Saturday, 27 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1285

Quem vai nos contar essas histórias?

REPORTAGENS INDISPENSÁVEIS

Luciano Martins Costa (*)


"(…) Observo o estado catatônico em que se encontram os jornalistas, e constato que a imprensa acha relevante enviar 64 (!) profissionais para cobrir a filmagem de uma cena de novela onde um personagem morre em tiroteio, com uma bala perdida. Ou outros 20 para perguntar a Ronaldo se vai se separar de Milene. Afinal, o que importa? Ronaldo, em um rompante de lucidez, responde: ?Só acho que nosso país vive problemas tão sérios, que a atenção das pessoas deveria estar voltada para resolvê-los. Estou tranqüilo e em paz?."


Poucas observações sobre a imprensa nacional teriam atingido tão em cheio o núcleo de seus problemas do que a reflexão acima, enviada pela leitora Juliana Burger ao site Bluebus (sexta-feira, 14/11). Foi exatamente minha sensação, em conversa recente com um experiente repórter de economia de um grande jornal paulista. Falávamos sobre a chamada Operação Anaconda, que naquele dia fechava o círculo em torno do juiz federal João Carlos da Rocha Mattos, e das últimas revelações do jornalista Elio Gaspari sobre os bastidores do governo Geisel.

O jornalista expressava sua angústia pela impossibilidade de participar da cobertura do caso na Justiça Federal, mesmo tendo em seus arquivos dados interessantes sobre antigas e sólidas relações entre o juiz acusado de chefiar uma quadrilha de criminosos e um dos mais celebrados empresários do país. Veio o fim de semana, e podemos imaginar o desconforto do colega ao acrescentar às suas preocupações o teor das revelações feitas à revista IstoÉ Dinheiro pelo ex-ministro Antônio Delfim Netto sobre a manipulação de índices de inflação, a perigosa escalada da dívida brasileira no período do último governo militar e a bomba de efeito retardado que foi deixada deliberadamente no colo do primeiro presidente civil pós-ditadura, José Sarney.

Sabíamos de memória, o repórter e eu, que o juiz federal estivera no centro de um caso de suspeita de falência fraudulenta envolvendo o empresário, há quase duas décadas, e que suas decisões, à época, têm sido desde então exibidas pelo homem de negócios como atestado de idoneidade. Uma exumação desse caso, acreditava o colega, poderia lançar mais luzes sobre a Operação Anaconda e ajudar a opinião pública a entender como a corrupção tem atravancado o desenvolvimento deste país e como ela se relaciona, desde o período em que Delfim mandou na economia, com as imensas dificuldades para a retomada do desenvolvimento. Despedimo-nos com a tristeza de constatar que, se ele quisesse contribuir para a investigação do caso, teria de fazê-lo em seu período de descanso, à revelia de seus editores, e ainda brigar por um espaço para suas informações.

Cerne do inferno

Já corria desde meados da semana anterior alguma especulação sobre qual seria o próximo capítulo no processo de exumação da ditadura. Comenta-se há tempos que Elio Gaspari seria depositário de farta documentação do general Ernesto Geisel e de seu ex-secretário, Heitor Ferreira de Aquino, e que seu arsenal poderia atingir outros sobreviventes do antigo regime, como Delfim Netto e o ex-ministro Shigeaki Ueki. O que discutíamos, e angustiava especialmente nosso colega, era a duvidosa capacidade da nossa imprensa de agasalhar, processar e entregar ao público tamanha soma de informações, fundamentais para a compreensão deste país, vasculhando ao mesmo tempo os segredos mais bem guardados da ditadura e as tramas do crime que emporcalha instituições da República.

Com as redações esquálidas e trabalhando no limite das energias de suas equipes, a imprensa brasileira realmente parece entrar em estado catatônico quando se defronta com um caso da envergadura deste, que envolve representantes da Justiça Federal, delegados federais, empresários e ? numa extensão ainda não conhecida ? rotundas figuras da política. No entanto, é certo que em poucas ocasiões, desde que o primeiro prelo cuspiu em terras nacionais a primeira folha de papel impresso, a opinião pública esteve tão perto de penetrar no coração do verdadeiro dragão da maldade que nos amarra como uma maldição ao subdesenvolvimento.

Se as diligências da renovada Polícia Federal, alimentadas pelos procuradores da República, nos lançam diante do retrato mais bem acabado da rede de corrupção que mina as energias do país, as confissões de Delfim ? resvalando em uma mínima parcela do que ele tem a dizer ? soam como uma tentativa de habeas-corpus preventivo contra aquilo que precisa ser dito: o Brasil paga em miséria e exclusão a manipulação de índices inflacionários, paga em atraso tecnológico e falta de competitividade a confessada política de favorecimentos a setores industriais que, ele confessa, tinha como objetivo equilibrar a balança comercial.

Como se não fosse pauta suficiente, tome-se um dos fios da meada que o ex-ministro se viu compelido a expor, no que se refere ao período do seu "exílio" em Paris, e chegaremos ao cerne do inferno que tem sido a economia nacional nas duas últimas décadas: as negociações da dívida externa brasileira ? por cuja escalada Delfim tenta responsabilizar o general Geisel ? e que tiveram no eixo Paris-Londres, naquele período, a maturação do ovo da serpente. Em Paris, Delfim, e em Londres, Roberto Campos, foram protagonistas de um capítulo que ainda falta à nossa História recente.

Informação de valor

Os fios da teia, que em um de seus nós oferece a patética figura do juiz João Carlos da Rocha Mattos, conduzem a outros escândalos adormecidos na memória da imprensa e nos apresenta a rara oportunidade de desvendar a rede de interesses que vai da CPI do Futebol ao caso Banestado, com ramificações na CPIs do narcotráfico e da pirataria, com uma parada para rever a quebra fraudulenta de um grande banco e entender a estrutura do sistema quase oficial de contrabando. Personagens secundários associados a este caso vão levar a meada aos chamados porões da ditadura, ao núcleo do aparato de repressão, onde nasceram os patriarcas da organização que hoje tem uma de suas pontas exposta pela Operação Anaconda, permitindo-nos entender como se perpetuam nas instituições públicas as associações criminosas. Mas quem vai escrever essa reportagem?

Ah, mais um ou dois Elios Gasparis! Alguém cuja memória tivesse contado com a disciplina e a objetividade com que o ex-diretor de Redação de Veja expôs as vísceras do regime militar, ou um editor com determinação suficiente para apostar nesta oportunidade, certamente estaria fixando os esteios de uma nova era para o jornalismo brasileiro, construindo um momento de credibilidade em meio ao cenário de crise e desânimo que nos abate.

Mas, não. A juvenilização das redações, inspirada na estratégia fulgurante do corte de custos, raspou a memória viva da reportagem e bloqueia o raciocínio no nível raso do caso em si. Não é difícil adivinhar a solidão de um Frederico Vasconcelos, de um Renato Lombardi ou um Fausto Macedo tentando desenhar o contexto verdadeiro da notícia no cipoal das informações, sem interlocutores com quem fazer a tabela essencial a uma cobertura desse porte.

Poderíamos agora estar ansiosos pela nova revelação da Folha de S.Paulo, pela nova pista levantada pelo Estado de S.Paulo; poderíamos ver a televisão repetindo cenas de arquivo em que os atuais acusados na Operação Anaconda, hoje de cabelos brancos, aparecem como jovens paladinos da Justiça. Mas, não: a imprensa pode, como lembra Juliana Burger, mandar vinte jornalistas para saber com quem o futebolista Ronaldo Nazário vai dividir a cama e a fama, e não pode destacar um repórter da editoria de Economia para ajudar o leitor a entender a verdadeira dimensão de uma tragédia nacional sistêmica, escondida sob o caso que aparenta ser apenas mais uma novela policial.

Enquanto isso, milhares de jovens leitores se voltam para as fontes alternativas de informação, multiplicando a audiência dos blogs sensacionalistas e dos sites de teorias conspiratórias, onde já circulam, em fragmentos, versões mais interessantes, embora pouco comprováveis, de alguns dos casos que a grande imprensa deixa a descoberto.

Não sabemos ainda o poder e o porte da serpente que a Polícia Federal e os procuradores querem representar com a operação batizada de Anaconda. Também não podemos ainda calcular se a rede criminosa comprometeu as instituições públicas ao ponto de limitar as possibilidades de fazer prevalecer a lei sobre os múltiplos e poderosos interesses que se enrodilham sob o caso em evidência. Mas sabemos que a informação in natura tem pouco valor para a opinião pública e que, fragilizada, a imprensa tem poucas chances de jogar uma partida histórica neste momento.

A grande contribuição que a imprensa pode dar no processo de formação da cidadania está relacionada à sua capacidade de agregar valor à informação. A política da redução de custos pela diminuição do valor da mão-de-obra mais uma vez revela-se desastrosa quando a imprensa é chamada a cumprir seu papel mais nobre. Para agregar valor à informação que vem das investigações oficiais é preciso possuir memória, saber relacionar os fatos entre si, ponderar a relevância relativa de cada informação e cada personagem, estabelecer vínculos entre os fatos do dia e o contexto político e econômico em que se consolidou a estrutura na qual se colocam os agentes e as instituições.

O leitor mais exigente, aquele que vem garantindo a sobrevida das empresas de comunicação, sabe quando falta essa inteligência à cobertura jornalística.

(*) Jornalista