Wednesday, 09 de October de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1308

Televisão e poder no Brasil

CORONELISMO ELETRÔNICO
(*)

Paulo José Cunha (**)

A televisão brasileira nasceu há 50 anos como parte de um projeto de poder, sintetizado nas palavras "proféticas" de Assis Chateaubriand, ao comentar, com seus assessores, no retorno ao Brasil, em 1947, após visita aos estúdios da NBC, nos Estados Unidos: "Os nossos inimigos que se preparem: se só com rádios e jornais os Associados já tiram o sono deles, imaginem quando tivermos na mão um instrumento mágico como a televisão." Três anos depois, com a inauguração da TV Tupi Difusora de São Paulo, Chateaubriand deflagrava um processo que só iria consolidar a televisão, cada vez mais até os dias de hoje, como mecanismo indissociável do aparelho do estado, embora com as raízes firmemente fincadas na iniciativa privada. A percepção do poder do "instrumento mágico" vem de longe. Chateaubriand soube exercê-lo Essa percepção é evidente na configuração atual da concentração da chamada "indústria da comunicação" no Brasil nas mãos de grupos familiares e/ou da elite política. Todos querem sua fatia nesse bolo porque sabem que deter ou não uma concessão de televisão significa estar mais próximo ou mais distante do exercício do poder. A expressão "coronelismo eletrônico" já pode ser usada sem as aspas. É fato corriqueiro, basta olhar em torno.

Conquanto o fenômeno não seja exclusividade tupiniquim, o professor Venício Artur de Lima, que sistemática e persistentemente vem analisando a evolução desse quadro, identifica no Brasil a existência de um "ambiente historicamente acolhedor" para a concentração da propriedade dos meios de comunicação. Com certeza, ao se referir à história, o professor observa as transformações políticas sofridas pelo país, particularmente a partir de 1969, quando as lideranças militares perceberam a necessidade de um mecanismo capaz de promover e assegurar a integração nacional, uma de suas obsessões. O projeto de uma rede de televisão sob o comando de um jornalista-empresário de confiança do regime, que havia oferecido apoio de primeira hora à nova ordem, caía como uma luva. A existência das condições propiciadas pela expansão e modernização dos serviços de telecomunicações através da implantação de moderna rede de microondas, projeto gerenciado pela recém-criada EMBRATEL e pelo Ministério das Comunicações forneceu o suporte tecnológico. E assim surgia a Rede Globo de Televisão, sob as bênçãos do novo regime, dotada de todos os requisitos de confiança que se exigia de uma emissora que iria cumprir o papel de fiel depositária da ideologia oficial. Nas palavras do seu diretor-presidente, estava definida a vocação integracionista da nova rede, embalada pelo apoio do governo militar: "Procuramos fazer com que ela seja, de fato, um poderoso instrumento de consolidação da unidade nacional. Atingindo todo o território nacional, acredito ser evidente a contribuição da Rede Globo para a intensificação da difusão e do intercâmbio daqueles conceitos e dados de natureza cultural, social e moral ? sem falar na informação pura e simples ? que constituem a base do desenvolvimento nacional em todos os campos e em todos os níveis".

Nestes 50 anos de televisão, a decadência do "império associado" e a ascendência e hegemonia do "império global", operou uma transformação que atingiu apenas o formato do exercício do poder, não sua essência. Se, ao tempo de Chateaubriand, o poder do veículo era utilizado de forma direta, ostensiva e solitária pelo "Grande Capitão", com o emprego de procedimentos intimidatórios e sem pejo na destinação do espaço editorial para a consecução de objetivos empresariais e pessoais, o exercício desse poder iria se sofisticar pelo uso de métodos mais sutis e dissimulados (mas nem por isso menos efetivos) pela família Marinho à frente da terceira maior rede de televisão do planeta para garantir seus privilégios e assim assegurar a expansão do império.

O professor Venício Artur de Lima cita &qquot;o poder de longo prazo que os mídia têm na construção da realidade através da representação que fazem dos diferentes aspectos da vida humana". Quando das comemorações dos 30 anos do Jornal Nacional, da Rede Globo, lembrou-se ter sido o JN o primeiro telejornal em rede no Brasil, surgido em 1969, o ano mais duro da repressão política da ditadura militar, e de ter sido provavelmente a principal matriz formadora/informadora da opinião pública ao longo do período revolucionário. Na ocasião, vários analistas, como o professor licenciado Gabriel Priolli, da PUC-SP, lembraram que "as realizações dos governos militares (ponte Rio-Niterói, hidrelétrica de Itaipu, rodovia Transamazônica etc.) eram rotineiramente apresentadas em tom épico, laudatório, de redenção nacional do subdesenvolvimento". O Jornal Nacional estreou noticiando a melhoria do estado de saúde do general Costa e Silva ? "está melhor e se alimentando bem". Só que uma junta militar, naquele momento, já ocupava o poder e Costa e Silva morreria três meses depois. Estava definido o tom. Daí em diante, o Jornal Nacional protagonizou episódios que, por si mesmos, denunciam, ora a ocultação de notícias inconvenientes ao regime (sonegação de informações sobre a campanha das Diretas já em 84), ora a intromissão da Rede Globo na própria essência dos fatos (acusação de participar da tentativa de fraude na apuração dos votos que deram vitória a Leonel Brizola na disputa pelo governo do Rio de Janeiro em 1982, além da famosa edição do debate Collor-Lula em 89). Em 1983, Carlos Eduardo Lins da Silva, em seu "Muito Além do Jardim Botânico", escrevia: "O regime sabe que sua imagem depende muito do que é dito e mostrado ali e a Rede Globo sabe que deve muitos favores a este regime, que continua no poder, apesar de bem mais fraco do que há algumas décadas. As críticas que o sr. Roberto Marinho recebe ao final de cada edição do JN são, não raramente, do próprio Presidente da República e com freqüência de ministros de Estado".

Embora tenha dado a maior contribuição da história para a modernização do telejornalismo brasileiro do ponto de vista técnico e visual, o Jornal Nacional foi o porta-voz oficioso do regime militar e, na transição para a retomada das franquias democráticas, continuou durante muito tempo buscando atuação afinada com os interesses do Palácio do Planalto.

O poder das famílias

Atualmente, a propriedade da televisão de sinal aberto no Brasil está nas mãos de alguns grupos familiares, entre as quais se destacam as famílias Marinho (Globo), Sirotsky (RBS), Saad (Bandeirantes), Abravanel (SBT), Daou (TV Amazonas) e Câmara (TV Anhangüera). A atual legislação proíbe "o exercício da função de diretor ou gerente de empresa concessionária de rádio ou televisão a quem esteja no gozo de imunidade parlamentar ou de foro especial". Embora alguns especialistas como o professor Laurindo Leal Filho, da Escola de Comunicação e Artes da Universidade de São Paulo, considerem a legislação ultrapassada, mais importante, a nosso juízo, é lembrar que ela nunca foi cumprida. Um levantamento realizado em 1995 indicava que, "das 302 emissoras comerciais de TV existentes no país, 94 pertencem a políticos ou ex-políticos; dos 594 parlamentares, 130 têm uma concessão de rádio ou TV ou uma combinação das duas" (Globalização e Política de Comunicações no Brasil, Venício Artur de Lima, Contato, ano 1, n. 1). O jornal Correio Braziliense (Coronéis da TV, 20/7/97) chegou a estimar que "um em cada cinco parlamentares federais controla, diretamente ou por meio de parentes ou testas-de-ferro, estações de rádio e televisão. Muitos desses deputados e senadores já foram ou são acusados de usá-las para promover a sua imagem pessoal". A propriedade desses canais, em muitos casos, define quem tem ou quem não tem poder político no Brasil. Dono de repetidoras da Bandeirantes e da Rede TV em Cuiabá, o senador Júlio Campos revelou ao Correio Braziliense que chega a pagar para ter um canal de comunicação direta com o eleitor. "Dá no máximo para empatar. Mas, mesmo sem ganhar dinheiro, essa é uma arma que você precisa ter para se defender."

A partir de 1990, um novo ator passou a integrar o elenco de proprietários da televisão brasileira e a fazer parte do clube dos controladores da mídia televisiva: a Igreja Universal do Reino de Deus adquiriu por 45 milhões de dólares uma das mais tradicionais redes de televisão do Brasil ? a Record. O revide da Igreja Católica veio com a formação da Rede Vida, que soma hoje mais de três centenas de retransmissoras espalhadas pelo país. O crescimento vertiginoso que as duas redes vêm tendo desde então ? seguida de uma ponderável representação parlamentar organizada e ativa ? revela a importância do domínio de setor tão estratégico do ramo da comunicação audiovisual. E não estamos nos referindo às redes de emissoras de rádio dominadas por uma programação calcada na pregação religiosa, que hoje comparecem com fatia das mais expressivas da audiência em todos os estados brasileiros. É só ligar o rádio e correr o dial para conferir. O próprio Congresso Nacional, atento ao potencial embutido no veículo, integrou-se ao circo colocando no ar as tevês da Câmara e do Senado.

O novo mandarinato

Para o diretor de cinema Oliver Stone, "o poder de controlar o fluxo de informação é o poder de controlar a forma como o povo pensa". O imaginário brasileiro das últimas décadas vem sendo ampliado consideravelmente com a expansão da oferta de opções audiovisuais. Resta, entretanto, verificar até que ponto e de que forma a hegemonia de um conglomerado sólido como é o caso das Organizações Globo tem participado da construção desse imaginário. Mais do que isto, é fundamental observar que os espaços para a regionalização da produção (o que equivale a falar sobre a necessária disseminação da fantástica diversidade cultural brasileira), vêm sendo reduzidos a cada dia em proveito de uma discutível linearização dos conteúdos em direção à malfadada formação de um pensamento uniforme. A estrutura de poder das grandes redes, organizada sob o comando de uma instituição que funciona ostensivamente como braço das Organizações Globo ? a Abert ? contribui de forma sistemática para evitar a emergência de uma política de descompressão capaz de permitir a regionalização. A explicação reside na relutância deliberada em abrir mão de fatia ponderável do controle que hoje exercem, perigosa, sob todos os ângulos da análise, aos seus propósitos oligopolísticos. A regionalização da produção, prevista na Constituição de 88, permanece letra morta e não há qualquer perspectiva de entrar efetivamente em vigor.

Poderia vir inserida numa futura Lei de Comunicação Eletrônica de Massas, delineada pelo falecido ministro Sérgio Motta. Reza a lenda que já se encontra em sua sexta versão sem sair de alguma gaveta do Ministério das Comunicações. Para o professor Murilo César Ramos ("Comunicação é Poder", Carta Capital, 16/2/2000), essa nova legislação poderia partir "de uma revisão do Capítulo da Comunicação Social da Constituição à luz das novas tecnologias digitais". Igualmente e sob os mesmos argumentos, poder-se-ia mencionar a tão cobrada e nunca efetivada regulamentação do Conselho de Comunicação Social, criado pela Constituição de 88, outro esqueleto que permanece convenientemente esquecido em algum armário do Palácio do Planalto.

Em síntese, atualmente, o que se verifica é que as grandes redes e os conglomerados de comunicação do país, sob controle de famílias e elites políticas, com os ventos da abertura passaram a prescindir do apoio incondicional ao governo para garantir sua manutenção e expansão. As grandes redes, movidas pela busca da audiência, descobriram que a redemocratização redefiniu o perfil do telespectador-consumidor, para quem a liberdade de expressão passou a ter importância substancial. Em outras palavras, jornalismo isento vende. E vende mais do que alinhamento automático aos detentores do poder. Uma pena que essa constatação venha sendo interpretada tão-somente como permissão para a abordagem de conteúdos voltados ao comercialismo ou exploração das mazelas sociais.

Ao mesmo tempo, o fortalecimento das grandes redes inverteu de tal maneira os papéis que, hoje, o poder central é refém do poder do mandarinato exercido pelos dirigentes das grandes redes. O "beija-mão" dos postulantes aos altos cargos em visitas que se tornaram obrigatórias à mansão do Cosme Velho, onde reside Dr. Roberto Marinho, é um dos sinais mais evidentes desta troca de sinal. O reconhecimento do poder da televisão é também evidenciado pela desenvoltura na distribuição das concessões de canais como moeda política. Um levantamento feito à época, revelou que os cinco anos de mandato ao presidente José Sarney custaram a distribuição para parlamentares de quase 2.000 concessões de rádio e tevê. Sem falar na absoluta falta de qualquer critério na renovação pelo Congresso das atuais concessões, sempre feitas através votações simbólicas ou de ritos sumários.

Cabe à sociedade organizada a tarefa de lembrar e fazer valer junto às instâncias de decisão o conceito original dos veículos audiovisuais eletrônicos como concessionários privados autorizados para uso de um serviço público com funções sociais muito bem definidas pela Constituição. Sem perder de vista que o redirecionamento desses veículos para o exercício de seu papel tem a ver com o fato de que a mídia, especialmente a televisiva, assume responsabilidade cada vez maior na disseminação do conhecimento. E que a educação é cada vez mais uma atividade que se distancia da sala de aula e se aproxima do dedo que aperta o botão do televisor ou movimenta o mouse do computador para acessar um site da internet.

(*) Capítulo do livro Imprensa e poder, da editora da UnB, organizado pelo professor Luiz Gonzaga Mota, que acaba de chegar às livrarias. Vão perceber que o texto foi escrito antes do racha da Abert e das tratativas para a aprovação do Conselho de Comunicação Social. Nem por isso o quadro de concentração dos meios em mãos de poucas famílias (e do poder político que exercem) se alterou. O tempo passa, a Lusitana roda e tudo permanece igual…

(*) Jornalista, pesquisador, professor de Telejornalismo, diretor do Centro de Produção de Cinema e Televisão da Universidade de Brasília. Este artigo é parte do projeto acadêmico "Telejornalismo em Close", coluna semanal de análise de mídia distribuída por e-mail. Pedidos para <pjcunha@unb.br>