particular e terrível glória.

Eram as nossas casas que ela havia destruído, nossas colinas e campanários que ela demolira. Sabíamos que haviam existido outros teatros de operação, e que horrores semelhantes haviam acontecido nos Dardanelos, no mar, na baía de Heligoland. Nós sabíamos. Os livros, os professores, no-lo contavam. Mas, no nível do "vivido" ? e, mais ainda, nas profundezas do inconsciente ?, a Guerra de 1914 era o Marne, Verdun, Somme, o Chemin-des-Dames e os corpos dos nossos ancestrais perdidos na escuridão.

O narcisismo ? que é, às vezes, o outro nome do patriotismo ? se esforçava por reduzir um conflito mundial a uma briga de família entre alemães e franceses. E é nesse ponto que o texto de Julio Mesquita funciona, para um francês, como uma ruptura, deslocando as perspectivas, embaralhando os traços. Falava-se, outrora, na "revolução copernicana", que fez com que a Terra girasse em torno do Sol, e não o contrário, como se acreditava na Idade Média. Para mim, os artigos de O Estado operaram, numa medida mais modesta, uma revolução da mesma ordem. Mudaram a posição dos astros.

Não há dúvida de que Julio Mesquita, francófilo ardente, formado na cultura européia, estava tão envolvido no drama de 1914 como qualquer habitante do Velho Continente ? mas o seu distanciamento permitia-lhe ver, à distância, coisas que nós, cara enterrada na cena e míopes como toupeiras, não enxergávamos.

Os artigos de O Estado dão uma importância considerável e muito legítima àquilo que se passava ao norte e ao leste da França, mas reinstalam, sempre, cada combate em um conjunto infinitamente mais amplo, tal seja o espaço do planeta. Todas as proporções são corrigidas e enormemente ampliadas. Episódios julgados essenciais, quando observados a partir de Marselha ou de Brest, se modificam, se dissolvem, quando medidos pela dimensão do Cosmo. E, sobretudo, cada tiro de canhão sobre a "linha azul dos Vosges", ecoa na Rússia ou na América e é decifrado por acontecimentos que se passam no mesmo momento em outros países. Em Bagdá, na Turquia, na Prússia Oriental, na Caríntia. É esse o mérito incomparável do que eu gostaria de chamar de "olhar distante".

Jean-Jacques Rousseau já compreendera a importância da posição, mais próxima ou mais distante, do observador: "Quando queremos estudar os homens", diz ele, "é preciso olhar perto de nós. Mas para estudar O Homem, é preciso aprender a observar de longe". O antropólogo Claude Lévi-Strauss completa Rousseau brilhantemente: "Eu compararia a antropologia à astronomia, onde o objeto de estudo está muito longe de nós. Assim, somos obrigados a nele ver apenas as suas propriedades fundamentais. Se os homens pudessem se aproximar dos astros, nasceria uma nova ciência, com certeza interessante, mas que não mais seria a astronomia. O fundamento da astronomia é precisamente a distância. E eu diria o mesmo da antropologia".

O modelo astronômico sugerido por Lévi-Strauss aplica-se perfeitamente ao texto de Julio Mesquita: seus artigos nos permitem passar do estudo de uma única estrela (os combates na França) à visão de um céu sem manchas, que ilumina e destaca o movimento de cada um dos astros que o compõem.

A primeira a lucrar com isso é a leitura: graças a esse olhar distante, o balanço da guerra se anima, se complica, se enriquece maravilhosamente. Encontramo-nos de chofre diante de um quadro repleto de objetos e personagens, como em um prodigioso ciclorama. Lá embaixo, na longínqua Prússia Oriental, adivinhamos as tropas russas que sacodem seu torpor para derrotar as forças de Hindenburg, enquanto, nos Dardanelos, os combatentes ingleses cavam as suas trincheiras. No amplo mapa de operações, uma luz brilha por um instante e depois se apaga, enquanto outra região se avermelha em chamas, e depois outra, e outra… e é na totalidade dessas chamas e dessas noites que o retrato total do incêndio aparece.

É aqui que o talento do jornalista entra em jogo. É preciso muito saber e muita arte para visualizar e dar vida a todos esses exércitos, semi-entorpecidos, semiperdidos, correndo de cá para lá sobre meio hemisfério, ao mesmo tempo em terra e no mar, cada um agindo aparentemente só do seu lado, mas engajados, todos, na mesma empresa obscura, caótica, opaca e, a princípio, ilegível. Sua arte evoca a de certos grandes pintores antigos que sabiam ilustrar cenas complexas, iluminando fortemente os primeiros planos sem nem por isso esquecerem os planos secundários, os fundos, os azuis esmaecidos de horizontes fugidios.

A comparação com esses pintores se justifica: como eles, Julio Mesquita sabe dirigir o foco para o ponto mais crucial da tragédia, sem esquecer os planos de fundo, as sombras nas quais já se agitam confusamente os atores da próxima cena. Um pouco à maneira de Rembrandt, que em seu La Ronde joga o foco principal no capitão Coq, mas, na penumbra, nos mostra também um cãozinho misterioso que parece guiar (para que destino?) o bando de magistrados de Roterdã.

Alguns exemplos: em agosto de 1914, Julio Mesquita nos conta que cada soldado alemão tem três pares de botas. Em 20 de setembro, informa que 1.500 soldados portugueses partiram para a África Negra. E, já em outubro, nos fala da exploração do enxofre no Chile.

Detalhes insignificantes, poderá alguém dizer, no momento em que na França o exército alemão, depois de esmagar a Bélgica, toma posição entre os rios Meuse e Oise e ameaça Paris. Mas, ao longo dos meses, vai-se compreendendo que esses detalhes, insignificantes na aparência, têm sentido: três pares de botas ? não quer isso dizer que a Alemanha se preparou muito bem para a guerra? Os 1.500 soldados portugueses enviados para a África mostram que o conflito é, a cada dia, menos franco-alemão e mais planetário. E a nota sobre o enxofre do Chile nos alerta de que a Alemanha vai ter dificuldade em adquirir o adubo necessário aos seus campos, pois estará sendo privada das 800 mil toneladas de nitrato chileno que antes consumia.

Julio Mesquita tinha plena consciência desse "olhar distante". Ele até fala nisso. "Para bem apanhar a verdadeira posição da Alemanha em terra", diz ele , "é preciso desviar os olhos da França, subir um pouco mais e circunvagar a vista pelo grande círculo em que se ateia a conflagração na Europa." E ainda acrescenta que cada uma das batalhas, tão diversas, é na verdade um elo da mesma cadeia: "A verdade, porém, é que se está travando, naquele trecho da Europa, há algumas semanas, uma só interminável batalha, cuja linha monstruosa se estende desde a Rússia até a França, com curvas mais ou menos suaves, ou mais ou menos violentas, pela Áustria, pela Sérvia, pela Prússia e pela Bélgica".

Julio Mesquita fala com freqüência em defesa dessa visão "totalizante, globalizante", que permite decifrar o sentido mascarado (escondido) dessa "história cheia de som e fúria". "Torna-se pois indispensável", escreverá ele mais tarde, "que se apanhe, de um só olhar, o que se passa no Oriente e o que se passa no Ocidente, como se estivéssemos no centro de um semicírculo ? como se a luta da Rússia e da Áustria, da França e da Bélgica, fosse uma só e imensa batalha, dirigida por uma só vontade, obedecendo, todos aqueles milhões de soldados, a uma única voz de comando em cada linha."

A globalização feita pelo jornalista não se limita ao espaço das batalhas: ela se prolonga na preocupação de considerar incessantemente os diferentes estratos de um conflito paralelo ? geografia, história, economia, moral, vida doméstica etc.

Julio Mesquita não comete o equívoco de dar, cedo demais, importância fundamental à guerra submarina. E também percebe que a guerra é condicionada ao mesmo tempo pela política e pela economia, abandonando com freqüência as trincheiras do Aisne ou do Somme para nos conduzir aos ministérios de Londres ou de Berlim, contar as intrigas que se tramam na Rússia em torno de Nicolau II, um czar extenuado, rodeado pelas silhuetas espectrais e trágicas de Rasputin e Lenin ("a figura enigmática e interessante de Rasputin", diz ele).

O mesmo acontece em relação à economia. Seu olhar se volta para a City de Londres ou para os bancos da América antes mesmo que os Estados Unidos entrem na guerra. Esse modernismo é um alerta: "Esta guerra é, antes de tudo, comercial", diz Mesquita em 1917. "A humanidade sofre porque a Alemanha deliberou enriquecer, consolidar a riqueza que adquiriu na produção delirante da sua indústria." Mais um mérito extraordinário do "olhar distante".

Será que poderíamos dizer, contudo, que em alguns casos esse afastamento do campo de batalha impediu Mesquita de perceber, ou até de compreender, certas cenas do drama? Creio que isso é fatal, embora possa ser atribuído às falhas e caprichos dos meios de comunicação. É por isso, aliás, que ele se dá ao trabalho de explicar, de quando em quando, como é que as informações chegam ao Brasil, muitas vezes com lacunas, e quais são as qualidades ou defeitos das diversas agências de notícias ou jornais (os ingleses, observa ele, são os mais exatos, mas também os mais frios; os franceses são corretos mas um pouco chauvinistas; e os alemães mentem desavergonhadamente, para transformar em vitória inesquecível uma simples escaramuça).

Assim, é fatal que certas cenas surjam truncadas, deformadas ou até ignoradas, simplesmente porque nenhuma fonte de informação deu-se ao trabalho de divulgá-las. E não nos deve surpreender que os relatos do Estado, sempre minuciosos e precisos, sejam, aqui e lá, incompletos, sem que se possa saber se essas falhas e silêncios se devem a um esquecimento das fontes ou a uma distração do autor.

Mas, o que é estranho, é que às vezes essas "faltas", longe de desfigurar a imagem da guerra, a corrigem, retificam-na ? ou, ao contrário, livram-na de algo inútil. Temos um exemplo curioso disso na batalha do Marne, que transcorreu logo nos primeiros meses, quando a França estava de joelhos. (Note-se, porém, que jamais os artigos perdem a esperança, mesmo nos piores dias do sinistro setembro de 1914: "A França não quer morrer, e já agora não é nenhuma temeridade assegurar que, desta vez ao menos, não morrerá", escreve ele.)

Voltando à batalha do Marne, lembremo-nos de que o Plano Schlieffen, criado pelo general alemão Moltke, previa a derrota da França em seis semanas, de forma que a Alemanha se voltasse em seguida contra os russos (mais lentos do que franceses e ingleses na mobilização). E assim foi feito: os alemães atravessaram a Bélgica, que ? para surpresa geral ? resistiu militarmente ao seu "pedido" de passagem livre.

A batalha das fronteiras foi perdida pelos ingleses. Os alemães invadiram o norte da França, atingindo a linha que ia de Nancy até Arras, passando por Verdun. Seguindo em frente, passaram por Reims e se detiveram a 50 quilômetros de Paris. O general Joffre assistiu, impotente, ao recuo das suas tropas, mas, no início de setembro, compreendeu que as tropas alemãs, na tentativa de contornar Paris, ofereciam-lhe o flanco. Deu-se, então, o contra-ataque francês, de 5 a 9 de setembro. Um tremendo golpe ? e os alemães começaram a recuar.

Julio Mesquita percebeu perfeitamente que, naqueles dias, a sorte da guerra oscilava como um fiel de balança. Com freqüência, mesmo nos anos que se seguiram, ele voltava a esse momento fascinante em que a "derrota programada" da França hesitou… tremeu… e foi finalmente conjurada. E diz, da batalha do Marne, que ela foi, "sem dúvida alguma, a maior batalha de todas as guerras de que nos fala a história da humanidade".

Ainda assim, ao ler seu texto, um "esquecimento" me impressionou: Mesquita não fala dos "táxis do Marne", negligência que me intrigou e, depois, até entristeceu. Para os franceses, "os táxis do Marne" são sagrados. São tão importantes, para nós, quanto Napoleão em Arcole, o batismo de Clóvis ou Joana d?Arc na fogueira em Rouen. São cenas emblemáticas, brasões de uma nação, entre o real e a lenda.

E o que eram esses táxis?

Pois. No começo de setembro de 1914, o rolo compressor alemão esmagou Paris. O exército francês não mais se agüentava, e os reforços não conseguiam chegar até a linha do Marne. E foi nesse momento de longa agonia que o gênio francês ? esse talento sutil, leve, indecifrável e imprevisível, pelo qual todos os franceses se sentem responsáveis e do qual se sentem donos ? teve um desses achados que fazem da história da França um verdadeiro conto de fadas: os generais fizeram um apelo a todos os táxis de Paris ? e, aos milhares, seus heróicos motoristas responderam ao chamado da Pátria.

Ignorando o perigo, o risco de terem de parar por causa de um pneu furado, eles transportaram todos os soldados que se encontravam em Paris para a frente de batalha. Uma apoteose: os espantados alemães viam milhares de carros velhos chegarem, aos trancos e barrancos pelas estradas destruídas por batalhas, prontos a saltar como rolhas de champanhe se passassem sobre uma mina. E regimentos inteiros desciam desses táxis, sacavam de seus fuzis, atiravam ? e transpunham as barreiras alemãs. Foi o chamado "milagre do Marne".

Inútil dizer que nós, filhos dos combatentes de 1914, adoramos esse episódio, lindo como um cartão-postal, colorido e alegre, divertido, insolente, criativo, iluminando ao máximo o talento da Eterna França. Esse episódio é a menina dos nossos olhos, como, para os ingleses, o almirante Nelson na batalha de Trafalgar, como, para os brasileiros, a morte de Tiradentes. E eis que Julio Mesquita me confisca os meus táxis, ignorando-os totalmente! Ele narra a batalha muitíssimo bem, mas se esquece de uma coisa essencial: os táxis, pequeno detalhe luminoso da alma francesa.

Tive razão, compreender-se-á, de ficar perplexo, triste, e até indignado. E parti eu mesmo em busca desse brumoso episódio. Consultei os livros mais sérios, cruzei informações ? para descobrir, consternado, que os tais táxis do Marne, se existiram, não foram muitos, e que o seu papel foi quase insignificante.

O melhor historiador atual da Guerra de 1914, Stéphane Audouin-Rouzeau, dá um veredicto sem apelação em seu livro A Grande Guerra (Edições Le Seuil): "A batalha do Marne foi vencida em parte porque os trens, mais bem utilizados pelos franceses, permitiram uma concentração mais eficiente das nossas forças […]. O papel dos táxis do Marne é meramente anedótico".

Muito bem. Admito. Não vou lutar contra Julio Mesquita e Stéphane Audouin-Rouzeau… Mas nem por isso vou jogar fora essa minha imagem de infância. Sei muito bem que a história de um país é um tecido onde se entrelaçam os fios da realidade e do imaginário. Acontecimentos que não se deram na realidade podem ter mais conseqüências do que os que ocorreram de verdade. É assim com os meus "táxis do Marne". Aceito que esse episódio heróico tenha acontecido apenas nos nossos sonhos ? mas ainda assim aconteceu. E deu origem a outros sonhos, donde, a outras realidades. Que guardo comigo.

Salto epistemológico

Não pretendo aqui comentar todos os "boletins", nem julgar os seus acertos. Digo apenas que o todo é um modelo de correção, inteligência crítica, verificação e rigor, ainda que ? e felizmente ? aqui e ali surjam uma incerteza, um esquecimento. Como, por exemplo, a agonia do império do czar, a Revolução, a luta entre Kerenski e Lenin e entre Lenin e Trotski, onde encontramos alguns "pontos cegos".

Kerenski é primeiro apresentado como um visionário, um homem resoluto, o único capaz de derrotar os bolcheviques. "Graças à influência de Kerenski e de Plekhanov, socialistas ordeiros, a propaganda tumultuária de Lenin e Skobelev não produziu o efeito de abandono e deserção com que a Alemanha contava: o exército russo pouco a pouco se dispõe ao cumprimento do dever patriótico de levar a guerra até o seu fim natural", escreve Mesquita. Mas, um pouco mais tarde, o mesmo Kerenski recebe outro tratamento, classificado de "decepcionante e hesitante", um homem "cuja energia é apenas verbal". Mais quinze dias, e Kerenski é de novo perdoado.

Da mesma forma, o que se passa em Cronstadt ? um dos grandes momentos do destino do século ? não é reconhecido ("Os anarquistas de Petrogrado e Cronstadt", diz o Estado). Além disso, não será um pouco limitado pintar Lenin como "célebre energúmeno"?

Mas, na verdade, como dizê-lo de forma diferente? E quem poderia ter previsto, à época, a orgia de trevas e sangue, as cenas espantosas, cruéis e incoerentes que se desenrolavam justamente em Petrogrado? É fácil demais dizer, em 2001, que Lenin marcou ? para o bem ou para o mal, segundo a ideologia de quem fala ? o século XX, mas como terá sido possível profetizá-lo, bem no início dessa terrível aventura, no momento em que a Rússia não passava de lava em fusão?

Julio Mesquita, escrupuloso como o foi ao longo de todo o seu trabalho, estava bem consciente dessas falhas por entre as quais caminham os seus comentários. "O vasto mar da História", escreve ele, "não está cheio senão pelos historiadores do passado. De todas as ousadias do espírito humano, nenhuma nos parece mais vã e, portanto, mais inútil que a de escrever a História por previsão. Já é tão difícil, às vezes, historiar o que se vê!"

Falando ainda de Petrogrado, ele descreve sua "misteriosa obscuridade", imagem belíssima. Ou, ainda: "As revoluções como a da Rússia são cavernas de surpresas, cujas portas escancaradas só o Tempo fecha".

Cito estas palavras para mostrar que uma força dos artigos é o seu estilo, o estilo de um jornalista felizmente isento da grandiloqüência pedante de que estava tão cheia a imprensa na época em que ele escrevia. Mesquita pinta. Explica. Dá todos os elementos. Acumula informações. E dramatiza. Mas, ao mesmo tempo, é mais que jornalista. Sua linguagem é rápida, nervosa e bela. A intervalos, ele ergue o tom. E fala de sua filosofia pessoal, "ligeiramente amarga". Expressa seu horror "pelo militarismo, pelas ditaduras" (incluído aí certamente o militarismo brasileiro) e pelo "despotismo dos Romanov na Rússia".

Há um ponto em que ele chega a ser premonitório, ao falar da Alemanha. Julio Mesquita é um ardoroso francófilo e democrata, o que não o impede de admirar a inteligência, a técnica, a ciência, a organização e os poetas alemães. Por que, então, mostra-se ele tão rigoroso e implacável para com a Alemanha do kaiser? Por causa do pangermanismo, que "distraiu a Alemanha da sua luminosa missão". E note-se ainda que, em certos momentos, a crítica furiosa que ele faz da Alemanha de 1914 a 1918 e da sua ideologia do "super-homem" poderia se aplicar, sem mudarmos uma vírgula, à Alemanha de 1933.

De passagem, admirei também, nos artigos, as referências históricas fortíssimas. Mesquita evoca Homero e Shakespeare, mas também Fénelon, Frederico da Prússia ou a batalha das Termópilas. Faz comparações com a Guerra de 1870. Cita aforismos do "mestre imortal" que admira, Napoleão. Pergunto-me se, em 2001, haverá muitos jornalistas que possam se permitir um texto com referências culturais tão refinadas. A explicação é sem dúvida sociológica: em 1914, os leitores de um grande jornal diário eram recrutados em uma única classe social, a burguesia, em geral na média e, sempre, na alta, bem mais cultas.

As hesitações, os silêncios, e mesmo as pequenas incorreções que porventura se infiltram cá e lá nesses belos textos têm, a meu ver, ainda mais um mérito: conferem aos artigos um sabor raro, que nenhuma história da Guerra de 14-18 jamais poderá ter, o sabor do suspense. Sabemos todos como é que a guerra terminou, como se concluíram as batalhas de Soissons, Galípoli, ou do Chemin-des-Dames. Julio Mesquita, ao contrário, quando escreveu, não tinha a menor idéia de para onde iriam os exércitos. Ele os observava em suas manobras, via-os avançar nas sombras da noite, mas era apenas no dia seguinte que a paisagem para onde eles haviam ido se iluminava. O texto dessa maneira se enriquecia, por assim dizer, graças à "ignorância" dos homens que viviam a realidade no momento. E, por uma estranha empatia, o leitor, hoje, coloca-se inconscientemente na mesma posição dos homens de 1914 ou 1917. Eu mesmo, com freqüência, li esses comunicados como se não conhecesse o final da tragédia.

Verdun, Cracóvia, Caporetto, li todos esses episódios como quem lê um capítulo de um romance que não se sabe se vai acabar com o casamento da heroína, sua morte ou sua partida. É em traços dessa espécie que se reconhece a "mão" dos grandes romancistas: posso reler quantas vezes for O vermelho e o negro, de Stendhal, ou Crime e castigo, de Dostoievski, ou, ainda, A montanha mágica, de Thomas Mann, e, a cada vez, viro as páginas com a mesma avidez, como se não soubesse o fim da história. Mistério e fascínio da leitura…

Poderia falar ainda muito sobre esses belos "boletins", mas vou me limitar a mais duas reflexões: o autor percebe rapidamente a enormidade das proporções do conflito. Desde os primeiros artigos, fica atordoado com a monstruosidade da aventura, e, donde, por sua unicidade em relação a todas as guerras precedentes.

E é por isso que Julio Mesquita hesita, sempre, entre duas atitudes do espírito: de um lado, como excelente historiador (e, até, filósofo da História), ele coloca a Guerra de 14-18 na seqüência de outras guerras da humanidade, o que explica as referências a Napoleão, aos generais da Grécia ou da Roma antigas. Mas, ao mesmo tempo, ele vê bem que o primeiro golpe de 1914 é absolutamente inédito, sem precedentes, cortando em dois a história da humanidade (donde, das suas guerras).

Mesquita está consciente de assistir a um espetáculo inédito, no mundo. E manifesta esse espanto diante do gigantismo da tragédia na própria linguagem: fala em "colossos que se defrontam", em "hordas imensas" que se batem, em batalhas planetárias, etc. E sabe, também, que essa deplorável originalidade da guerra mundial se explica pela industrialização e pela tecnologia.

Nada mais verdadeiro: foi a Guerra de 1914-18, bem mais que a de 1939-45, que deu um "salto epistemológico" nas guerras. Mesmo as ferozes batalhas de Napoleão eram artesanais, mas com a Guerra de 1914 assistimos a um espetáculo novo, uma humanidade que usa meios industriais para destruir a si mesma.

E uma segunda idéia acompanha essas constatações desencantadas: é a incredulidade escandalizada com que o autor constata que esse abominável conflito jogou, umas contra as outras, as nações mais civilizadas do planeta ? França, Alemanha e Inglaterra. Onde fica a cultura, então? E Byron, Virgílio, Racine, Rousseau e Voltaire, Goethe, Schiller e Kant, e Hegel, e a Declaração Universal dos Direitos do Homem, e a Torre Eiffel, e Newton e Galileu?

Por que ? mas, por quê? ? foi então preciso que esses países, obras-primas do espírito humano, fossem precisamente aqueles onde se desenrolaram os combates mais cruéis, bárbaros e sórdidos, numa vertigem de sangue, como se tanta beleza e talento repousassem sobre uma fina camada de gelo sob a qual se agitavam as águas geladas do Nada?

(*) Jornalista e escritor