Monday, 29 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1285

Um déspota na pele de colono

MÍDIA ESPORTIVA

Deonísio da Silva (*)

Para a Copa de 2002, temos uma unanimidade contrariada pelo técnico. Mas não é qualquer unanimidade, não. Mais do que nacional, é unanimidade mundial. No dia que o técnico da seleção anunciou os 23 guerreiros que vão nos representar em campos asiáticos, o nome de Romário apareceu mais que todos os convocados e mais do que o técnico. Por que Romário, um dos maiores jogadores do mundo e o maior goleador brasileiro de todos os tempos, perdendo apenas para Pelé, não fora convocado?

Felipão está se comportando como um velho e bom inquisidor. Suas contradições são evidentes. Durante muito tempo enganou a imprensa dizendo que não convocava Romário por motivos técnicos e táticos. Neste caso, por que o convocara uma vez para enfrentar o Uruguai e por que insistira em convocá-lo segunda vez para a Copa América?

Demorou, mas Felipão abriu o jogo. Não suportou a recusa de Romário quando o craque não quis ir à Colômbia. É uma pena que nosso técnico tenha se comportado assim, mas só porque confessou é que podemos apontar a fragilidade de seu argumento. Ele armou errado o time, perdemos para seleções fraquinhas, aprendeu com os erros e apresentou uma seleção consistente no jogo contra Portugal.

Ele pode errar muitas vezes, mas Romário, não. Nem dentro e nem fora do campo. Aliás, dentro ele é, mais que gênio, oxigênio. E fora dali sua vida privada não nos interessa e nem ele está em julgamento toda hora. Aliás, não pode nem errar e muito menos, humilhado e desesperado, solicitar sua convocação pela mídia, mostrando arrependimento de alguma suposta falta. Não, tudo isso não bastou a Felipão. Lista após lista, ele tratou de humilhar o maior goleador brasileiro atual, dizendo, já às vésperas da convocação, que o time estava pronto e que só estava em dúvida sobre um nome, levando o Brasil inteiro a pensar que o tal nome só poderia ser Romário.

Felipão destoa da psicologia dos habitantes do Brasil meridional, marcada por conversa clara e até certa rudeza na explicitação de suas discordâncias. Está ganhando a simpatia dos jornalistas por certas grosserias proferidas em tom colonial, cujos contornos podem ser definidos pela zona de colonização italiana no Sul. Em que consiste a condição para tantas concessões da mídia? Basicamente, um complexo de superioridade dos jornalistas envolvidos na arapuca. O técnico vai dizendo as coisas mais estapafúrdias com aquele ar de falso colono inculto e vai engrupindo a quase todos os jornalistas especializados. (O verbo engrupir surgiu quando ganhamos nossa primeira Copa, em 1958!)

Ao revelar os critérios pelos quais não convocou Romário, Felipão deixou implicitamente entendido que craques como Garrincha e Didi jamais teriam sido convocados se ele fosse o técnico. E a imprensa está perdoando demais um treinador médio, de currículo magro para a função no país do futebol, que errou e erra muito em seu ofício. Agradecido? Não. Em compensação, ele não convoca nosso maior goleador e pune o talento.

Não se pode compreender a excessiva indulgência da mídia nacional com esse técnico.

(*) Escritor e professor da UFSCarl; seu romance mais recente é Os Guerreiros do Campo