Sunday, 28 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1285

Um acerto de contas

NOTÍCIAS POPULARES
(*)

Marcelo Coelho (**)

Basta falar no Notícias Populares ? ou NP, para os íntimos ? que as pessoas começam a sorrir. Mesmo quem nunca abriu o jornal (precisava abrir?) ainda se lembra de casos como o do bebê-diabo, de algumas manchetes antológicas, como broxa torra o pênis na tomada, ou das suas orgiásticas edições de Carnaval.

Esse sorriso paira em quase todas as páginas de Nada mais que a verdade, e é fácil imaginar o quanto Celso de Campos Jr., Denis Moreira, Giancarlo Lepiani e Maik Rene Lima se divertiram ao escrevê-lo. Mas, se tantas vezes o NP transformou tragédias reais em motivo de risada, este livro faz o percurso inverso. Todo o folclore em torno do jornal, que os autores recuperam generosamente, vai aos poucos se cobrindo de melancolia.

O Notícias Populares foi fechado em 19 de janeiro de 2001, depois de quase quatro décadas de crimes, sexo, sobressaltos e desatinos. Morte por estrangulamento ? cujas circunstâncias, nada simples, os autores expõem com clareza e inconformismo.

Publicado pela empresa Folha da Manhã, o Notícias Populares representou um tipo de jornalismo quase que diametralmente oposto ao exercido pela Folha de S. Paulo. No começo da década de 90, acompanhei os esforços para compatibilizar o estilo do NP com os padrões de credibilidade e relevância pública que, havia tempo, a Folha conseguira atingir.

Mas é como se o abismo entre as duas publicações se alargasse cada vez mais. A audácia e a modernidade, valores cruciais para o desenvolvimento da Folha, não eram suficientes para funcionar como parâmetros unívocos num jornal como o Notícias Populares: tanto quanto romper com o moralismo e o preconceito, podiam desembestar em abjeção.

Ao mesmo tempo, a Folha sempre soube equilibrar-se entre dois pólos estratégicos: voltou-se simultaneamente para o "público" e para o "mercado". Ou seja, tratou de corresponder tanto ao que cada um de nós tem de consumidor, quanto ao que cada um de nós tem de cidadão.

Já o leitor do Notícias Populares pertencia à larga massa dos brasileiros que são quase-consumidores, e quase-cidadãos. O lado do cidadão, enquanto detentor de direitos, no NP se traduzia em outra figura: a da vítima ? fosse ela o inocente fuzilado, o policial morto em serviço, o ladrão torturado pela polícia, o trabalhador atingido pelos planos econômicos, o aposentado desservido pelo governo. O lado do consumidor, no NP, transmutava-se também em outra coisa: o voyeur, atendido pelas fotos de belas mulheres, pelas notícias bizarras, pelos escândalos e fofocas de TV.

Valores defendidos pela Folha, como o fortalecimento da sociedade civil, o anti-autoritarismo, a transparência no governo, a privatização, a diminuição das desigualdades sociais, têm correspondência clara com os conceitos de "público" e de "mercado". Creio que, desse modo, os excessos de "esquerdismo" ou de "direitismo", de leveza e de sisudez, de privatismo e de petismo como que se corrigem mutuamente a cada edição do jornal.

No Notícias Populares durante muito tempo vigoraram outros mecanismos de autocorreção; moralismo e sexo conviviam, assim, com o conservadorismo e a "defesa do trabalhador". A cena contada neste livro, de Jean Mellé submetendo a manchete do jornal à aprovação do contínuo, talvez simbolize o tipo de "auto-regulação" vigente nos tempos áureos do NP: uma auto-regulação empírica, assim como a vendagem nas bancas no dia seguinte, em oposição à auto-regulação ideológica, teórica e formalizada em manual, em vigor na Folha.

Nos anos 90, uma nova geração de jornalistas, como ocorrera uma década antes na própria Folha, assumia o posto que fora de Jean Mellé e de Ebrahim Ramadan. Escaldados pelos anos da transição democrática e pelo sucesso do Projeto Folha, é como se no NP aqueles jovens saídos do movimento estudantil e da militância de esquerda do final da década de 70 encontrassem, numa forma agônica e lancinante, o mundo do "trabalhador", a violência da "repressão", o ideal "libertário" e a prática "radical", agora destituídos de sentido, de doutrina, de disciplina partidária; o respaldo das massas agora se traduzia nos números da tiragem; instaurava-se um radicalismo de mercado, por assim dizer.

O que estava longe de ser uma traição, note-se, ao modelo de Jean Mellé, igualmente submisso à vendagem de cada dia; mas o antigo NP era curiosamente coerente do ponto de vista político, já que um projeto de jornalismo popular anticomunista tinha apenas de oferecer ao povo "aquilo que o povo quer", ou seja, zero de política e máximo de escape, desde que com drama.

Difícil avaliar se as mudanças dos anos 90 abreviaram ou prolongaram a vida do jornal. Certamente, não conduziram ao que se pretendia. Mas representaram uma renovação muito grande na linguagem do NP, arregaçando o que havia de artesanal no modelo anterior. Ao mesmo tempo em que acentuavam até um point of no return o sensacionalismo e a apelação, conquistavam um leitorado jovem, debochado, nada sentimental, que imagino tinha pouco em comum com o leitor dos velhos tempos.

Com vinte e poucos anos de idade, Celso de Campos Jr., Denis Moreira, Giancarlo Lepiani e Maik Rene Lima pertencem a uma terceira geração, a desses leitores jovens que o NP dos anos 90 conquistou. Quando eu tinha vinte anos, aí por 1979 ou 1980, certamente já achava graça no NP, mas não estaria disposto a desconsiderar a função alienante e despolitizadora que o jornal exercia.

Mas como desprezar o NP? Impossível não gostar dele: é o id, tumultuário e desregrado, de todo jornalista que se acha responsável e prudente.

É muito interessante para mim ver como essa nova geração encara o NP. O sorriso com que os autores deste livro acolhem as realizações de Jean Mellé e de Ebrahim Ramadan está longe de ser acrítico; vêem, entretanto, como folclore, como sinal de um jornalismo romântico e ingenuamente absurdo o que seria simplesmente impensável em qualquer redação hoje em dia. Invencionices como as histórias da Loira Fantasma, do Vampiro de Osasco, do bebê-diabo são lembradas neste livro com um misto de humor e consternação. O texto é quase reverente, e nessa quase-reverência está toda a sua ironia.

O tom se torna bem mais amargo à medida que o livro se aproxima do fim. O envolvimento, o afeto dos autores com relação ao Notícias Populares não perdoa a direção da empresa que o fechou tão bruscamente, ainda que fiquem claras as razões dessa decisão.

Celso, Denis, Giancarlo e Maik vêem o Notícias Populares como um jornal cult ? o que ele já era, creio, antes mesmo que a palavra fosse inventada. Mas não só isso: no que tinha de precário, de folclórico, e também de cruel e condenável, parece estar o registro de uma época menos metódica, mais incorreta, do jornalismo. Talvez eu desconheça o quanto uma pessoa de vinte anos, hoje, está confrontada com um mundo de regras muito mais estritas e com uma vida profissional muito mais competitiva do que acontecia há duas ou mais décadas. O gosto pelo trash, pelo humor, pelo fantasioso, assim como um misto de pragmatismo e candura, de desencanto e sentimentalismo, de anticapitalismo e desideologização dão o tom deste livro. É um tom afetuoso, mesmo quando quer ser contundente.

O pessoal da Folha, que corresponde ao meu lado nessa história, é bastante criticado; claro que não me sinto bem com isso. Mas sabemos que tudo tem dois lados, como diria o Voltaire de Souza, que deixa aos autores do livro um grande abraço.

(*) Prefácio o livro Nada Mais que a Verdade; título da redação do OI

(**) Jornalista e membro do Conselho Editorial da Folha de S. Paulo