Sunday, 28 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1285

Polêmica na Bravo

CARTAS

Caro Dines,

Vi nos seus artigos recentes (Jornal do Brasil e Observatório) referências ao Olavo de Carvalho. Como eu tinha publicado no número de dezembro da revista Bravo um artigo sobre a morte do escritor Ring Lardner Jr. ? o último dos Dez de Hollywood, entrevistado por mim um par de vezes aqui em Nova York ?, fui alvo da ira daquele mesmo personagem, em artigo saído na revista Bravo de fevereiro, no qual me tratava (e ao falecido Lardner Jr.) como "stalinista" e "agente da KGB", em meio a agressões à História e aos fatos no que se referia ao senador McCarthy e ao maccarthismo.

Só tomei conhecimento do artigo dele ao comprar a revista nas bancas, numa apressada visita ao Brasil, no final de fevereiro. Escrevi imediatamente a resposta, na qual ignorei as divergências ideológicas para concentrar-me nos fatos. Esperava uma publicação rápida mas a Bravo só veio finalmente a incluir minha resposta no número de junho (ainda nas bancas, creio), portanto quatro meses depois. Assim mesmo, porque me submeti a um amontoado de exigências da revista, que reduziu o texto mais ou menos à metade e depois ainda impôs mais cortes (inclusive o parágrafo no qual crítiquei à própria conduta da direção de Bravo, por deixar de me enviar um exemplar). Concordei com tudo, para que saísse logo.

Incluí abaixo uma cópia do artigo afinal publicado pela Bravo, pois pode ter alguma utilidade ao escancarar o pouco apreço daquela figura pela verdade histórica.

Argemiro Ferreira.

A lista negra e o "filósofo" Joe McCarthy

Argemiro Ferreira

Com extremistas de Esquerda ou de Direita ? em especial os que se bandearam de repente de um desses times para o outro, sem se dar ao trabalho de mudar os métodos e a truculência ? argumentos e bom senso costumam ser inúteis. Fui alvo nestas páginas do assalto perpetrado por um deles, por ter cometido a imprudência de recordar na edição de dezembro de Bravo a trajetória singular ? humana, literária e cinematográfica ? do escritor Ring Lardner Jr., último dos "Dez de Hollywood", ganhador de dois Oscars (um antes, o outro depois da lista negra), morto em novembro do ano passado.

Meu artigo relegara deliberadamente a política para segundo plano. A ênfase fora no talento, no humor e na generosidade de Lardner Jr. Como Dalton Trumbo, seu amigo mais próximo entre os Dez, ele não via heróis ou vilões na tragédia da caça às bruxas, apenas vítimas (do que eu, menos generoso, discordo). Não se achava valente ? se resistiu, dissera-me, fora menos por coragem do que por estar convencido de que no fim a Suprema Corte reconheceria seus direitos.

Assim, surpreendi-me ao deparar com a mescla de insultos, mentiras e falsidades históricas no assalto assinado pelo sr. Olavo de Carvalho na edição de fevereiro de Bravo. Acusa-me, fundamentalmente, de reprisar a imagem da "era McCarthy" como período sombrio de perseguições ? para ele, imagem falsa. Pois deveria dizê-lo ao próprio governo dos EUA, que a perpetua. Uma síntese histórica distribuída pela USIA (Agência de Informações dos EUA) em plena administração conservadora do presidente Ronald Reagan (1982), sob o título An Outline of American History, afirma, sobre o período macarthista, que aquela "procura de comunistas no governo foi comandada (e explorada) por um senador inescrupuloso e até então desconhecido do Estado de Wisconsin ? Joe McCarthy". E que "McCarthy carregou demais a mão e perdeu a proeminência, mas o fato de que tenha sido capaz de agir quase sem obstáculos durante três anos constituiu um exemplo assustador de como as liberdades democráticas podem ser tênues, mesmo num país que professa grande orgulho pela existência delas". Assim, se sou culpado de "stalinismo" e de "manipulação da memória coletiva", também o governo responsável pela síntese deve ir comigo para o banco dos réus ? um governo, claro, chefiado pelo ex-ator Reagan, que ao tempo da caça às bruxas era alcagüete do FBI em Hollywood, sob o codinome de "agente T-10".

A risível paixão do acusador pela "filosofia" de McCarthy, quase guindado a panteão de herói e à condição de grande pensador universal, merece reflexão especial. Ironicamente, um dos especialistas que o desmente é o próprio Harvey Klehr, principal autor de The Secret World of American Communism, citado por Carvalho como autoridade definitiva na matéria. "Acho que McCarthy foi um charlatão. Como estava na iminência de uma derrota no esforço para se reeleger em 1950, precisava de um tema ? e escolheu o comunismo. Nada sabia sobre isso. E pouco se lixava", disse Klehr em 1998, numa entrevista coordenada pela CNN online. Quanto à suposta culpa dos que McCarthy acusou, Klehr foi igualmente claro: "Até onde sei, McCarthy não foi responsável pela descoberta de quaisquer espiões soviéticos". Para Klehr, McCarthy foi ainda "um demagogo, acusava pessoas inocentes, manipulava provas e era incapaz de distinguir espião comunista de fellow traveler (companheiro de viagem). Só prejudicou a causa anticomunista".

No amontoado de mentiras do sr. Olavo de Carvalho, vale voltar à afirmação de que McCarthy não acusou inocentes e de que todos estão hoje "desmascarados como agentes da KGB". Se acredita nisso, deve considerar agentes da KGB o general George Marshall (que foi secretário de Estado, da Defesa e chefe do Estado Maior Conjunto); o feroz anticomunista George Kennan (teórico do "containment", doutrina da contenção do comunismo, e sucessor de Marshall no Departamento de Estado); o candidato presidencial Adlai Stevenson. A reputação desses três só sobreviveu porque eles eram celebridades. Vítimas inocentes anônimas foram arruinadas ? entre elas até uma mulher humilde que perdera o emprego ao ser intimada a depor. Embora se tratasse de erro de identidade (ela era preta, a outra branca), McCarthy negava-se a inocentá-la, temendo novo golpe na própria credibilidade.

Por desconhecer o assunto sobre o qual escreve, o sr. Carvalho jura ainda que "o Senado interrogava apenas funcionários do governo". Era o que devia ocorrer, pelas regras internas da casa. Mas na prática não se conseguia impor limites ao senador. O pretexto para interrogar escritores, por exemplo, era o fato de haver livros deles em bibliotecas dos Consulados no exterior. Vários foram convocados e intimidados, às vezes por vingança ? James Weschler, pelas críticas feitas a McCarthy no New York Post, Arthur Miller por igualar aquela investigação às fogueiras das bruxas de Salém no século 17.

A obstinação absurda de encarar o macarthismo como escola de pensamento contra o stalinismo impede Carvalho de vê-lo como o que de fato foi ? mero fenômeno da política interna dos EUA. Ao estudá-lo num livro (Caça às Bruxas, editora L&PM, 1989), busquei situá-lo nesse contexto. A histeria obscurantista começara com as investigações da Comissão de Atividades Anti-Americanas da Câmara (HUAC), antes de McCarthy surgir no cenário político nacional, com um discurso em fevereiro de 1950, em que denunciou a existência de 205 comunistas no Departamento de Estado. ("Tenho aqui na minha mão uma lista de…") Ninguém jamais viu lista alguma ? e cada dia o número mudava, 205, 57, 116, 207, 121, 106, 81 ou apenas 3). Acho McCarthy secundário naquele pesadelo nacional, em plano inferior aos caçadores de bruxas Richard Nixon, Ronald Reagan e J. Edgar Hoover ? este o grotesco travesti que declarou guerra às liberdades políticas dos americanos.

O capítulo que envolveu Ring Lardner Jr. e mais nove de Hollywood começara antes da ascensão de McCarthy, em 1947. Ele fora do Partido Comunista 10 anos. Saíra mas se negava a delatar outros que ainda eram ou tinham sido do PC. Para Carvalho, discípulo da "filosofia" macarthista, os "Dez de Hollywood" eram "comunistas chiques acusados de compactuar com a espionagem soviética". Outra mentira. Nenhum daqueles 10 e nenhum da lista negra (de centenas de nomes) foi alguma vez acusado de ser espião.

Hoje não consigo evitar certa simpatia pelo drama pessoal de McCarthy em seus últimos anos de vida. Ao contrário do que pensa seu admirador aí na borda esquecida do mundo, nem ele tinha convicção ideológica, nem começou a beber "quando atacado em sua vida pessoal", nem "morreu de depressão" e nem a imprensa o destratou "implacavelmente desde o primeiro dia". Pelo menos um livro dedicado às relações dele com a imprensa (Edwin R. Bayley, Joe McCarthy and the Press), várias biografias do senador e depoimentos deixam clara a cumplicidade da imprensa com McCarthy. Um séquito de jornalistas, apelidado de "goon squad" (esquadrão de vagabundos), o acompanhava, comia e bebia com ele em confraternização promíscua. Com o acúmulo de abusos, veículos influentes voltaram-se afinal contra ele ? tardia e ainda temerosamente. Exemplo revelador foi a reportagem de Ed Murrow na CBS para expor os métodos de McCarthy. A direção da rede de TV se preparou para demitir Murrow no caso de represália do senador contra a empresa. Até o presidente Dwight Eisenhower fazer elogio público ao programa e a emissora ser bombardeada com cartas ? favoráveis em proporção esmagadora. Só depois da audiência pública sobre o Exército, golpe de misericórdia na imagem do senador, McCarthy ficou sem imprensa ? perdeu até os desqualificados fregueses do seu uísque.

Censurado pelo Congresso por sua conduta, caiu no ostracismo em pleno exercício do mandato. Nem sequer candidatou-se à reeleição. Mero demagogo, o guru do sr. Olavo de Carvalho tinha tanto conteúdo ideológico ao morrer como tivera a vida inteira ? zero. E talvez choque o admirador tupiniquim saber ainda que seu pensador anti-stalinista predileto elegeu-se ao tempo de Stalin, em 1946, graças ao apoio dos comunistas. Alegou para isso, e com razão, que voto de comunista vale tanto como o de qualquer americano. Seu biógrafo Richard Rovere registrou até o elogio formal de McCarthy "à proposta de Stalin em favor da paz mundial".

Se as ofensas do sr. Carvalho não me atingem pessoalmente, ou à memória do último dos "Dez de Hollywood", na certa alguém que ele acredita ter homenageado, o cineasta Elia Kazan, ficaria horrorizado se soubesse que teve o nome associado ao do senador. Nas 850 páginas de suas memórias, Kazan fez uma única referência a McCarthy ? e foi para exorcizá-lo como uma espécie de mal supremo, em meio a desabafo contra o cardeal Francis Spellman, que tentara impor censura e boicote a seus filmes Baby Doll e A Streetcar Named Desire. Escreveu Kazan: "Suspeitei então e acredito hoje que esta Igreja (a católica, de Spellman), em sua alta hierarquia, estava de braço dado com McCarthy". E, indignado, acusou: "Spellman continuou a defender McCarthy mesmo depois que ele já estava desacreditado".

O discípulo do "filósofo" McCarthy prefere ver Kazan como vítima de lista negra do outro lado e proclama que os esquerdistas perseguidos "foram todos reintegrados na indústria cinematográfica com indenizações e desagravos". Kazan ganhou Oscars antes e depois de virar delator ? o primeiro em 1947, o segundo em 1954 e o mais recente (pelo conjunto da obra) em 1999 (eu lhe teria dado mais dois, em 1951 e 1955, mas são notórias as injustiças da Academia). A maioria esmagadora dos centenas da lista negra nunca mais trabalhou na profissão. Ninguém teve indenização nenhuma.

Antes "os comunistas eram os donos da bola. Patrulhavam, censuravam e demitiam à vontade", diz ainda o sr. Carvalho. E dá o exemplo do ator Walter Pidgeon. Biografia de Pidgeon não é meu forte, mas em sua longa carreira, de 1925 a 1978, sua média é superior a um filme por ano ? e ainda se elegeu presidente do Sindicato dos Atores (1952-57). A versão é ainda mais ridícula se for lembrado que o pessoal do grupo direitista MPAPAI (John Wayne, Sam Wood, Adolph Menjou, Ward Bond, etc) sempre foi dono da bola, antes, durante e depois da lista negra.

Como vivo em Nova York e a direção de Bravo não enviou-me o número de fevereiro, só li o ataque do sr. Carvalho numa apressada visita ao Brasil. Amigos disseram que o autor, pela obsessão de cortejar a notoriedade, não é daqueles a quem se responde. Se discordei foi menos pela retórica obsoleta com que empacota suas diatribes do que pela oportunidade de trazer informações ? irrelevantes para quem pouco se lixa para a História, mas talvez úteis para outros.

    
    
                     

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