Monday, 02 de December de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1316

Vinicius Torres Freire

MÁRIO COVAS

"Covas", copyright Folha de S. Paulo, 18/01/01

"Pessoas que se movimentam em cadeiras de rodas ou doentes de câncer, para citar só dois reveses impressionantes da vida, costumam ser vítimas de uma comiseração que ou suspende inteiramente o juízo ou o distorce em preconceito. Nada que o doente faça pode ser objeto de crítica ou, então, o doente já não seria mais capaz de fazer nada apenas porque é doente.

No caso do indivíduo comum, tal condescendência reduz em algo a sua pessoa, o seu caráter de adulto. De pronto se espera menos dele, há uma prontidão para ?perdoar?, relevar tacitamente suas falhas ?por causa da dificuldade?.

Quando se trata de uma figura pública, numa posição de poder, da lendária teimosia de Mário Covas, com as suas conhecidas energia e capacidade de impressionar e mesmo atemorizar seus assistentes, o caso é ainda pior. A reverência dos subordinados se soma à piedade de modo a criar uma bolha moral em torno do doente poderoso, isso quando ele não adquire santidade automática.

Pouca gente tem informação precisa a respeito do desenvolvimento da doença de Covas. Pode bem ser que ele esteja passando por um fase mais aguda e incapacitante de seu mal, e que em breve, e por algum tempo, ele seria apenas um governador com uma dura enfermidade, mas um ainda governador. Pode ser que não. Há especialistas independentes que dizem que não.

Seja como for, e por dura que é a situação para os íntimos de Mário Covas, não se pode colocar o governador na bolha moral -em outros casos na história do país houve até canonizações em vida de políticos doentes.

Covas trata sua condição como questão pública, ainda que a sua maneira turbulenta. Jornalistas que noticiam o desenrolar do seu caso não são, pois, urubus, como têm sido chamados; cidadãos que discutem o problema legal de um eventual impedimento do governador também não. A questão é pública: não se trata de Mário, mas do governador."

"Respeito com Covas", copyright O Globo, 19/01/01

"?Este é um senhor governo, fique sabendo?, disse-me Antonio Angarita, secretário de Governo de Mário Covas, que foi presidente da Vasp no governo Montoro. ?Melhor que o do Montoro, porque mexeu mais fundo nas estruturas administrativas?, concluiu. Covas, modesto, declara que o governo Montoro foi um governo da obstinação. ?O meu é o de um obstinado. Só que ninguém sabe disso?, diz.

É porque ninguém tem ainda uma visão de conjunto do que tem sido feito ao longo desses seis anos que Covas me convidou a passar uns dias com ele. O pretexto foram gravações autobiográficas, cuja condução, segundo a família, seria eu o mais indicado para fazer, por ser um de seus mais antigos amigos jornalistas e por termos compartilhado as tensas lutas que precederam o AI-5, há 32 anos. Mas, na verdade, o que ele queria era um testemunho sobre o trabalho realizado por sua equipe, o que o faz merecedor de respeito e gratidão.

Daí que começou por me mostrar o trampolim, sem o qual qualquer salto seria impossível: os dados do ajuste fiscal que conduziu pessoalmente, junto com Yoshiaki Nakano, seu secretário da Fazenda. Na cerimônia de despedida de Nakano, quarta-feira, disse que haviam colocado em prática o que mais tarde ganhou o pomposo nome de Lei de Responsabilidade Fiscal: não gastar mais do que se arrecada. Todas as tardes conferia as planilhas da arrecadação e da despesa, que Nakano lhe passava por fax, seguindo a execução orçamentária dia a dia. Era um trabalho de precisão, que não tolerava surpresas. Por isso ficou tão furioso com a Lei Kandir, que o presidente Fernando Henrique lhe garantiu ser um jogo de soma zero, no qual nenhum estado seria prejudicado.

Nos primeiros dois anos de aplicação da lei, São Paulo perdeu R$ 1,5 bilhão. Quando o governo federal começou a devolver as perdas aos estados, São Paulo recebeu bem menos do que perdera, diz Covas, que se sente enganado. Este ano o governo paulista poderá investir 230% a mais que em 1997 e 130% a mais que em 1999. O aumento da arrecadação não foi devido a aumentos de impostos. Ao contrário: diminuiu-se a incidência do ICMS em centenas de produtos. O crescimento econômico do estado, calculado em modestos 3,5% para 2001, é o principal responsável, juntamente com o corte de gastos devido a inovações administrativas, como a colocação na internet das informações sobre o montante da contribuição de cada contribuinte, o que direciona a fiscalização, e a implantação da Bolsa Eletrônica de Compras. Por este sistema, o estado declara qual o valor máximo que está disposto a pagar por cada item que compra livremente até R$ 8 mil e, pelo sistema de carta-convite, até R$ 80 mil. Prazo de pagamento: 30 dias.

A partir dessa declaração começa um leilão reverso, no qual os fornecedores dizem quanto menos que o preço máximo estão dispostos a aceitar. Ganha quem oferecer o menor preço. É o mesmo sistema tradicionalmente usado nas lotas de peixe de Portugal, só que eletrônico, controlável e imune à corrupção. Nakano calcula a economia desse método em R$ 120 milhões por ano, quando os remédios comprados pelos hospitais forem licitados dessa forma.

Não tenho provas documentais, mas tenho a intuição de que a criação da USP e, mais tarde, da Fapesp, fundação de amparo à pesquisa, são produtos da derrota paulista na Revolução Constitucionalista de 1932. Depois da derrota, as elites paulistas decidiram que nunca mais perderiam uma guerra contra o resto do Brasil. Armando Salles de Oliveira não teria outra razão para criar uma universidade com tanto capricho e generosidade. Quanto à Fapesp, a sua criação foi incluída na Constituição estadual de 1947 por Caio Prado Júnior. Embora deputado pelo Partido Comunista, Caio era um lúcido membro da elite paulista. A lei que regulamentou a Fapesp foi iniciativa de dois outros membros da elite: o governador Carvalho Pinto e o seu secretário de Governo, Hélio Bicudo.

Atualmente, a Fapesp recebe 1% da arrecadação do estado, cerca de R$ 250 milhões este ano. Outros R$ 250 milhões entram no seu caixa, resultado de investimentos financeiros. Com esses recursos a fundação, cujos diretores têm mandatos de seis anos, pode apoiar o Programa Genoma. Constituiu-se um instituto virtual com 65 laboratórios, a Rede Onsa, conectados pela internet. Esta equipe conseguiu decifrar o genoma da Xyllela fastidiosa, bactéria que ataca as videiras.

Fastidiosa porque leva muito tempo para se desenvolver. Foi a primeira vez no mundo que se desenhou o DNA de uma bactéria que ataca vegetais. A descoberta ganhou uma capa na ?Nature?, a mais prestigiosa revista científica do mundo, e colocou o Brasil na fronteira de um ramo estratégico da ciência."

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