Monday, 29 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1285

Quem quer que a TV melhore?

DOSSIÊ GUGU

Carina Rodrigues

[Copyright Caderno I, Último Segundo <
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Em junho deste ano, a apresentadora Márcia Goldschmidt desmentiu um caso exibido em seu próprio programa. A história da mãe que descobriu que namorava o filho que abandonara na juventude teria sido forjada pelos convidados e Márcia garante que foi tão enganada quanto seu público.

Apesar de este ter sido o único caso admitido como falso pelo programa, revistas e concorrentes já apresentaram denúncias de armação. Sua credibilidade, no entanto, não foi arranhada junto aos telespectadores, que mantêm o programa liderando a audiência da Band. Ou talvez esses telespectadores não estejam preocupados com credibilidade.

Em 2000, Ratinho, então campeão das polêmicas, foi notícia pelo menos duas vezes. Uma quando exibiu um dos mais chocantes vídeos já transmitidos pela TV brasileira, as imagens do assaltante Marcelo Borelli torturando uma menina de três anos, filha de um desafeto. A justificativa não existia ? Borelli inclusive já estava preso. A outra foi a reportagem sobre um seqüestro seguido de morte, que chegou a ser usada por Paulo Maluf em sua campanha pela Prefeitura. Descobriu-se depois que se tratava de um caso de suicídio.

Um ano antes, o impulsivo apresentador sugeriu no ar a criação de uma campanha para arrecadar dinheiro para o resgate do irmão dos cantores Zezé di Camargo e Luciano, que estava seqüestrado. A trapalhada ofereceu aos bandidos a possibilidade de pedir um valor dez vezes maior ao que acabara de ser acertado com a família, e de usar a mídia para negociar. A orelha amputada de Wellington Camargo foi enviada para a retransmissora do SBT em Goiânia. Se Ratinho sofreu alguma conseqüência disso, foi de sua própria consciência. Porque nos âmbitos da Justiça e dos índices de audiência não aconteceu nada.

Agora a bola da vez é o caso da farsa exibida pelo "Domingo Legal", do apresentador Gugu Liberato, no dia 7 de setembro, em que duas pessoas encapuzadas fingiram pertencer à organização criminosa Primeiro Comando da Capital (PCC), e dispararam ameaças contra apresentadores de programas policiais de outras emissoras. Dessa vez, a coisa toda não passou em tão brancas nuvens ? o programa chegou a ter uma edição suspensa e Gugu poderá prestar contas à Justiça por apologia ao crime, pela Lei de Imprensa.

Qual é a diferença entre o presente caso e as infinidades de abusos impunes até hoje? Gugu foi a gota d?água que vai desencadear um movimento de melhoria da TV? A sociedade decidiu que já tolerou demais e agora quer moralizar a programação? Para o professor da PUC-SP e estudioso do assunto Gabriel Priolli, a resposta é bem mais mercadológica ? e pessimista. "Nada teria tido essa dimensão se não tivesse atacado os outros apresentadores. E eu não entendi isso. O SBT atiçou a concorrência contra si", declara. "É um festival interminável de oportunismo". Ele ressalta, no entanto, que isso não diminui a gravidade do caso. "Foi uma estupidez sob qualquer critério".

De fato, os programas de José Luiz Datena e Marcelo Rezende, ameaçados pelos falsos membros do PCC, atingiram picos de audiência quando tratavam do caso, e contaram até com a participação de Gugu pedindo desculpas por telefone. A repercussão do caso então se deveria assustadoramente às mesmas razões que originaram o próprio: audiência e sensacionalismo.

Além dos apresentadores ligados diretamente, coincidência ou não, diversos programas passaram agora a denunciar armações e abusos dos concorrentes. Dois dias após a polêmica exibição do "Domingo Legal", o programa "Verdade do Povo", que Wagner Montes apresenta na TV Record, passou a apresentar pessoas que diziam ter sido contratadas para representar casos no programa paralelo da Bandeirantes, "Hora da Verdade", de Márcia Goldschmidt. Também da Record, a apresentadora Claudete Troiano fez a mesma coisa com casos apresentados no programa de João Kleber. Mais um indício de que a suposta onda de moralização pode servir mais à velha luta pelo Ibope.

Priolli acredita que "essa vigilância moral é cíclica", e vem à tona em casos de mais destaque, mas tolera os pecados cotidianos. Ele lembra que os abusos e os escândalos existem há décadas, e cita o célebre caso do programa "O Povo na TV", que em dezembro de 1982 mostrou um bebê de nove meses agonizando ao vivo ao som da Ave Maria de Gounod e de um apresentador esbravejando contra o sistema público de saúde.

"É uma relação profundamente hipócrita (a do espectador com a TV), que condena nesses momentos, mas no dia-a-dia aprova". Assim, ele prevê que os programas de uma forma geral devem pegar mais leve por um tempo, mas que tudo deve acabar voltando à normalidade. "Por algum tempo, com certeza sim. O SBT diz que teve um prejuízo de R$ 5 milhões com a suspensão. Mexeu onde dói, que é no bolso", afirma.

Mas ele apresenta um sintoma de que a atitude pode ser efêmera: a mudança imediata de discurso dos apresentadores algozes de Gugu. Assim que a Justiça determinou a suspensão do "Domingo Legal", eles "imediatamente baixaram a bola e a campanha passou a ser contra a censura".

Censura

Isso traz à tona um dos pontos mais polêmicos quando se fala em controle social da TV: o terror causado pela possibilidade de censura. O próprio ministro da Justiça, Márcio Thomaz Bastos, criticou a medida de suspensão. Alberto Dines, do "Observatório da Imprensa", classificou a decisão como "furor censório e a comichão autoritária que domina grande parte da magistratura brasileira". Para Priolli, no entanto, a discussão transcorre "num terreno de profunda hipocrisia que não tem nada a ver com censura", e esse seria um "um discurso que a TV muito espertamente coloca contra qualquer forma de ingerência em seus conteúdos".

O deputado Orlando Fantazzini (PT/SP) concorda com Priolli, mas para colocar um basta na discussão propõe a criação de um código de ética na TV. Membro da Comissão de Direitos Humanos da Câmara dos Deputados e um dos fundadores do movimento "Quem financia a baixaria é contra a cidadania", Fantazzini acredita na possibilidade de que um controle social da programação venha a se concretizar. Para discutir esse código, vai promover uma audiência pública no próximo dia 1? de outubro com todos os lados envolvidos. A matéria está sob os cuidados da deputada Ângela Guadagnin (PT/SP) na Comissão de Seguridade Social e Família.

Mas existe a necessidade de criar uma legislação específica? Um apresentador de TV que difama alguém não pode ser enquadrado como qualquer outro cidadão? O deputado concorda que as leis existentes até poderiam ser suficientes, mas acha que são necessários instrumentos mais fortes. "As TVs sempre rebatem dizendo que não há regulamentação e que não estão cometendo crime nenhum, apenas retratando", explica. "É engraçado que as emissoras exibam esses programas que exigem o cumprimento da lei. Mas não para eles", declara.

Teoricamente, o Ministério Público pode entrar com ações contra uma emissora toda vez que constatar algo irregular, mas isso é raro, graças exatamente à ambigüidade entre controle e censura possível sem um código de ética. Na prática, o único instrumento de controle em vigor hoje é a classificação etária do Ministério da Justiça. Até maio deste ano, essa classificação era ainda menos eficaz: baseava-se nas sinopses fornecidas pelas emissoras, o que excluía naturalmente programas ao vivo e telejornais.

Hoje, o método avançou, mas continua sendo de uma força no mínimo relativa. Um dos motivos é a subjetividade inevitável do monitoramento. Treze pessoas assistem diariamente à programação da TV aberta para flagrar possíveis abusos de conteúdo dentro do horário exibido. Para diluir as idiossincrasias, essas têm as mais diferentes formações ? jornalistas, psicólogos, advogados e pessoas sem formação universitária. Além disso, existe um manual técnico com conceitos básicos e, constatado um abuso, três pessoas têm que concordar, explica a assessora da Secretaria Nacional de Justiça, Marina Oliveira.

Ela declara ainda que não tem como tratar esses conteúdos com regras preto no branco. "Sexo e violência fazem parte da vida e dos conteúdos de ficção e jornalístico. Às vezes uma cena dessas pode ter caráter educativo", exemplifica, frisando que o conteúdo é analisado sempre dentro de seu contexto.

Outra razão que restringe a força dessa classificação é sua abrangência legal. Uma vez constatado abuso, a emissora é advertida. Se ignorar a advertência ? ou seja, mantiver o conteúdo ou o horário -, pode ser multada, como aconteceu com uma trama global das 19 horas, a "Uga-Uga". E só.

A classificação é criticada ainda por mais um motivo: o fato de ignorar os fusos horários brasileiros. A criança acreana, por exemplo, assiste ao conteúdo apropriado para as 21 horas às 19 horas. O motivo, claro, é financeiro: a geração das emissoras é feita no Rio e em São Paulo, e outros pontos de geração seriam um prejuízo para as TVs.

No entanto, Marina não descarta a hipótese de que isso venha a se tornar realidade: "Está sendo feita uma reformulação da portaria que trata do assunto e pode ser que isso seja aprovado", diz. Ela explica que uma comissão será nomeada até semana que vem para tratar da reformulação para coibir abusos, que deve acontecer até o final do ano. Os nomes dos integrantes ainda não foram divulgados, mas ela diz que a comissão será composta por um membro do Ministério Público Federal, um procurador-estadual, um acadêmico, um psicanalista e um juiz.

Apesar dessas medidas, o professor Gabriel Priolli mantém o ceticismo quanto ao que acredita ser a única forma real de reformulação: o envolvimento da população. A participação do espectador seria essencial principalmente pela dificuldade de definir o que se convencionou chamar de "baixaria". Porque o Ministério Público pode agir num caso claro de apologia ao crime, por exemplo, mas quem decide se a mocinha da novela está mostrando mais pele do que deveria? "O público precisa sair dessa ambigüidade em que se encontra", diz Priolli. "Ele precisa decidir se quer ou não baixaria na TV".