Monday, 29 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1285

Pornografia e violência na TV

FREUD E A "CENA PRIMÁRIA"

Fernando Dias Campos Neto (*)

A pornografia, creio, é algo como a nossa relação com imagens. E elas se vinculam ao que os psicanalistas chamam de "cena primária", isto é, a forma como elaboramos a relação sexual que nos gerou, o coito entre os nossos pais.

Atualmente, essas imagens não são mais apenas representações em nossa mente; encontramos revistas, vídeos e filmes com cenas de sexo explícito. Observei que o erótico, mais brando ou mais repressivo, não inclui a imagem do falo, característica indispensável do "pornô". Por quê? A presença do falo no "pornô", em toda a sua completude, identifica a diversidade das fantasias promíscuas do bebê. É que elas não são somente amorosas. De certo modo o erótico é a castração do "pornô".

Mas, o ponto que eu queria abordar, e que tem chamado a minha atenção, é como a violência com cenas extremamente sanguinolentas ocupa um espaço muito menos objetado na TV e na mídia em geral. E o sangue, mais que qualquer outro produto do corpo humano, é indelével

Como se associaria a isso o desejo contido e inconfessável da maioria de assistir ao "pornô" e ? paralelamente ? à licenciosidade que se fornece às cenas de sangue e morte? Teoricamente, a TV, o cinema e os vídeos evocam a cena primária. No que se refere às orgias de violência da mídia, por exemplo, a fantasia do "coito sádico" entre os pais.

Então o falicismo do "pornô" corresponde ao uso de armas pontiagudas, como facas, embora se possa encontrar elementos ainda mais arcaicos da cena primária nos noticiários da TV, no terreno dos sadismos oral e anal.

Por quê? Por que a visão do falo, que afinal é um instrumento de amor, é reprimida, e as armas ? um simbolismo das fantasias agressivas e onipotentes do bebê ? não o são? Explico-me: uma bomba seria expressão de sadismo anal e uretral; certas facas e estoques, os dentes do bebê etc. etc. Tentando responder a tal pergunta poder-se-ia dizer que a sexualidade é mais nociva do que tanto ódio? Como se explica isso?

O orgasmo reprimido

O erótico, enquanto um "pornô" castrado, talvez nos ajude. Essa repressão denuncia o complexo de castração. Então, as cenas primárias "pornô" passam a carregar consigo, por um "deslocamento", as ansiedades e as culpas vinculadas ao que é flagrantemente permitido de forma irracional: a violência explícita.

Em outras palavras, sentimos em relação ao "pornô" o que deslocamos inconscientemente das formas de agressão que assistimos em filmes, vídeos, noticiários etc.

A repressão maior e mais profundamente oculta em toda essa exibição vincula sexo e violência na fantasia de castração. Limítrofe seria, por exemplo, o ápice do filme O império dos sentidos. Contudo, eu arriscaria dizer que a coletividade que assim se comporta não é exatamente amorosa. Exibe de Freud todos os percalços das duas teorias dos instintos. Tenta administrar o seu Thanatos, no erótico e no "pornô".

Estou falando de adultos, não de crianças. Obviamente, a TV desperta nestas a sexualidade demasiado precocemente, acarretando certos problemas. Mas as cenas de violência lhes seriam menos prejudiciais? Creio que não. A pornografia é um pejorativo, um tabu; mas os filmes de sangue, não.

Outro ponto importante do "pornô" é que jamais apresenta relações sexuais antecipadamente fecundas, para gerar bebês. E, entre os animais, o sexo é feito exclusivamente para procriar. Sofrendo uma mutação, o ser humano faz amor para uma troca de prazer e para a fecundação da fêmea. Isso inclusive já foi usado para reprimir a função orgástica, considerada admissível apenas para a fecundação.

Especialização suspeita

Ora, por que o "pornô" só faz o contrário, só mostra um sexo estéril? Seria uma "formação reativa" contra tal repressão absurda? Ou será que ele denota temer a fecundação por algum motivo inconsciente? Seria simples demais dizer que é feito por pessoas que negam a responsabilidade sexual.

Na sua primeira teoria dos instintos Freud opõe nosso ego aos apelos da espécie que busca a conservação. No "pornô" o ego se satisfaz, mas a espécie não. O que haveria por detrás disso? Vou arriscar uma explicação. O "pornô" é geralmente mecânico, sem uma boa história. Essas se encontram mais no erótico. Talvez o problema seja a elaboração inadequada da parte dos produtores, só pensando no lucro.

O cinema, como o teatro antigo, feito para a catarse, estaria dissociado em erótico e "pornô", dramas e filmes violentos (coitos sádicos). O ideal seria um cinema que, sem mais censura, integrasse todos os elementos "santos" e pecadores, sagrados e "profanos". Então, talvez, a censura habitual, que vem do cinema americano, quando apresentasse um par de amantes não tivesse tanto pejo, mostrasse os dramas conhecidos com os seus coitos amorosos fecundos sem excluir a presença do pênis. Em vez do clássico e estereotipado beijo final.

Imaginemos, por exemplo, Édipo rei, Hamlet e Otelo, os irmãos Karamazov, com suas passagens ditas "pornôs". Será o cinema futuro do adulto? Talvez. A idealização da relação sexual dos pais na consciência coincide com a fantasia inconsciente do coito sádico e de um parto traumático, desfecho e castigo pelo imenso prazer do orgasmo, algo bom demais para o ego. Ou porque é forte para procriar a espécie ou/e porque conflita com o instinto agressivo do indivíduo e da coletividade.

O certo é que essa "especialização" de filmes é muito suspeita de repressão de fantasias infantis mal resolvidas em relação à "cena primária". Inclusive a sua coexistência absurda com essa permissividade abominável da violência explícita na mídia, a meu ver muito mais importante.

(*) Médico