Tuesday, 30 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1285

Radiodifusão e indústria audiovisual

INTERESSE P?BLICO

PROJETO PIMENTA

Nelson Hoineff (*)

O anteprojeto da Lei da Radiodifusão, o texto final do Gedic em vias de ser entregue à Casa Civil e a iminente criação de uma nova agência do audiovisual, contida nesse texto, colocaram o meio cinematográfico e televisivo numa efervescência que não se via há muitos anos e provocaram, na terça-feira (10/7), uma reunião extraordinária do CBC.

Para quem não está familiarizado com as siglas: o CBC (Congresso Brasileiro de Cinema) é uma espécie de federação composta por 30 entidades ligadas ao audiovisual; foi criado há cerca de um ano, depois do Congresso de Cinema realizado em Porto Alegre, e é representativo dos interesses de setores ligados à produção e comercialização de cinema e ? em escala menor, porém crescente ? de televisão.

O Gedic (Grupo Executivo Para o Desenvolvimento da Indústria Cinematográfica) é coordenado pela Casa Civil da Presidência da República e presidido pelo ministro Pedro Parente; conta com a participação de sete ministérios e de um subgrupo executivo, composto pelos cineastas Cacá Diegues e Luiz Carlos Barreto, pelo exibidor Luiz Severiano Ribeiro Neto, pelo distribuidor Rodrigo Saturnino Braga, pelo presidente da Abert Evandro Guimarães e coordenado pelo cineasta Gustavo Dahl. Este subgrupo se reuniu oito vezes nos últimos dois meses e elaborou as idéias para um "planejamento estratégico" que tornaria o cinema brasileiro autosuficiente a partir de 2006.

A parte política desenhada por esse grupo está concluida. Falta agora o parecer da Receita Federal, já que a proposta mexe em grande parte com instrumentos já existentes (e a serem criados) de tributação e renúncia fiscal.

Pacote de filmes

São cinco os grupos de medidas que o Gedic irá propor: criação de um órgão gestor para o audiovisual, no modelo de Agência; redefinição e expansão das funções da Secretaria do Audiovisual do Ministério da Cultura; criação de um fundo financeiro; reforma da legislação existente para o cinema; e formulação de uma legislação para televisão.

A agência, de formação interministerial, seria normatizadora e fiscalizadora. Segundo o documento, ela "deve se afastar de qualquer caráter paternalista ou intervencionista. Terá como objetivo estabelecer parâmetros para que a atividade cinematográfica no Brasil se exerça dentro dos princípios da isonomia competitiva entre a indústria cinematográfica brasileira e a internacional".

A Secretaria do Audiovisual, por sua vez, se afastaria do fomento ao cinema industrial, ficando incumbida da vertente cultural da atividade. Suas atribuições seriam a "preservação e memória, formação de público, divulgação e difusão do cinema brasileiro no Brasil e no exterior, através de uma intensa ação de animação cultural articulada com Ministério das Relações Exteriores e Embratur".

É na criação do fundo financeiro que a cobra começa a fumar. Ele seria alimentado por recursos provenientes da Contribui&ccedilccedil;ão para o Desenvolvimento do Cinema Brasileiro (Decreto 1.900, que o Gedic reformula criando um novo sistema de taxação sobre o produto estrangeiro), e pelos recursos não utilizados dos artigos 1? e 3? da Lei 8.685 (Lei do Audiovisual) que seriam redirecionados diretamente para o fundo.

Mas para alimentar este fundo várias outras fontes seriam criadas. A primeira e mais polêmica é uma taxação de 4% sobre o faturamento publicitário das televisões de sinais abertos e por assinatura. Os recursos seriam gerenciados diretamente por cada emissora, e contabilizados separadamente para que cada TV pudesse aplicá-los em co-produções e direitos de antena de produtores independentes, previamente qualificados pela Agência.

Outra fonte de recursos viria da taxação sobre a venda de receptores de televisão, aparelhos de videocassete e DVD e fitas virgens, seguindo modelos existentes em alguns países da Europa.

O Gedic pleitea também, para o fundo, recursos fisgados das loterias exploradas pela Caixa Econômica Federal, além de recursos orçamentários da União durante o período de implementação do plano estratégico ? ou seja, nos próximos cinco anos.

O quarto ponto reforma da legislação, modifica os textos de três leis e de um decreto-lei. Na lei 8.401, por exemplo, atualiza o conceito de produção independente, devolve ao Estado a função reguladora e fiscalizadora da atividade, redefine o conceito de produção cinematográfica brasileira e cria cota de tela para a televisão. A Lei do Audiovisual é estendida até 2010; cria-se nela um fundo de investimento para certificados audiovisuais, o que permitiria ao investidor aplicar num pacote de filmes e não apenas numa produção específica.

No decreto-lei 1.900 ? mais conhecido como Contribuição para o Desenvolvimento da Indústria Cinematográfica ? são feitas modificações que não apenas atualizam os valores como incluem tecnologias como TV a cabo, satélite, DVD, internet ? que, apesar de importar e difundir produtos audiovisuais, não estão sujeitos à Contribuição prevista na lei, que é de 1975, quando nenhuma dessas tecnologias existia.

De sua parte, a legislação para televisão confunde-se quase na sua totalidade com o estabelecimento da taxação para alimentar o fundo financeiro, já que a maior parte ficou por conta da Lei da Radiodifusão, do Ministério das Comunicações, que também participa do Gedic.

Critérios de reciprocidade

A modificação do decreto-lei 1.900, na verdade, impõe pesadas restrições à circulação do produto estrangeiro no cinema e na televisão, porque inclui a criação de novas alíquotas de importação de conteúdo estrangeiro não só para cinema como para televisão aberta e TV por assinatura. A nova redação da lei mudaria a taxação de filmes estrangeiros em cinema, televisão e DVD. O que antes era cobrado por título passaria a ser cobrado pelo volume de cópias ou número de exibições.

É isso o que mais incomoda as multinacionais. A idéia provocou a reação imediata da MPA (que representa as sete maiores distribuidoras americanas de cinema) e da TAP (que fala em nome de praticamente todas as programadoras estrangeiras de TV por assinatura). Esta última, em fax enviado para o Ministro da Cultura, ameaçou explicitamente suspender a distribuição de vários de seus canais para o Brasil caso não haja transparência e discussão mais ampla das conclusões do Gedic.

O Gedic entende que, a partir de agora, o pagamento de tributos pela importação de material audiovisual é devido em qualquer mídia. As programadoras estrangeiras sempre se consideraram desobrigadas disso, já que a lei em vigor foi feita bem antes da existência de mídias como a TV por assinatura ou o DVD. Mas o grupo executivo aponta uma série de exigências feitas no regulamento da TV a cabo, de 1997, que não estão sendo cumpridos pelas programadoras, inclusive a de ter escritórios montados no Brasil.

A parte executiva do Gedic queria que, ao contrário do que aconteceu com o anteprojeto da Lei de Radiodifusão, as resoluções do grupo fossem editadas sob forma de Medida Provisória, não estando portanto sujeitos à consulta pública. O próprio secretário do Audiovisual admitiu esta possibilidade. Mas o governo foi contra e, na sexta-feira [6/7], o ministro Francisco Weffort confirmou que o documento sairá na forma de projeto de lei. Há quem garanta que isto se deu pela pressão das multinacionais, mas não haveria defesa possível para que, num regime democrático, uma questão tão ampla e controvertida não fosse debatida pela sociedade.

O projeto do Gedic prevê também a criação do Conselho Nacional de Política Audiovisual, que nada tem a ver com o Conselho Nacional de Comunicações (tanto o do Congresso quanto o do Mininistério das Comunicações), mas tem o fim específico de determinar critérios para a aplicação de recursos públicos na área. Uma Embrafilme "sem os erros do passado", na avaliação Gustavo Dahl, presidente do CBC e coordenador do Gedic, ele mesmo ex-presidente do Concine, responsável durante anos pela normatização e fiscalização da atividade cinematográfica.

Como se não bastasse, ações isoladas de relativamente pequena importância ganham dimensão muito grande em função das circunstâncias. É o caso da ação movida pelo NeoTV (uma associação de todas as operadoras de TV por assinatura, exceto a Net, da Globo) pelo direito de retransmitir o sinal da SporTV (também da Globo). Ação análoga acaba de ser perdida no Cade, onde a DirecTV pleiteava ? e não conseguiu ? o direito de distribuir o sinal aberto da Globo [veja remissões abaixo]. É o caso ainda de um projeto de lei apresentado em 27 de junho pelo depoutado Aloisio Mercadante (PT-SP). O projeto estabelece critérios de reciprocidade para produções audiovisuais feitas por estrangeiros no Brasil; proíbe que emissoras de TV ou operadoras de TV por assinatura brasileiras tenham vínculos com empresas estrangeiras capazes de determinar o conteúdo; e proíbe também a veiculação de publicidade transmitida desde o exterior, como normalmente acontece nas redes estrangeiras de TV por assinatura.

Um crime

Há em curso uma singular convergência de questões importantíssimas não apenas para a produção audiovisual brasileira mas para a própria autonomia cultural do país. As questões são tantas e tão complexas que fazem com que muita gente boa troque gato por lebre ? e disso não escapa nem o governo. O anteprojeto da Lei da Radiodifusão, sozinho, já garantiria uma grande parte desta perplexidade. O debate sobre a abertura para o capital estrangeiro, anterior à proposta do ministro Pimenta da Veiga, também. As propostas do Gedic e conseqüente reação das multinacionais americanas, a excitação do CBC, a cartelização da televisão, o galopante monopólio da Globo sobre broadcast, operação e programação por assinatura e, last but not least, o debate instalado sobre qualidade, ética e responsabilidade na televisão aberta, tudo é parte da mesmíssima equação. O grande problema é formatá-la.

Neste quadro, muitas visões anacrônicas se materializam: as Organizações Globo e o Partido dos Trabalhadores caminhando juntos contra a abertura para o capital estrangeiro, ainda que por razões diferentes, formam apenas um exemplo emblemático. A disseminação da antiga utopia de um "casamento" entre o cinema e a televisão, por exemplo, é solenemente negligenciada. Não apenas direitos e deveres de ambas as partes estão em desequilíbrio como a produção específica para televisão não encontra espaço de exibição.

Na verdade, tanto o Gedic quanto a lei proposta pelo ministro Pimenta confundem de maneira às vezes rudimentar o papel da produção para cinema e para televisão. O primeiro quer taxar a televisão para produzir cinema; o segundo acredita que só a produção dramatúrgica pode estar ao alcance das produtoras independentes ? quando no mundo inteiro, inclusive no Brasil, a produção de programas jornalísticos fora das paredes da veiculadora é um sintoma de excelência.

Se há uma base para que toda essa confusão aconteça é o fato que o quadro atual é superlativamente ruim. Não é apenas por seus méritos artísticos ou políticos que a Globo chegou a 80% do bolo publicitário do broadcast, que significam 70% das operações de TV a cabo e quase 100% da programação brasileira profissional de TV por assinatura (para não falar do monopólio da produção cinematográfica, prevista para os próximos três anos); é também, e principalmente, pelos deméritos dos "competidores".

O resultado é que fica inviável cinco redes nacionais disputarem de maneira razoavelmente saudável os 20% restantes da receita do broadcast brasileiro. E é claramente impossível um operador sobreviver sem o conteúdo detido pela Globo, seja no âmbito dos direitos de transmissões esportivas, seja na transmissão do sinal aberto.

Assim como o alcoolismo só começa a ficar perigoso quando o alcoólatra não admite que bebe, as distorções se agravam quando ninguém mais se horroriza com elas. Hoje ninguém se espanta que 80 milhões de brasileiros consumam todas as noites o mesmo produto cultural; que a produção regional tenha se transformado, no máximo, em bandejas de borboletas; que redes nacionais de televisão vivam em estados tão patéticos de penúria econômica e cultural; que mais de duzentas redes internacionais de TV por assinatura sejam importadas sem a mais tênue contrapartida; que nenuma rede independente de TV por assinatura tenha sido criada no Brasil, contra mais de 400 nos EUA; que a produção nacional independente responda por menos de 0,5% dos lineups das operadoras de DBS.

Não é razoavel também que a televisão aberta brasileira produza quase 100% do que veicula, e muito menos que a produção minimamente conseqüente se restrinja a uma única rede. Algumas atitudes tornam-se então imperiosas, ainda que os lobistas sempre de plantão pretendam transformá-las em mutuamente excludentes, o que de fato não são:


a) deter o monopólio galopante da produção e veiculação audiovisual;
b) evitar que essa produção e veiculação sejam dominadas por estrangeiros;
c) desconcentrar a produção televisiva;
d) estimular a qualidade dessa produção;
e) criar mecanismos para encorajar a competitividade;
f) punir a irresponsabilidade dos que usam concessões com incompetência ou para fins espúrios;
g) não deixar sentimentos xenófobos decolarem outra vez;
h) regulamentar minimamente a distribuição de sinais, mas sem que haja interferência de quem quer que seja no conteúdo;
i) promover a presença da televisão brasileira ? e não apenas do cinema brasileiro ? nas redes de televisão abertas e por assinatura.


Tanto o MiniCom quanto o Gedic procuram respostas para essas questões, ainda que de maneira muito mais atabalhoada do que o permitido, dada a relevância do problema. Cinco minutos de consulta pública, por exemplo, mostrarão que a receita das TVs por assinatura não está no faturamento publicitário das redes, mas no faturamento das assinaturas vendidas pelos operadores. A confusão entre um e outros é apenas uma das razões do desastre da chamada "lei do cabo", promulgada menos de quatro anos atrás.

Se no cinema a legislação desenhada desde a criação da Embrafilme, em 1967, tem sido no máximo casuística, na televisão a ausência de um ideário minimamente consistente sobre os valores e mecanismos de produção é criminosa. Quebrar este silêncio é uma questão de segurança nacional.

(*) Jornalista, diretor e produtor de televisão, autor de TV em Expansão e A Nova Televisão. Em 2000 realizou o primeiro documentário brasileiro em HDTV, “…antes”, para a Mostra do Redescobrimento


Leia também

Convergência de tecnologias e de interesses ? Nelson Hoineff

O poder do truste televisivo? N. H.

    
    
              

Mande-nos seu comentário