Thursday, 10 de October de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1309

Parede podre, mão de tinta

FÓRUM , FABICO & PROVÃO

Daniel Barbosa Cassol (*)

De um dia para o outro, boa parte do primeiro andar da Fabico apareceu pintado. Até as paredes do banheiro, um dos mais importantes veículos informativos e de debate da faculdade, receberam uma ou duas mãos de tinta. Os estudantes ficaram indignados.

Explica-se.

O prédio onde funciona a Faculdade de Biblioteconomia e Comunicação da UFRGS tem cara de tudo, menos de faculdade. Uma espécie de grade de concreto que envolve parte da fachada dá à Fabico a aparência de um presídio, além de servir de viveiro de pombas. As salas de aula, paredes mofadas e repletas de infiltrações, não oferecem as mínimas condições para que nelas aconteçam, de fato, aulas. O jardim de inverno, espaço de convivência dos estudantes, serve hoje de depósito de lixo. Tudo isso porque, como já disse, o prédio é totalmente impróprio para o funcionamento decente de uma faculdade. Antes, era ali que funcionava a Gráfica da UFRGS, que hoje ocupa apenas parte do segundo andar. No restante, se estuda, ou se tenta estudar, Comunicação Social.

Foi uma construção feita às pressas e sem nenhuma originalidade arquitetônica, muito menos bom senso. Com a Reforma Universitária do final da década de 60, o Curso de Jornalismo foi desvinculado da Faculdade de Filosofia da UFRGS e assim se criou a Fabico. "Não foi por acaso", costuma lembrar um professor, que o regime militar resolveu afastar os estudantes de Jornalismo dos de Filosofia. A idéia não poderia ter sido mais original e eficiente. Não por acaso, mais uma vez, desde 1971 o curso de Comunicação da UFRGS vive isolado no campus, vejam só, da saúde.

Pois nos últimos dias o prédio mais feio da UFRGS recebeu a já mencionada mão de tinta e, além disso, teve seu auditório todo reformado e modernizado. A revolta dos estudantes se explica porque todas essas mudanças aconteceram em virtude da realização, nas precárias instalações da Fabico, do 5o Fórum Nacional de Professores de Jornalismo, de 28 a 30 de abril.

Não há nada de mais em querer receber bem os convidados na nossa casa. No entanto, para os estudantes fabicanos, que freqüentam diariamente o prédio, a atitude soou quase como uma piada.

Isso nos faz lembrar a cultura que tem sido a tônica das "transformações" dos cursos superiores provocadas pelo Provão e a Avaliação das Condições de Ensino, até agora aplicada apenas uma vez nos cursos de Jornalismo, quando ainda se chamava Avaliação das Condições de Oferta. O que aconteceu com a Fabico, mesmo que tenha sido fruto da boa vontade dos organizadores do evento, pode ser considerado um sintoma de como a concepção de avaliação do MEC tem refletido nas universidades.

Na manhã de sábado, dia 27, fui à PUC assistir à palestra do professor Nilson Lage sobre as principais perguntas feitas em relação ao Provão de Jornalismo. Sem ser convidado, diga-se, porque ali estudantes não entram. Entre tantas perguntas respondidas numa apresentação de powerpoint, senti falta de apenas uma: por que o Provão é uma prova?

O Exame Nacional de Cursos pretende avaliar todas as questões que envolvem um curso superior através de uma prova que dura quatro horas, a qual os alunos comparecem porque são obrigados. Tentam complementar a avaliação por uma "visita de médico" da comissão de especialistas da ACE, feita apenas uma vez até agora.

Vergonha na cara

Muito mais por má intenção do que por incompetência, a avaliação pensada pelo MEC não acolhera conceitos como processo, contextualização, globalidade. Avaliar uma universidade através do Provão é como ler a orelha do livro e duas páginas internas e escrever de pronto uma resenha, prática comum no jornalismo de hoje. Como já se disse por aí, o Provão não é uma avaliação. É um mau teste.

Assim, fica fácil uma faculdade parecer boa. Basta que no dia da festa passe sua mão-de-tinta nas paredes mofadas, infiltradas e sujas, como a Fabico fez para esperar o Fórum. Casos como esse não faltam e deles ficamos sabendo em conversas com estudantes de diversas partes do Brasil. Não são raras as faculdades, até mesmo públicas, que oferecem cursinhos pré-Provão. Em algumas particulares, são distribuídos prêmios aos mais bem classificados. Quem não gostaria de ganhar um carro zero de barbada?

Quem dá o exemplo é o MEC. É só ver na Revista do Provão as fotos dos sorridentes alunos que ganharam uma bolsa da CAPES por terem respondido educadamente à prova e tirado as melhores notas de seus cursos. Ou ver que o próprio MEC alerta que a nota do Provão já está sendo usada como critério dos empregadores do deus-mercado. Atitudes que podem ser classificadas com uma palavra da moda: terrorismo.

Continuemos: muito se ouve falar de universidades que contrataram professores pós-graduados e alugaram computadores novos para esperar a comissão de avaliação. Ao final da visita, os computadores foram devolvidos com a mesma rapidez com que os professores foram demitidos.

Mas não é preciso ir muito longe. Posso lhes contar um caso que presenciei. Uma professora nossa, conhecida por ser, desculpem, muito ruim, chegou um belo dia em sala de aula totalmente transtornada, dizendo que o MEC estava em cima, que não tinha mais brincadeira e que uma das exigências era que o professor indicasse livros a cada início de semestre. Ninguém entendeu. O que ela fez? Abarrotou o quadro-negro de indicações bibliográficas, tirou de sua bolsa uma máquina fotográfica, foi ao fundo da sala e registrou na história aquele momento único que estávamos vivendo. Ficamos estarrecidos e ela, provavelmente, segura de que poderia dar um "carteiraço" numa eventual fiscalização do MEC. Moral da história: a professora continua sendo muito ruim, mas quanto ao Provão e ao MEC ela pode ficar sossegada. Tem "provas".

Punitivo, "ranqueador", ávido por números que rendem boas manchetes, o Provão não tem causado nas escolas nada mais do que medo. Como um estudante que entrega trabalhos aos professores picaretas, simplesmente executando um "Ctrl+C, Ctrl+V" de alguma página na internet, ao Provão as escolas têm respondido com paliativos que nem de longe representam uma transformação de verdade.

Mas o Provão não é só picareta. É carrasco também. Ameaça de fechamento as universidades que o próprio MEC mantém ou permitiu serem abertas. Coloca professores e estudantes em conflito: estimular o boicote é "sacanagem com os professores", muito se ouve. Estimula uma competição hipócrita entre universidades que usam das mais diversas maquiagens para conquistar o "A". E aponta, cada vez mais claramente, que o governo federal não tem nenhum comprometimento com a verdadeira transformação das universidades.

Eu, como a maioria dos meus colegas, tenho a Fabico como extensão da minha casa, apesar de todas suas deficiências. E não posso concordar com o que estão fazendo com ela. Quero que minha faculdade tenha melhores instalações, ajeite seu currículo, aproxime a pós-graduação da graduação, desenvolva mais projetos de extensão, desenvolva a própria pesquisa, tenha uma rádio, até mesmo uma cantina. Mas não quero vê-la linda por fora e podre por dentro, e não só no aspecto físico.

O professor Nilson Lage disse na PUC que o boicote não é prova de inteligência. Concordo plenamente. Boicotar o Provão não me deixa mais inteligente, bonito ou simpático, mas mostra que tenho vergonha na cara. Como não sou convidado para discutir Provão com os professores, e muito menos serei convidado a sentar à mesa do ministro da educação, acredito no boicote como única maneira de expressar minha opinião. Não fosse o boicote, não teríamos espaços como esse para questionarmos a avaliação do MEC e propormos uma nova. Numa tentativa quase quixotesca de manifestar o que penso sobre essa crueldade que estão cometendo com as universidades ? e com os 50 anos do curso de Jornalismo da UFRGS ? a nota que quero tirar esse ano, quando for obrigado a comparecer à prova, é "E". Com louvor.

(*) Estudante de Jornalismo da UFRGS e secretário de Comunicação da Executiva Nacional dos Estudantes de Comunicação Social