Monday, 29 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1285

Se Bourdieu estivesse vivo…

DEVER DE CASA

Allan Novaes (*)

A interferência do mercado no perfil editorial dos veículos jornalísticos causa tanta repulsa à maioria dos profissionais de imprensa quanto o prêmio de funcionário do ano de Rubens Barrichello irrita os fãs brasileiros da Fórmula 1 ou a entrada de Paulo Coelho na Academia Brasileira de Letras escandaliza literatos por todo o país. O dilema da mídia moderna ? divulgar a informação verdadeira e relevante ou ceder à influência do capital incentivou Pierre Bourdieu, sociólogo e ativista antiliberal, a afastar-se temporariamente do palco das tensões político-sociais francesas para engajar-se na luta contra o mau jornalismo.

Ombudsman por pouco tempo

Integrante de uma respeitada linhagem de pensadores franceses, com Jean-Paul Sartre e Michel Foucault, Bourdieu colaborou para o progresso das ciências humanas de maneira inquestionável. Crítico feroz do capitalismo globalizado, Bourdieu, falecido há cerca de seis meses, escreveu Sobre a televisão, 95 páginas que se tornaram pivô de acirrado debate na mídia francesa. O tema não era novo: a má conduta da mídia. A procura pelo furo e por notícias de apelo popular transformou os veículos em enlatados uniformes. Para Bourdieu, a informação estava comprometida pelos interesses do mercado e sujeita às decisões do patronato.

Se estivesse vivo e estudasse a realidade brasileira, Bourdieu veria que a Central Globo de Jornalismo não só usa o furo para vencer a concorrência, como cria e manipula seus próprios furos. Agora, o furo de reportagem está associado à autopromoção. Vence quem consegue se promover mais produzindo notícias inúteis sobre fatos irrelevantes.

Assim, vê-se no Jornal Nacional grande incidência de matérias sobre a convivência conturbada dos moradores da casa do Big Brother Brasil. Em detrimento das notícias "chatas" sobre política, sociedade e economia, Fátima Bernardes e William Bonner anunciam os participantes do "paredão". A jogada é fantástica e a lógica é simples: gastam-se milhares de reais num programa que atraia não só a população, mas a própria imprensa. Afinal, como negar a notícia ao povo? Ele tem direito à informação assegurado em lei! O BBB vira um furo cujo grande beneficiário é a mesma emissora que apresenta o programa. Os concorrentes consolam-se em noticiar fofocas e boatos sobre o show, obrigados a uma campanha publicitária em favor do concorrente ("se não consegue vencer o inimigo, una-se a ele").

"Penso que a televisão, através de diferentes mecanismos (…) expõe a um grande perigo às diferentes esferas da produção cultural, arte, literatura, ciência, filosofia, direito; creio mesmo que, ao contrário do que pensam e dizem com toda boa-fé os jornalistas mais conscientes de suas responsabilidades, [a TV] expõe a vida política e a democracia a um perigo não menor", disse Bourdieu.

Caso estivesse vivo, Bourdieu seria um ombudsman honoris causa da televisão brasileira na luta contra a autopromoção. Logo ouviria as grandes empresas de comunicação justificarem seu procedimento mencionando o Risco-Brasil e a instabilidade do cenário político nacional pré-eleições, além de argumentos marqueteiros acerca de sobrevivência, em detrimento da ética. E provavelmente deixaria o Brasil.

(*) Aluno do 2? ano de Jornalismo do Unasp