Monday, 29 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1285

Os chutes de Pinóquio

CANDIDATOS & JORNALISTAS
(*)

Alberto Dines

As patadas de Ciro Gomes nos jornalistas têm a ver com a sua compulsão para patranhas. A imprensa representa a busca da verdade e esse prolífico criador de lérias não suporta a mera presença física daqueles que podem contraditá-lo.

Na última quarta os jornais europeus deliciavam-se com a notícia sobre a escolha do "Rei dos Mentirosos", que a pequena localidade de Moncrabeau (Sudoeste da França) promove todos os anos. No certame ? realizado com a maior lisura, sem a menor aldrabice ? a Academia de Mentirosos, presidida pelo próprio burgomestre, escolheu um francês e destronou o alemão (O Estado de S.Paulo, 7/8, página A-17).

Mentira é coisa séria. Sob o ponto de vista moral é a aberração nuclear, capaz de levar a outras, capitais; na psicopatologia indica grave desvio de personalidade, núcleo da mitomania, fantasia e paranóia. O que se convencionou chamar de loucura é apenas a mentira levada ao paroxismo, exacerbação do faz-de-conta.

Todos os ditadores mentem, todos os déspotas falseiam, todos os tiranos enganam. E como a postura elementar dos jornalistas consiste justamente em desvendar imposturas, evidencia-se a razão da incompatibilidade do presidenciável com a imprensa.

Nixon, ao ser expelido da Casa Branca, proclamou "I’m not a crook", não sou trapaceiro, e Bill Clinton, para não seguir o mesmo caminho, teve de admitir na TV todas as peraltices conjugais com a rechonchuda estagiária. Os americanos, obcecados pela sucessão de mentiras na sua recente história política, devoram neste momento seis livros sobre o assunto, dois deles best sellers: The Liar’s Tale, a History of Falsehood, de Jeremy Campbell, e Lying, Moral Choice in Public and Private Life, de Sissela Bok.

Collor mentiu tanto, que hoje nem ele acredita na maranduba do dia. E Ciro Gomes, que não consegue descolar-se do ex-quase-futuro parceiro, vai pelo mesmo caminho. Caso do Barão de Munchhausen (1720-1797), que exagerou de tal forma as façanhas que se convenceu de sua veracidade, produzindo hilariante clássico da lorotagem.

Mentira tem pernas curtas e nariz comprido, diz um ditado que atravessa o tempo e as fronteiras. A sabedoria popular adverte o eventual embusteiro de que não poderá ir longe, o embuste flagra-se nas fuças. O que nos leva à genial criação do florentino Carlo Collodi (1826-1890), a fábula do boneco de madeira criado pelo marceneiro Geppeto na esperança de reproduzir a vida.

Pinocchio ou Pinóquio é uma inesgotável metáfora que fascina crianças, seduz adultos e inspira artistas, poetas e cineastas (Disney, Kubrick, Spielberg, Coppola, Benigni). Pode ser visto como precursor da Inteligência Artificial, robôs, Frankenstein ou do Golem. A idéia do boneco desonesto e mentiroso capaz de ser recuperado para tornar-se humano e generoso permeou um método pedagógico com grande penetração na Europa e no Brasil.

Apesar da porção edificante, Pinocchio, com seu patético nariz magnificado a cada empulhação, converteu-se em símbolo físico da balela. Representação plástica da mentira que nenhuma cirurgia conseguirá corrigir. Para disfarçá-la, inventa outras e depois outras, de onde se conclui que mentiroso nunca é reservado. Ao contrário, falador compulsivo, tagarela, protege suas lérias com enorme quantidade de palavras, de modo a impedir que o interlocutor consiga pegá-lo pelo pé.

Cantinflas disfarçava suas confusões com a formidável loquacidade. Lembra a parolagem do presidenciável made in Harvard. Flagrado nos chutes numerológicos, agora tenta agredir e chutar aqueles cuja função é desvendá-los.

(*) Copyright Jornal do Brasil, 10/8/02