Saturday, 04 de May de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1286

Patrícia Cerqueira e Solange Azevedo

CASO SONINHA

"Marijuana sem perdão", copyright Época, 26/11/01

"Autor de poema que fala sobre maconha em 1976, Jorgito demite Soninha, que assumiu consumir a droga em 2001

O afastamento da apresentadora Soninha – dispensada da TV Cultura por ter dito a ÉPOCA que fuma maconha – transformou-se em escândalo nacional na semana passada e surpreendeu por sua origem. O desligamento foi decidido pelo jornalista e advogado Jorge da Cunha Lima, de 68 anos, diretor-presidente da emissora desde 1995. Chamado pelos amigos de Jorgito, pode-se dizer que tem uma biografia atrelada à defesa das liberdades individuais. Filho de família quatrocentona, escolheu durante o regime militar o lado que lhe daria maiores dores de cabeça, o da batalha pela democracia. No fim dos anos 60, organizou no Centro de São Paulo comícios poéticos em que declamavam poemas pela liberdade. No início dos anos 70, desafiou agentes do Dops em um evento literário no Teatro Municipal ao ler no palco o poema ?Não Vou Engraxar as Botas do Meu Chefe?. Durante a vigência do AI-5, escondeu em sua casa o poeta perseguido Thiago de Mello e deu dinheiro para ajudar na fuga do amigo Plínio de Arruda Sampaio. Cunha Lima também se preocupava em abordar temas de seu tempo.Em seus livros, discorria acerca da repressão militar, da solidão do homem – e sobre maconha, droga que era moda entre a juventude rebelde daquele período. Em poema dedicado a Jimi Hendrix, o guitarrista que morreu de overdose, derramava-se em versos como Marijuana do perdão/Donde vem a perfeição. Em outro trecho, escreve uma versão ainda mais esquisita: Sinto que tremes/Diante de um enterro/E tremes duplamente/Por sabê-lo de um maconheiro/E tremes triplamente/Por sabê-lo de um homem inteiro.

Na semana passada, o Jorgito poeta foi substituído pelo Jorge da Cunha Lima dos novos tempos. À frente da emissora cuja missão define como ?complementar a formação do homem brasileiro para a cidadania? determinou o cancelamento do contrato de Soninha com a emissora. Em um país em que até o presidente da República já admitiu ter fumado maconha, Soninha foi varrida do programa de debates destinado ao público jovem que comandava havia mais de um ano, o RG, sem direito de defesa, sem debates internos.

Coube ao jornalista Fernando Morais, companheiro de trincheira e de biografia de Jorgito, falar sobre o assunto com clareza. Em sua coluna na internet, de onde despacha e-mails para personalidades, escreveu um texto para o chefe da TV Cultura. ?Bom cristão que é, o senhor seria capaz de jurar, com a mão direita sobre as Sagradas Escrituras, que nunca fumou um baseado? E se de repente alguém encontrar em sua obra poética algo que possa soar como elegia ao tetraidrocanabinol (a popular Cannabis sativa), o que é que o senhor faz? Recontrata a Soninha e sai de fininho??, perguntou.

A demissão de Soninha deu-se de forma truculenta. ?Eles nem cogitaram colocar outra pessoa para apresentar o programa. Resolveram acabar com ele. Quiseram apagar meu nome da emissora?, disse Soninha a ÉPOCA (leia o artigo da apresentadora).

Droga Leve

Editado em 1976, quando Cunha Lima tinha 43 anos, o livro Véspera de Aquarius contém poemas e crônicas. Do ponto de vista literário, pode ser classificado como uma droga leve. Escrito de maneira tortuosa, ao estilo dos poetas-podicrê do período, não deixa claro, por exemplo, se elogia ou critica a maconha. Assim como o depoimento de Soninha, não se pode dizer que é uma apologia. É difícil chegar a uma conclusão clara. Drogas são mesmo um tema confuso.

Antes de decidir pela reação ao depoimento de Soninha, Cunha Lima ouviu diretores e advogados da emissora. Na segunda-feira, em almoço com 20 conselheiros da Fundação Padre Anchieta, mantenedora da TV Cultura, fez mais uma consulta. Mas disse que já tinha sua opinião formada. Na saída do evento, soube que diretores de escolas que participariam do programa de Soninha naquele dia estavam cancelando as participações. No mesmo dia, o diretor de programação, Walter Siqueira, demitiu a apresentadora com base em uma coleção de suposições. Com a edição de ÉPOCA nas mãos, ele disse que a emissora estaria irremediavelmente comprometida diante do público, dos anunciantes e da concorrência se mantivesse em seus quadros uma usuária eventual de maconha. Quando a apresentadora saiu da emissora, espalhou-se entre os funcionários da casa a versão de que a responsabilidade era de ÉPOCA, que optou por transformar a reportagem em capa. Errado. Quem fez um escândalo e colocou Soninha para fora foi Jorgito.

Quando o episódio veio à tona, o diretor-presidente cumpriu sua agenda, que previa uma viagem a Maceió – e não deu declarações. Na quinta-feira, depois de três dias de insistência, enviou a ÉPOCA um e-mail em que explicava a posição da Cultura: ?Respeitamos o pensamento e as opiniões pessoais de qualquer funcionário e colaborador, mas não podemos consentir, por parte daqueles que têm função de representação no vídeo, a publicidade de práticas ilegais, pois isso contraria a razão de ser da emissora pública?.

Do ponto de vista da empresa, Soninha pode mesmo ter falado demais. Mas é poss&iaiacute;vel discutir se deveria ter sido punida e de que forma. ?Foi uma decisão drástica. A TV Cultura deveria aproveitar o episódio para manter um debate sério sobre o uso de drogas?, diz o senador Eduardo Suplicy, amigo de Jorgito. No fim, ficou a idéia de que a Cultura é capaz de punir uma apresentadora que tem coragem de falar a verdade – o que não é muito instrutivo para as jovens platéias que pretende atingir e educar. A emissora impediu as discussões sobre um tema que interessa a seu público – e depois recomendou discrição a seus funcionários.

Soninha se recusou a embarcar na lei do silêncio. Combativa, espontânea e bem articulada, enfiou-se em uma maratona de entrevistas. Por sua transparência, tirou o debate da zona cinzenta onde ele costumava ficar pela ausência de usuários que concordam em se mostrar. Atraiu protestos contra sua demissão vindos das pessoas mais diferentes. O deputado estadual Turco Loco (PSDB-SP), cujo irmão mais novo morreu há pouco tempo de overdose, estendeu uma faixa de repúdio à demissão diante da TV Cultura. ?Sou contra drogas, mas a favor do debate?, diz ele. O médico e deputado mineiro Elias Murad, conhecido pela postura proibicionista, também se manifestou contra a emissora. O deputado carioca Fernando Gabeira, defensor de políticas liberalizantes, apresentou queixa à Secretaria de Estado dos Direitos Humanos. Alegou que o Brasil assinou uma convenção da ONU em 1998 em que se compromete a não punir o usuário com expulsão do trabalho ou da escola. ?Punir Soninha é romper uma política internacional?, argumenta. Gabeira marcou encontro com Jorge da Cunha Lima para terça-feira.

O caso Soninha também trouxe à tona uma penca de temas que esperam por debate. Entre eles, a controvérsia sobre até que ponto as empresas devem interferir na vida privada de funcionários – mesmo que eles falem dela em público. ?A demissão tem base legal. Mas as empresas podem escolher entre a tolerância zero e a política tolerante, que aposta na evolução da discussão?, diz o advogado Luiz Flávio Gomes, estudioso de crimes de menor potencial ofensivo.

Em meio às controvérsias salutares, emergiram também reações espantosas de intransigência. Algumas risíveis, como a do procurador que pede a responsabilização penal dos entrevistados e repórteres insinuando que eles estão a serviço de quadrilhas do narcotráfico. Na sexta-feira, o Departamento de Narcóticos paulista anunciou que cogita enquadrar os que participaram da reportagem nas mesmas penas reservadas a traficantes. ?É uma idéia que choca?, diz o criminalista Márcio Thomaz Bastos. Fora das considerações jurídicas, também se viu nas ruas como o assunto divide opiniões. Exposto no terreno da Escola Logos, em São Paulo, o outdoor da revista foi coberto. O diretor do colégio, Roberto Prado, explicou que costuma rejeitar anúncios de bebidas alcoólicas e cigarro no local – e a capa foi coberta a pedido de alguns pais de alunos, por causa da palavra ?maconha?. Estão em seu direito. Trata-se, no entanto, de um caso em que uma liberdade se choca com outra, o direito de expressão. O debate, espera-se, está apenas no começo."

 

"O Efeito da Droga", Editorial, copyright Folha de S. Paulo, 21/11/01

"Se a idéia era tornar pública a discussão sobre a descriminalização das drogas em geral e da maconha em particular, o ?affaire? Soninha foi, por linhas tortas, bastante bem-sucedido. Pelo menos em São Paulo, o caso tornou-se o grande assunto da cidade nos últimos dias.

Soninha, como é conhecida a apresentadora de TV e jornalista Sonia Francine, concedeu entrevista à revista ?Época? na qual admite fumar maconha e advoga, com argumentos consistentes, pela descriminação da droga. Ao fazê-lo a apresentadora da TV Cultura e colunista da Folha assumiu um risco. O preconceito contra usuários de Cannabis, reforçado por uma legislação ultrapassada e equivocada, ainda é acentuado no Brasil.

?Época? deu, na capa de sua edição, um tratamento sensacionalista à matéria: Soninha aparece no primeiríssimo plano de uma montagem fotográfica sob o título ?Eu fumo maconha?. A capa se tornou outdoor, e o rosto da apresentadora ganhou as ruas das maiores cidades do país.

A TV Cultura, alegando incompatibilidade entre as funções da apresentadora e as suas declarações, rescindiu-lhe o contrato. É real o constrangimento que o caso criou para a direção da emissora. Soninha comandava um programa destinado a jovens.

Só que a mensagem que a Cultura acaba transmitindo para o público com a demissão da apresentadora não é lá muito pedagógica. Com seu gesto, a TV pública indica que a hipocrisia prevalece sobre o diálogo franco e aberto. Sugere aos jovens que é melhor mentir do que apostar no vigor da democracia para mudar leis que se tornaram inadequadas.

Esse é sem dúvida o caso da legislação antidrogas brasileira. É crescente entre especialistas das mais diversas áreas a noção de que a abordagem apenas repressiva para o terrível problema das drogas fracassou. O Estado tem por certo o dever de combater o narcotráfico, mas daí não decorre que o usuário de substâncias psicoativas deva ser mandado para a cadeia. Os danos, nesse caso, podem revelar-se ainda piores do que os provocados pela droga."