Sunday, 28 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1285

Tempos de crise, tempos de sinais

FERRAZ DE VASCONCELOS

Mozahir Salomão (*)

Quando o imaginário popular ganha status de notícia e o jornalismo, de alguma maneira, se alimenta e retroalimenta do apelo ao místico e à transcendência chã, a comunicação midiática entra em perigoso terreno. Da desinformação do receptor e de sérios desvios éticos.

Como repórter da então Rádio Globo lembro-me de pautas que o repórter até pode achar esdrúxulas, mas acaba fazendo, mesmo porque está “todo mundo fazendo”. Fui, prefiro dizer mandaram-me, a Venda Nova (região norte de Belo Horizonte) atrás do Capeta do Vilarinho ? que segundo testemunhas era o diabo em pessoa que aparecia nos bailes da Quadra do Vilarinho… casas onde roupas se incendiavam espontaneamente. Teve também o Opala preto que rondava escolas raptando crianças que seriam mortas e teriam órgãos retirados para serem enviados para o exterior. Fora os boatos sobre pessoas de notoriedade pública, que “morreram, mas ninguém pode(?) falar”. Todos esses episódios, com certeza, se deram em momentos distintos de crise econômica, política, social, institucional etc. ? historicamente não tão incomuns em países semiperiféricos como o Brasil. De um lado, parece funcionar desse jeito: está ruim, mas pode piorar, e agora com eventos que escapam ao nosso entendimento. Por outro lado, pode significar a busca de alento, de esperança.

Os motivos que levam ao surgimento de episódios como o que muita gente quer que seja a imagem de uma santa na janela de uma casa em Ferraz de Vasconcelos (SP) acabam não sendo muito diferentes. É a busca pela população de sinais, talvez mesmo algum tipo de resposta de quem vive e sofre com uma crise geral que se aprofunda. Deve ser o desejo de sinais positivos, de que a vida pode melhorar. Expressão da sensação de que se no plano da realidade melhorias não se anunciam, a luz pode vir de outro lugar. Se o normal já ultrapassa as raias do absurdo, o paranormal talvez não seja tão incrível assim. Em poucas semanas, pelo menos em três cidades, silhuetas de Nossa Senhora apareceram em janelas e mesmo numa lona.

O que importa, mesmo?

No caso da santa na janela em Ferraz de Vasconcelos, o comportamento da mídia ficou numa sucessão pendular entre o absurdo (quase criminoso) e a cobertura correta. É certo que o jornalismo não pode desconhecer que uma multidão se reúna na frente de uma casa para testemunhar uma aparição. Houve telejornais que fizeram isso com correção, salientando que tudo poderia não passar do efeito de produtos químicos sobre o vidro. Mas, vá lá, registre-se a fé das multidões. Pior é quando a cobertura opta por “criar clima”, registrar a essência da fé e acaba apelando por construir uma notícia nada informativa, acrítica e desrespeitosa com o público.

Fora do jornalismo, o assunto foi tratado de maneira distinta nas mesmas emissoras. A sombra na janela foi abordada como evento de fé, de emoção… O desespero pela audiência dominical levou alguns apresentadores a promoverem cenas constrangedoras de emotividade produzida, encenada.

A abordagem e a cobertura da mídia de acontecimentos como a santa de Ferraz de Vasconcelos oportuniza reflexões importantes sobre como ainda a imprensa brasileira se ressente de padrões estruturais sobre a qualidade da informação, critérios de noticiabilidade e a forma de tratamento de assuntos que emergem de nossas mazelas sociais e culturais. Revela ainda que o caráter fragmentário do jornalismo fica sempre mais exposto quando dedicamos nosso texto a exclusivamente “mostrar o clima” do acontecimento. Por fim, as contradições morais e éticas que permeiam as noções, as perspectivas e as intenções dos departamentos de jornalismo e de áreas como programação e entretenimento tratando dos mesmos assuntos. Numa das matérias de um telejornal sobre a tal santa, o repórter não titubeia e encerra com uma pérola, afirmando que não importa se a imagem é verdadeira, o povo acredita nela e aproveita para demonstrar sua fé. Fiquei me perguntando: o que importa mesmo, em tudo isso?

(*) Coordenador do Curso de Jornalismo da PUC Minas