Friday, 11 de October de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1309

Robert Fisk

ORIENTE MÉDIO

"Medo e aprendizado na América", copyright The Independent, 16/4/02. Tradução de Marinilda Carvalho. Os intertítulos são da Redação do OI


Na qualidade de crítico aberto da política dos EUA no Oriente Médio, Fisk esperava uma recepção hostil ao visitar, pela primeira vez desde o 11 de setembro, o Meio-Oeste americano. Pois ele estava muito enganado


"Osama bin Laden me disse uma vez que os americanos não entendem o Oriente Médio. Na semana passada, num ônibus que avançava pelas pradarias de Iowa através de cortinas de chuva, abri meu exemplar do Des Moines Register e vi que ele pode estar certo. ?Porcos são ameaça maior do que bin Laden?, anunciava a manchete. O maciço rebanho suíno de 15 milhões de cabeças de Iowa, ao que parece, produz tanta bosta que todos os rios do estado estão poluídos. ?Os grandes produtores de porcos são ameaça maior aos EUA e à democracia americana do que Osama bin Laden e sua rede terrorista?, diz Robert F. Kennedy Junior, presidente de um grupo ambiental nova-iorquino. ?Vemos os valores americanos sendo destruídos por estes inimigos?, disse Kennedy…? Peguei minha calculadora e fiz umas continhas: Cedar Rapids está a sete mil milhas [11.200 quilômetros] do Afeganistão. Outro planeta.

Tenho viajado pelos Estados Unidos há anos, dando palestras nas universidades de Princeton, Harvard ou Brown, de Rhode Island, San Francisco ou Madison. Deus sabe por quê. Recuso qualquer pagamento, só aceito passagens aéreas de/para Beirute na classe executiva, porque não suporto vôos de 14 horas ao som de bebês chorando. Os estudantes universitários americanos são agressivos como unhas e chatos como repolhos, e em algumas cidades ? principalmente Washington ? posso falar em amharic [língua oficial da Etiópia]: se eu não usar expressões como ?processo de paz? ou ?Israel sitiado? [ou seja, a visão da Casa Branca do conflito, pela qual os palestinos sitiam Israel, e não a de que Israel ocupa o território palestino] dá uma espécie de pane de sistema no rosto da platéia. Por que minha última aventura americana seria diferente?

Claro, houve as estranhezas de sempre. O senhor negro cuja primeira ?pergunta? sobre o Oriente Médio na minha palestra na Universidade de Chicago foi um longo e orgulhoso anúncio de que não paga imposto desde 1948. Tão maravilhoso que até contenho as tentativas de calá-lo. Há os conspiracionistas do WTC, que insistem em que o governo dos EUA plantou explosivos nas torres gêmeas. E a senhora de cabelos prateados querendo saber por que Deus não resolve o ódio entre israelenses e palestinos. Ou o índio americano em Los Angeles que denunciou aos gritos um complô judeu para lhes tirar as terras. Foi interrompido por um homem de óculos e longos cabelos brancos presos em rabo de cavalo, que disse ser a guerra Israel-Palestina idêntica à guerra EUA-México, que tirou de seu povo… bem, Los Angeles. Comecei a calcular a distância entre LA e Jenin. Uma galáxia.

De mão beijada

E houve as pequenas histórias pessoais que mostram como a imprensa americana se tornou preconceituosa e medrosa frente ao lobby de Israel. ?Escrevi um artigo para um grande jornal sobre o êxodo palestino de 1948?, contou uma mulher judia enquanto andávamos de carro em meio à poluição do centro de LA. ?Claro, mencionei o massacre de palestinos em Deir Yassin, pela Stern Gang e outros grupos judeus ? o massacre que levou 750 mil árabes a abandonar suas casas. Quando procurei meu artigo no jornal, o que encontrei? A palavra ?suposto? foi inserida antes da palavra ?massacre?. Liguei para o ombudsman do jornal e lhe disse que o massacre de Deir Yassin era um fato histórico. Adivinhe a resposta dele? Ele disse que o editor usou a palavra ?suposto? antes de ?massacre? porque deste modo evitaria uma enxurrada de cartas de protesto.?

Por acaso, este é o tema de minhas palestras: a forma covarde, preguiçosa, sem personalidade como os jornalistas americanos estão lobotomizando suas matérias do Oriente Médio: em seus textos, ?territórios ocupados? viraram ?territórios disputados?, ?assentamentos judeus? viraram ?bairros judeus?, militantes árabes são ?terroristas?, mas militantes israelenses apenas ?fanáticos? ou ?extremistas?; e Ariel Sharon ? o homem ?pessoalmente responsável?, segundo inquérito da própria Justiça de Israel, pelo massacre de 1.700 palestinos em Sabra e Chatila, em 1982 ? foi descrito em matéria do New York Times como tendo instintos de ?guerreiro?. A execução de sobreviventes palestinos é chamada de ?limpeza?. Civis mortos por soldados israelenses são sempre ?vítimas de fogo cruzado?. Perguntei a minhas platéias ? e esperei a usual indignação americana ? como os cidadãos dos EUA podem aceitar os infantis ?vivo ou morto? e ?conosco ou contra nós? das políticas do ?eixo-do-mal? de seu presidente.

E, pela primeira vez em mais de uma década de palestras nos Estados Unidos, eu fiquei chocado. Não pela passividade dos americanos ? a patriótica noção do ?tudo-aceitar? de seu presidente, que sabe mais ?, nem pela perigosa reação autocentrada dos EUA desde o 11 de setembro, ou o constante medo de criticar Israel. O que me chocou foi a extraordinariamente nova recusa americana de seguir a linha oficial, a crescente, zangada conscientização dos americanos de que têm sido enganados. Em algumas de minhas palestras, 60% da platéia tinham acima de 40 anos. Talvez 80% eram americanos sem raízes étnicas ou religiosas no Oriente Médio ? ?americanos da América?, como eu cruelmente defini uma ocasião, ?americanos brancos?, segundo um estudante palestino. Pela primeira vez não foi minha fala que eles contestaram, mas as falas de seu presidente e as falas da imprensa sobre a guerra de Israel ao terrorismo e a necessidade de, sempre, acriticamente, apoiar tudo que este pequeno aliado americano no Oriente Médio diz ou faz.

Houve, por exemplo, o ex-oficial da Marinha de rosto enrugado, que se aproximou de mim após uma palestra na igreja Metodistas Unidos, no subúrbio de Encinitas, em San Diego. ?Senhor, fui oficial no porta-aviões John F. Kennedy durante a guerra no Oriente Médio de 1973?, começou ele (verifiquei mais tarde, era verdade). ?Estávamos estacionados na costa de Gibraltar, e nossa tarefa era reabastecer os caças que estávamos enviando a Israel, depois que a Força Aérea deles foi feita em pedaços pelos árabes. Nossos aviões tiveram os símbolos da USAF [Força Aérea dos EUA] e da Marinha substituídos pela Estrela de Davi. Alguém sabe por que demos todos aqueles aviões aos israelenses assim de mão beijada? Quando vejo na TV nossos aviões e tanques atacando os palestinos entendo por que odeiam os americanos.?

O tédio da verdade

Nos EUA, costumo falar a auditórios semivazios. Há três anos, consegui atrair a um auditório de 600 lugares em Washington apenas 32 americanos. Mas em Chicago, Iowa e Los Angeles, neste mês, eles vieram às centenas ? quase 900 de uma vez na University of Southern California ? e se sentaram entre as fileiras e nos corredores e até fora das portas. E não foi porque lord Fisk estava ali. Talvez o título da conferência ? ?11 de setembro: pergunte quem fez, mas não pergunte por quê? ? fosse provocativo. Mas a maioria veio, como logo revelou a sessão de perguntas e respostas, porque está cansada de ser violentada pelas redes de TV e os articulistas de direita.

Jamais um americano tinha me perguntado: ?Como podemos fazer nossa imprensa contar a verdade sobre o Oriente Médio??, ou, mais perturbador ainda, ?Como fazer com que nosso governo reflita nossos pontos de vista??. A pergunta é uma armadilha, claro. Os britânicos têm empurrado conselhos aos americanos desde que nós perdemos a Guerra da Independência, e eu não estava disposto a me reunir a eles. Mas o fato de que estas perguntas foram feitas ? normalmente por americanos de meia idade sem origens familiares no Oriente Médio ? sugere uma profunda mudança numa população até agora dócil.

Perto do fim de cada conferência eu pedia desculpas pelo que diria em seguida: eu afirmei às platéias que o mundo não mudou com o 11 de setembro, que os libaneses e os palestinos contabilizaram 17.500 mortos na invasão israelense de 1982 ? mais de cinco vezes o total das mortes causadas pelos crimes contra a humanidade cometidos em 11 de setembro ?, mas o mundo não mudou 20 anos atrás. Não houve velas, nem memoriais fúnebres. E cada vez que eu dizia isso via um balançar afirmativo de cabeças ? grisalhas e calvas, mas também jovens ? através da sala. A menor piadinha irreverente sobre Bush provocava uma explosão de risadas. Perguntei a uma de minhas anfitriãs o que estava acontecendo, por que a platéia aceitava isso de um britânico. ?Porque não achamos que Bush tenha vencido a eleição?, respondeu ela.

Claro, é fácil ser enganado. Num programa da principal
rádio local de Iowa City vi como se lida com o Oriente Médio
na América. Quando Gayane Torosyan permitiu perguntas, um
ouvinte chamado ?Michael? ? líder de uma comunidade judia
local, eu soube mais tarde, porque ele não disse isso no
ar ? afirmou que depois das negociações de Camp David,
em 2000, Yasser Arafat voltou-se para o ?terrorismo?, embora lhe
tenham sido oferecidos o Estado Palestino com capital em Jerusalém
e 96% da Cisjordânia e da Faixa de Gaza. Bem devagar tive
que rebater esse nonsense: de acordo com Camp David, Jerusalém
permaneceria a ?eterna e unificada capital de Israel?. Arafat teria
o que Madeleine Albright [secretária de Estado de Bill Clinton]
chamou de ?uma espécie de soberania? sobre a área
da mesquita de Haram al-Sharif e algumas ruas árabes, enquanto
o Parlamento Palestino ficaria abaixo das muralhas orientais da
cidade, em Abu Dis. Com a vasta e ilegal ampliação
dos limites do município de Jerusalém Faixa de Gaza
adentro, assentamentos judeus como Maale Adumim e muitos outros
não eram negociáveis. Também não o eram
o cinturão de segurança militar israelense em torno
da Faixa de Gaza; nem as estradas dos colonos, que cortariam o ?Estado?
Palestino. A Arafat foram oferecidos 46% dos 22% de território
que sobraram à Palestina. Posso imaginar a audiência
da rádio caindo lentamente, de puro tédio.

Manchete na mosca

De volta a meu hotelzinho popular de paredes de madeira, o proprietário e a mulher ? voluntários da paz na era Kennedy ? contaram ter ouvido cada palavra. ?Sabemos o que está acontecendo?, ele disse. ?Fui oficial naval no Golfo nos anos 60, e tínhamos uns poucos navios lá. Naquele tempo, o xá do Irã era a nossa polícia. Agora temos toda aquela frota lá, nossos soldados nos países árabes, e parece que dominamos a região.? Osama bin Laden, pensei, não diria melhor.

Como é estranho, refleti, que nem isso os jornais americanos consigam dizer. The Daily Iowan ? há nada menos do que quatro diários em Iowa City, sendo a liberdade de imprensa medida pelo número de jornais, e não pela profundidade da cobertura ? não tinha a mesma franqueza do dono do meu hotel. ?A situação do Oriente Médio é uma entre muitas que os americanos não entendem corretamente?, argumentava o jornal, ?e nem conseguem ser razoavelmente articulados a respeito.? Essa bobagem ? de que os americanos são burros demais para compreender o banho de sangue no Oriente Médio, e por isso deveriam ficar de boca fechada ? é um tema recorrente nos jornais. Até as matérias sobre minhas palestras eram mais instrutivas.

A manchete ?Fisk: quem realmente são os terroristas?, no Daily Iowan, pelo menos captou a essência da minha mensagem, e incluiu meus próprios exemplos do preconceito da imprensa americana quanto ao Oriente Médio, embora tenha falhado nos fatos, erradamente informando que foi a ONU (e não a bem mais persuasiva Comissão Kahan, de Israel) que concluiu pela responsabilidade pessoal de Sharon no massacre de Sabra e Chatila.

Foi intrigante a descrição do Des Moines Register de uma de minhas palestras. Primeiro se concentraram em minhas entrevistas com Osama bin Laden ? que eu realmente mencionei ?, e depois passaram ao meu relato de como uma multidão de afegãos me espancou em dezembro. Para contextualizar o incidente, eu contara à platéia que os afegãos estavam furiosos com os bombardeios dos EUA, que tinham acabado de matar vários parentes deles perto de Kandahar, e como tinha sido importante incluir esta ressalva na minha matéria sobre a agressão. O Register usou minhas palavras para descrever a agressão, mas não citou a ressalva. Longa vida, pensei, à imprensa-cidadã de Iowa City, cuja manchete ? ?Repórter do Oriente Médio golpeia a mídia? ? foi na mosca.

?Incapazes para a paz?

A população de Iowa não tem desculpa para estar por fora da situação do Oriente Médio. Na pequena Davenport, israelenses têm sido treinados no manejo dos helicópteros de combate Apache AH-64, usados para matar os palestinos da lista de procurados de Israel. Segundo um repórter local, muitas empresas de Iowa, incluindo a filial regional da Rockwell, estão envolvidas em contratos militares milionários com Israel. CemenTech, de Indianola, fornece equipamentos à Força Aérea israelense. No dia em que cheguei a Iowa City, John Ashcroft, procurador-geral dos EUA, revelava à população que no estado de Iowa tinha sido interrogada uma centena de cidadãos estrangeiros de países que ?abrigam terroristas?. Outra centena seria provavelmente interrogada em breve. Nenhuma matéria contou isso.

Também as turmas da Iowa University eram fascinantes. Uma jovem começou dizendo saber que a imprensa americana é preconceituosa. Quando perguntei por que, ela disse que ?tem a ver com o apoio dos EUA a Israel…?, e então, rosto vermelho, desmaiou. Outro aluno levantou a mão depois que afirmei que os EUA foram enganados e caíram numa armadilha no Afeganistão ? suposta ?vitória? seguida de combates diários com guerrilheiros afegãos: ?Então, como derrotá-los??, perguntou. Leves risadas pela sala. ?Por que você quer derrotar os afegãos??, perguntei? ?Por que não ajudá-los a construir um novo país?? O estudante me procurou mais tarde, mão estendida: ?Quero agradecer, senhor, por tudo que nos disse.? Suspeitei que ele fosse militar. ?Você planeja entrar para o Exército??, perguntei. ?Não, vou entrar para a Marinha.?

Aconselhei-o a ficar longe do Afeganistão. A seu modo, a imprensa americana faz o mesmo. Dois dias depois, o Los Angeles Times, em marcante telegrama do correspondente David Zucchino, relatou a amargura e a raiva dos afegãos cujas famílias foram mortas pelas bombas dos B-52 americanos.

Se ao menos a mesma a mesma crueza fosse aplicada ao conflito Israel-Palestina… Infelizmente, não é. Na auto-estrada de Long Beach, na sexta-feira, abri o LA Times para ler que Israel ?faz limpeza (sic) na Faixa de Gaza?, enquanto a colunista Mona Charen dizia aos leitores dos muitos jornais que publicam sua coluna que ?98% dos palestinos não viviam sob ocupação desde a retirada de Israel após os acordos de Oslo?, e que o então primeiro-ministro israelense, Ehud Barak, ofereceu a Arafat ?97% da Faixa de Gaza e a cidade de Gaza?; 1% mais que as estatísticas de ?Michael?, na rádio de Iowa. O culpado era Arafat ? ?este assassino com as mortes de milhares de judeus e árabes nas mãos?. A questão entre Israel e seus vizinhos?, dizia ela, ?não é a ocupação, não são os colonos judeus e certamente não são a brutalidade e a agressão de Israel. É a incapacidade dos árabes de viverem em paz com os outros?.

?Ele vai torcer tudo o que você disser?

The Orange County Register, jornal tradicionalmente conservador numa área hoje com 50% de latinos, vem tentando dizer a verdade sobre o Oriente Médio, e trazia forte editorial de Holger Jensen, advertindo que se Bush não controlar Sharon o primeiro-ministro israelense ?terá êxito no que Osama bin Laden falhou: forçar os EUA a uma guerra de civilizações contra 1,2 bilhão de muçulmanos?. Quando almocei com os editorialistas, eles convidaram três representantes da comunidade muçulmana de Orange County.

Um coquetel com amigos da igreja metodista revelou uma saudável compreensão do Oriente Médio ? um deles tinha ficado chocado com declaração do ministro israelense de Segurança Interna, Uzi Landau, que disse: ?Não estamos enfrentando seres humanos, mas feras.? Um convidado negro elogiou as críticas a Israel do secretário-geral da ONU, Kofi Annan. Na Fox News, Benjamin Netanyahu declarava que logo os homens-bomba palestinos estariam rondando as ruas da América, por seu apoio a Israel. O secretário de Estado, Colin Powell, estava em Israel.

?Por que a missão de Israel deve continuar?, gritava a página de opinião do New York Times, em longo e tedioso artigo de um coronel israelense, Nitsan Alon. Muitos dos meus chavões ?favoritos? estavam lá, incluindo a referência ao grande número de civis ? sim ? ?apanhados no fogo cruzado?.

Enquanto eu falava a artistas boêmios de Los Angeles, os jornais que eu atacava apareciam. Mark Kellner chegou, para cobrir para The Washington Times. ?Ele vai torcer tudo o que você disser?, observou um amigo. ?O Washington Times está à direita do Partido Republicano.?

Cobertura débil

Mas se minhas platéias eram compostas de americanos sem raízes no Oriente Médio, o mesmo não se pode dizer do coquetel de domingo na casa do filantropo, colecionador de arte e libertário Stanley Sheinbaum, onde minha pequena fala ativaria algumas granadas verbais. ?Fale alguma coisa boa sobre você?, pediu ele. ?Ninguém mais diz coisas boas de mim??, perguntei. ?Não.?

Mas eu gostei do jeito rabugento de Sheinbaum, enrugado e bem-humorado em seus 80 anos, que encoraja cada judeu liberal americano a opinar sobre o Oriente Médio. Na hora do almoço a neblina cobriu os roseirais e villas e piscinas e colinas de Brentwood. Um rabino se aproximou: ?Você terá pessoas hostis na platéia?, disse. ?Apenas lhes diga a verdade.?

Assim o fiz. Falei da covardia do secretário Powell, que esticou sua volta pelo Mediterrâneo para dar tempo a Sharon de destruir o campo de refugiados de Jenin. Falei dos corpos decompostos de Jenin e da crescente evidência de que em 1982 os soldados de Sharon devolveram os sobreviventes do massacre de Sabra e Chatila aos falangistas cristãos torturadores, para serem mortos. Disse que os acordos de Camp David nunca ofereceram a Arafat 96% da Faixa de Gaza. Instei as 100 pessoas presentes a ler as corajosas matérias do jornalista israelense Amira Haas no Ha?aretz. Falei da imundície dos campos palestinos. Falei dos homens-bomba suicidas como um ?mal?, mas sugeri que Israel nunca teria segurança enquanto não obedecesse à Resolução 252 do Conselho de Segurança da ONU; que Israel nunca teria paz enquanto não abandonasse a Faixa de Gaza, Gaza, Golan e Jerusalém Oriental.

?Achei muito difícil lhe fazer uma pergunta, porque tudo o que você disse me deixou tão zangada?, disse uma mulher depois. Por que eu não entendia que os palestinos querem destruir o Estado de Israel, que o direito ao retorno destruiria Israel? Por uma hora eu explicara a realidade que vi no Oriente Médio, um todo-poderoso Israel combatendo uma guerra colonial ultrapassada. Falei da Guerra da Argélia (1954-1962), sua brutalidade e crueldade, a tortura e os assassinatos do Exército Francês, das chacinas de civis, os assustadores paralelos com o conflito entre palestinos e israelenses. Falei dos palestinos que querem pelo menos a admissão da injustiça sofrida em 1948 por seu povo, acrescentando que há muitos refugiados à espera apenas de indenização pelas casas que ficavam onde hoje está Israel. Falei de Sharon e de seus recordes sangrentos no Líbano. E sobre as pressões do lobby de Israel na América, o medo de ser rotulado de anti-semita e da débil cobertura do Oriente Médio.

Não enganam mais

Um rabino foi o primeiro a me dizer depois que os palestinos são vítimas, mereciam receber casas. Uma velha senhora me pediu o nome do melhor livro sobre a Guerra da Argélia. Recomendei A savage war of peace (uma selvagem guerra pela paz), de Alastair Horne. Um cartão foi enfiado em minha mão. ?Discurso penetrante!?, escrevera o dono. Percebi que o nome no cartão era Yigal Arens, filho de um dos mais cruéis ministros da linha-dura israelense, que me disse em 1982, em Beirute, que Israel ?combateria para sempre? o terror palestino.

A caminho do aeroporto, os terminais e a torre de controle aparecendo em meio ao nevoeiro californiano, lia a edição de sábado do LA Times. Matéria na página 12: um premiado filme da BBC sobre o envolvimento de Sharon no massacre de Sabra e Chatila fora retirado da mostra de um festival canadense de cinema por pressão de grupos judeus.

Os organizadores alegaram que The accused (O acusado) poderia atrair atenção indesejada de grupos de interesse ? seja lá o que isso signifique. Mas um parágrafo no fim da matéria chamou minha atenção: ?Sharon, ministro da Defesa naquela época, supostamente facilitou o ataque aos campos de Sabra e Chatila…? Lá vamos nós outra vez. Supostamente? Quantas cartas zangadas esta mentirinha evitou? Supostamente de fato.

Refletindo, não acho que os americanos que encontrei possam ser enganados por isso. Não acho que o dono do hotel aceite o ?supostamente?. Nem o velho marinheiro do John F. Kennedy. Nem os ouvintes da rádio de Iowa City. Nem mesmo Stanley Sheinbaum. Sim, Osama bin Laden me disse que os americanos não compreendem o Oriente Médio. Talvez ele estivesse certo naquela época. Mas não está mais."