Wednesday, 09 de October de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1308

Seja realista, exija o impossível

COMBATE À BAIXARIA

Paulo José Cunha (*)

"Ora, se o MST faz suas marchas a Brasília, os funcionários públicos realizam suas manifestações por melhores salários, as centrais sindicais vão à Esplanada exigir direitos trabalhistas, os professores ocupam os gramados em frente ao Ministério da Educação exigindo melhores condições de trabalho e investimentos para elevar a qualidade do ensino ? bem que a gente podia fazer uma manifestação na Praça dos Três Poderes contra a baixaria e a favor da qualidade na televisão, né não? É capaz de dar samba."

Mais ou menos com estas palavras fiz essa "disparatada" sugestão durante a mesa-redonda Meios de Comunicação ? A responsabilidade na educação", no congresso Educação e Transformação Social, realizado pelo Sesc Santos, São Paulo, de 15 a 18 de maio. Não demorou muito para as 800 pessoas presentes demonstrarem, com generosos aplausos, que a idéia não é tão disparatada assim. A repórter Neide Duarte (ex-TV Globo, hoje pilotando o excelente Caminhos e parcerias, da TV Cultura), botou seu feixe de lenha na fogueira sugerindo às pessoas que comecem a desligar a tevê em protesto contra o baixo nível. Embora não tenha usado essas palavras, lembrou que, se a única linguagem que eles entendem é a oscilação do ponteiro do Ibope, então a saída é mexer com ele, e o botão de desligar serve para isso. A psicanalista Maria Rita Kehl, da ONG Tver, que fechava o trio da mesa-redonda, lembrou-se dos tempos de repressão (foi uma das editoras do extinto e combativo jornal Opinião, na década de 70). E recordou batalhas históricas como a dos metalúrgicos do ABC paulista que, diante da ausência de cobertura ou de cobertura distorcida de seus movimentos reivindicatórios, uma vez botou para correr uma equipe de reportagem da Rede Globo. A direção da emissora entendeu o recado e começou a cobrir com mais objetividade as manifestações dos metalúrgicos.

Da platéia, dezenas e dezenas de perguntas. Em quase todas, um traço comum ? o que se pode fazer para enfrentar o problema da qualidade na tevê? E a resposta dos integrantes da mesa, com pequenas diferenças, foi apenas uma: pressão popular.

Nem ingenuidade nem maluquice

Por incrível que pareça, parece que o ambiente para um salto em favor da qualidade está no ponto. Se não, vejamos. O momento em que a tevê brasileira chega ao fundo do poço com a explosão dos brothers e afins coincide com a institucionalização do racha na ex-todo-poderosa Abert, dando origem à Abert do B ? que vem atendendo pelo nome provisório de União das Empresas de Rádio e Televisão do Brasil ?, formada basicamente por SBT, Band e Record e, com isso, isolando a Rede Globo no que restou da Abert original. As emissoras de rádio também estão pulando fora e armando, a partir de sugestão da Eldorado, a formação de entidade autônoma para defender seus interesses. Sem o racha ? que pode ser saudado como o mais importante acontecimento nas telecomunicações brasileiras nos últimos 30 anos ? não estariam acontecendo as negociações para a implantação do Conselho Nacional de Comunicação Social, convenientemente engavetado há 13 anos (por pressão da Abert) desde que foi criado pela Constituição de 88. Igualmente, aceleram-se as providências para a regionalização da produção, cuja regulamentação foi igualmente "esquecida" (também por ação da Abert) desde que foi inscrita na Constituição-cidadã de Ulysses Guimarães.

As coisas se interligam. O racha resultou do apoio explícito (que no passado já foi rejeição explícita) da Abert à entrada de capital estrangeiro na mídia, coincidentemente no instante em que a Globo Cabo amarga um prejuízo descomunal. A Abert "teria negociado com a oposição, favorável ao conselho (de comunicação social), mudando sua posição em troca de votos pela aprovação da emenda do capital estrangeiro" (revista Produção Profissional, abril 2002). A suspeita da revista faz sentido, porque, de uma forma ou de outra, o conselho está virando realidade. E tem a ver também com a posição fechada da Abert nas negociações sobre o sistema de transmissão digital terrestre ? uma briga pesada entre o sistema japonês e o americano, a revolução que mexerá com vários, muitos, incontáveis bilhões de dólares, já a partir do ano que vem. É briga de cachorro grande, envolvendo os interesses das megacorporações por esse suculento mercado.

Portanto, o caldo de cultura para as grandes transformações ? inclusive em relação à qualidade ? está formado. Como sugere a Neide Duarte, a gente pode usar o botão de desligar. Ou, conforme a Maria Rita Kehl (e podem contar com meu grito aí), a gente pode se reunir com faixas, cartazes e trios elétricos ali no gramado em frente ao Congresso. Ou pode ameaçar votar na oposição. Ou, sei lá, tirar a roupa atrás de um desses repórteres que entram ao vivo. Uma coisa não exclui a outra, ao contrário, elas se reforçam. Antes, uma manifestação dessas, em favor da qualidade na tevê, até podia parecer ingenuidade ou maluquice. Hoje, é capaz de merecer até aquele bordão do Bóris: "Isto é uma vergonha!" E não duvide: a briga pelo Ibope anda tão encarniçada que, se o evento render boas imagens, é capaz de ser manchete do Jornal Nacional. Quem não arrisca, segundo Torquato Neto, não pode berrar. Ou, como diriam os estudantes franceses de 68, nas barricadas da Sorbonne: "Seja realista, exija o impossível".

Pois sejamos.

(*) Jornalista, pesquisador, professor de Telejornalismo, diretor do Centro de Produção de Cinema e Televisão da Universidade de Brasília. Este artigo é parte do projeto acadêmico “Telejornalismo em Close”, coluna semanal de análise de mídia distribuída por e-mail. Pedidos para <upj@persocom.com.br>