Wednesday, 01 de May de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1285

Rendição à ignorância

Creio que em absoluto o projeto de lei do deputado Aldo Rebelo pretenda multar erros de português. A questão é que aceitamos como normal sermos obrigados a conhecer inglês. Uma conhecida marca de salgadinhos vendia (ou vende ainda) o produto com os sabores: “smoked ham” e “rich cream”. Os incautos tapuias são obrigados a fazer curso de inglês ou, feito bobos, a comer o que não conhecem. Não seria mais gostoso comer um salgadinho sabor presunto defumado ou creme de cebola? E se fosse veneno? Como saber?

Não traduzimos “strogonoff” para picadinho com creme, mas traduzimos churrasco para “barbacue”, duas coisas inteiramente diferentes. Em comum apenas o cozimento na brasa. Ainda comeremos beanoada em vez de feijoada…

Aceitamos como obrigatório o conhecimento do inglês e apenas recentemente vídeos e aparelhos eletrônicos vêm com instruções traduzidas (em geral mescladas de castelhano). Afinal, índio só quer apito para apitar, não precisa saber usar. É muito complicado para nossas primitivas mentes, que nem conhecem a língua do pai branco que nos traz dádivas do céu.

Transformamos o Ácido Desoxoribonucleico na sigla DNA (Desoxyribonucleic Acid), em vez de ADN. Vá explicar ao aluno tal sigla. E como isto ajuda na compreensão do nome!! O sujeito tem de dominar biologia e inglês. Transformamos Sida em Aids e por aí vai. Isto são coisas que ocorrem no Brasil, mas não em Portugal, França e países de língua espanhola. Na verdade tratamos o idioma como um dialeto de segunda classe, e o chique é saber inglês. Assim lojas para “gente de bem” não faz liquidação, mas vende com “x% off”. E o pobrerio passa batido sem a menor idéia do que significa off. E não suja a mercadoria com suas mãos.

O uso de palavras estrangeiras é necessário quando novas, embora “deletar” pudesse ser substituído perfeitamente por “apagar”. O que facilitaria muito a vida do iniciante em informática.

No fundo, é um sistema de exclusão social o abuso do inglês. Também uma maneira de afastar os “mortais” comuns de certas tecnologias simples como a informática, criando um dialeto para iniciados. Enfim, é antidemocrático porque nega o acesso ao conhecimento a todos aqueles que conhecem somente a língua falada no seu país.

John Robert Schmitz (!!!) pelo jeito considera o português um idioma bom apenas para pessoas simples escreverem bilhetes (necessariamente mal-escritos, segundo o artigo, afinal são povo) [veja remissão abaixo] ao leiteiro. Para os mistérios da eletrônica, tecnologia e coisas mais importantes (como liquidação em loja fina) temos a língua inglesa, compreendida (ou fingindo compreensão) pelos extratos mais nobres da nossa sociedade.

Ernani Porto

 

As reações dos leitores do Observatório da Imprensa às minhas observações sobre dois dicionários brasileiros evidenciam circunstâncias que já haviam se manifestado quando da publicação de meu primeiro artigo, na Folha: as muitas falhas metodológicas e conceituais dessas obras são reconhecidas por muita gente; poucos são os que as defendem; as pessoas têm receio de se dirigir ao público (não só por meio da mídia) para exprimir suas opiniões, o que reflete o caráter subalterno da cultura brasileira, agravado pelo relativismo liberal rampante; a academia passa batida pela questão; as editoras e os dicionaristas estão pouco se lixando, demonstrando pela enésima vez que essa história de “mercado” é mesmo para inglês ver.

Dois comentários sobre o que escreveu o sr. Rogério Reis. O primeiro diz respeito à palavra “evidência”. O sr. Reis se prende à etimologia, atitude bacharelesca tão comum no Brasil. Diferentemente do que ele afirma, o emprego da expressão não é o de “certeza manifesta”. Ao se ouvir uma frase como “as evidências são de que Fulano é culpado” não se fica autorizado a concluir que exista certeza disso. O sr. Reis também confunde “evidente” com “evidência”. São termos distintos, com usos díspares.

O segundo comentário se refere a “biópsia” e assemelhados. Aqui também vale a observação feita acima sobre bacharelismos. É o uso que, ao longo do tempo, define um idioma. Preferir “biopsia” a “biópsia” é patentemente anacrônico, e os dicionários deveriam aceder a isso, como fazem com dezenas de milhares de outros vocábulos que tiveram sua ortografia alterada para acompanhar o costume. Se não o tivessem feito, ainda estaríamos escrevendo (embora não falando) como Tomé de Souza. (C.W.A)

 

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