Saturday, 04 de May de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1286

Walter Ceneviva

GUGU FORA DO AR

“Censura a Gugu viola a Constituição”, copyright Folha de S. Paulo, 21/09/03

“A proibição imposta à transmissão do programa ?Domingo Legal?, do SBT, é claramente inconstitucional. Ofende o artigo 5? da Carta Magna, situado no título dedicado aos direitos e garantias fundamentais, cujo inciso IX afirma a liberdade de expressão da atividade artística, independentemente de censura ou licença. Choca-se de frente com o parágrafo 2? do artigo 220, que proíbe qualquer censura de natureza artística.

O apresentador do programa, Gugu Liberato, foi acusado de ter exibido quadro em que supostos criminosos faziam ameaças à vida de pessoas conhecidas.

O artigo 221 não justifica a proibição liminar. Relaciona princípios a serem atendidos pela produção e programação das emissoras, entre os quais o respeito aos valores éticos e sociais da pessoa e da família, mas a essência do texto constitucional está na proibição da censura.

A apresentação foi, ao que tudo indica, uma farsa lamentável e de mau gosto. Mas o bom e o mau gosto dos programas de auditório nem é o forte de tais apresentações nem é sujeito a verificações pela Justiça.

A liberdade de expressão é a regra, ofendida ainda mais gravemente porque a liminar não se aplica ao caso, mesmo em ação civil pública, ante a inexistência de qualquer dano ou inconveniente com a continuação normal do programa, independentemente do que seja resolvido pelo Tribunal Federal Regional da 3? Região.

Na decisão recente, do Supremo Tribunal Federal, contra um editor gaúcho, estava em jogo outra norma do artigo 5?, que proíbe todas as formas de discriminação e preconceito. Não se confunde com o caso do programa ?Domingo Legal?. Neste, o Ministério Público e o Judiciário só interferiram na disputa de audiência, de cuja órbita são claramente afastados pela Constituição. Se houve crime, a justiça estará na punição final dos culpados.”

 

“Gugu e o ?Domingo Ilegal?”, copyright Folha de S. Paulo, 21/09/03

“É um equívoco concentrar o tiroteio exclusivamente contra o apresentador Gugu Liberato por causa da entrevista fraudulenta de supostos integrantes do PCC, divulgada no ?Domingo Legal?. O escândalo é apenas consequência do ambiente de vale-tudo da televisão brasileira -a começar do SBT e de Silvio Santos-, reverente ao princípio da audiência a qualquer custo. Pode ser um caso extremo, fruto da irresponsabilidade do apresentador, mas, nem de longe, é isolado.

Não foi, aliás, Silvio Santos quem se divertiu, neste ano, inventando, em entrevista à imprensa, que estava doente, em estado terminal?

Imerso no escândalo, Gugu foi fuzilado de todos os lados. O Ministério das Comunicações, onde até há pouco tempo ele lutava por concessões de emissoras, abriu processo, acusando o programa de ?incitar atividades criminosas?.

Parlamentares exigiram ?punição exemplar?. Procuradores da República decidiram mover ação contra o apresentador: pediram indenização de R$ 1,5 milhão e suspensão por 30 dias do ?Domingo Legal?. A Promotoria de Justiça do Consumidor, de São Paulo, instaurou inquérito civil para saber até onde vai a responsabilidade de Gugu e de sua emissora.

O apresentador iria gravar anúncios para a Petrobras sobre responsabilidade social; a estatal, espertamente, pulou fora.

Mostrando-se arrependido, Gugu Liberato desfilou, na semana passada, em programas de televisão para tentar consertar o estrago da fraude. Inútil.

Pediu desculpas e apresentou-se como vítima, dizendo que não tinha analisado a entrevista antes de levá-la ao ar. É improvável, mas talvez, quem sabe, ele esteja mesmo contando a verdade. Quase ninguém, porém, acreditou nele. O fato de terem punido o autor da ?reportagem? foi interpretado menos como uma reparação e mais como a aplicação da regra de que a ?corda sempre arrebenta no lado mais fraco?.

E não se acreditou porque as pessoas tendem a achar, com justificadas razões, que a guerra pela audiência, na qual o crime é um dos assuntos mais explorados, comporta poucos limites.

Em vários países, mesmo em alguns ditos civilizados, como os Estados Unidos, a baixaria encontra lugar na mídia, inclusive na aristocrática Inglaterra. A diferença é que aqui está reinando em horário nobre.

A exploração da miséria, do sexo, do crime e da violência ganhou, há muito, o horário nobre, em geral mesclando ficção com realidade -química que, muitas vezes, produz belos romances, mas, frequentemente, desastres jornalísticos.

Expressa abertamente por produtores de televisão, a lógica que orienta esses programas é simples: as emissoras atendem ao gosto do freguês. E, na maior parte das vezes, o ?freguês? é inculto, suscetível ao sensacionalismo. Quem quer jogar o jogo tem de aceitar essa regra -senão fica de fora.

Como a televisão, salvo em alguns poucos programas, não colabora para a elevação da qualidade do espectador e como o nível de educação da maioria da população é baixo, estabelece-se um círculo vicioso.

Um dos problemas óbvios é que a televisão, apesar de ser uma concessão pública, não é obrigada a exibir uma cota mínima de programas educativos para tentar minimizar os efeitos desse círculo vicioso.

Quem realizou os melhores programas educativos brasileiros, alguns deles referências mundiais, está sem dinheiro. É esse o caso da TV Cultura. A crise passa a todos a mensagem de que investir em educação na TV não dá audiência e, portanto, não traz dinheiro.

Por trás do episódio Gugu-PCC, há um debate muito mais profundo do que a entrevista fraudada. A mídia, no geral, ainda não se percebe como um instrumento de formação, atendo-se à informação e ao entretenimento -e reflete nossa maior fragilidade, que é a lógica da ignorância que gera ignorância, a mesma que fez de um tipo como Gugu algoz e vítima de si próprio.

PS – Parece que Lula se salvou de mais um desastre mercadológico na área social. Técnicos independentes advertiram que o Fome Zero, lançado como foi lançado, rapidamente perderia a credibilidade. Esse novo cartão, que pretende unificar os programas sociais, corre o risco de já nascer manchado se não estiver integrado a programas estaduais e municipais, como técnicos sugerem há muito tempo. Tudo estava preparado para ser divulgado na sexta-feira, mas o próprio Lula assumiu o desgaste e suspendeu a comemoração, pedindo uma amarração melhor. A verdade é que o PT ainda está a dever, na área federal, alguma inovação nas políticas de combate à pobreza -e um programa unificado, capaz de articular os vários níveis de governo, pode ser conceitualmente um bom começo, desde que, é claro, seja bem administrado. Apenas misturar os programas federais, dando-lhes uma nova cara, beira a maquiagem.”

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“?Gugu sabia que era uma farsa?, garante ator”, copyright O Estado de S. Paulo, 20/09/03

“O apresentador Gugu Liberato não foi enganado. Ele sabia que a entrevista com falsos integrantes do Primeiro Comando da Capital (PCC) era uma farsa.

Durante a gravação, Gugu telefonou para Amilton Tadeu dos Santos, o Barney, e perguntou se tudo estava ?saindo conforme o esperado?. A revelação foi feita ontem por Antonio Rodrigues da Silva Filho, o Beta, um dos atores que fingiram ser do PCC na entrevista exibida pelo SBT no dia 7, no Domingo Legal.

O delegado Alberto Pereira Matheus Júnior, do Departamento de Investigações sobre o Crime Organizado (Deic), intimou o apresentador a depor na quinta-feira, às 13h30.

Além do depoimento de Beta, o Deic e o Ministério Público Estadual (MPE) ouviram ontem o ator de pegadinhas Carlinhos Borges. Beta disse que recebeu R$ 150,00. A produção do programa afirmou que ele gravaria uma pegadinha.

A ?entrevista? tinha roteiro de dez páginas e, caso o ator esquecesse de ameaçar alguém, cartazes atrás da câmera, mostrados pelo produtor Rogério Casagrande, lembrariam o texto ao contratado. ?Eram frases como: ?São uns vacilões?.? Os nomes das pessoas que deviam ser ameaçadas também estavam escritos.

O roteiro previa ainda ameaças ao governador de São Paulo, Geraldo Alckmin, mas esse trecho foi retirado da gravação exibida pelo SBT. Beta foi indiciado por apologia ao crime.

O ator Carlinhos Borges, que háaacute; quatro anos trabalha com pegadinhas, disse que Barney e o então chefe de reportagem do Domingo Legal, Wagner Mafezoli, o procuraram na quinta-feira anterior ao programa, oferecendo R$ 300,00 para que fizesse a gravação. Como ele se recusou, a oferta foi aumentada, primeiro para R$ 500,00 e depois para R$ 900,00. Borges disse ter sido ameaçado por Barney caso viesse a depor no Deic. ?Barney ameaçou três pessoas ouvidas no caso, por isso vamos pedir sua prisão preventiva no fim do inquérito?, afirmou o delegado.

Processo – Segundo nota divulgada na tarde de ontem pelo ministro das Comunicações, Miro Teixeira, na sexta-feira o ministério informará o andamento do processo instaurado ontem contra o SBT.”

“Escorregada de Gugu liga o alerta da ética”, copyright O Estado de S. Paulo, 21/09/03

“Em uma época bem recente, o telejornalismo namorava o show. É desse período o ?jornalismo-verdade?. Era um estilo em que o repórter entrava na água para falar de enchente, pedalava para reportar uma corrida ciclística, escalava para tratar de alpinismo, montava em touros para transmitir a emoção de rodeio, etc. Ou seja, o jornalista transformava-se em personagem de sua própria reportagem, transformada em show. Essa espécie de telejornalismo-show foi definhando e deu lugar à sobriedade.

A tendência hoje inverte-se. Os shows travestem-se de telejornalismo criando situações, às vezes, bem perigosas. É nessa casca de banana que Gugu Liberato escorregou feio no domingo e foi obrigado a cumprir uma via-crúcis por vários estúdios para explicar que era inocente do crime de ter montado a farsa com os dois homens que se diziam membros do PCC. No sofá de Hebe, o apresentador chegou às lágrimas ao falar do assunto. Em outros shows da TV, seu trabalho foi convencer apresentador e público de que não tinha conhecimento da ?reportagem? até jogá-la no ar e, portanto, não se sabia partícipe de uma fraude jornalística.

O assunto rendeu e rendeu. Alguns dos ameaçados pelos ?bandidos? deitaram e rolaram com a divulgação inesperada. Marcelo Rezende (Rede TV!) e José Luiz Datena (Bandeirantes), então, aproveitaram-se o mais que puderam da pisada no tomate do concorrente. Tiveram um aguçado senso de oportunidade para venderem-se como paladinos da justiça e, por isso, odiados pelos malfeitores.

A mídia impressa e eletrônica também entrou no assunto, mas a discussão não poderia ser mais desfocada. Tentou-se desmascarar o dono do Domingo Legal para comprovar que ele sabia sim da armação antes de colocar a ?reportagem? no ar. Que tinha enganado seu público vendendo gato por lebre.

E se os homens fossem realmente da temida organização criminosa? Gugu errou só porque não deu voz a criminosos reais para ameaçar de morte personalidades do ?bem?? Abrir câmeras e microfones para o crime organizado para exercer sua função não seria uma co-autoria?

Essas respostas têm de ser procuradas com advogados, promotores, juízes, etc. Mas é bem possível apontar as causas que levam programas de auditório a cometer deslizes graves como o do programa do SBT.

A primeira causa – e talvez a mais importante – é esses programas fingirem fazer jornalismo para dar credibilidade aos shows. Usam uma mão-de-obra não especializada que pouco conhece a ética, a responsabilidade e os limites da profissão de jornalista. No universo do mundo cão que assola a TV, qualquer um de microfone na mão é repórter, não importando a formação do elemento (para usar uma linguagem comum a esses shows). E não me venham dizer que Gugu Liberato é formado em jornalismo porque esse é um detalhe técnico e decididamente seu programa não é do ramo. Mas, na linha do há males que vêm para o bem, Gugu inadvertidamente até prestou um serviço à discussão dos limites da TV brasileira.

Ao exagerar na dose do ?show de jornalismo? (do qual uma penca de programas se alimenta diariamente) e se dar mal, Gugu provoca uma certa reflexão sobre a ética na TV. E alerta a sociedade brasileira para o caminho perigoso por que transitam esses programas que exploram o sensacionalismo para garantir o ibope de cada edição.”

“Quem se importa com a audiência?”, copyright Folha de S. Paulo, 21/09/03

“De qualquer lado que seja examinado, o episódio deflagrado pela ?entrevista? de Gugu Liberato com os dois homens apresentados como membros do PCC é de um cinismo que ultrapassa todas as medidas.

Isso, na verdade, para dizer o mínimo, uma vez que SBT e apresentador já receberam advertência por escrito do Ministério da Justiça e enfrentarão inquérito instaurado pela Promotoria de Defesa do Consumidor de São Paulo por dano moral.

Os desdobramentos do episódio, portanto, ainda estão longe de se esgotar. Mas, independentemente do que se prove e de que punição incida sobre emissora, programa e apresentador, essa prática de apresentar meias-verdades, quase-mentiras, armações mais ou menos descaradas pertence a um certo tipo de televisão que vem ganhando cada vez mais espaço.

No fundo, é uma exacerbação do princípio de tratar o espectador feito imbecil, de aproveitar da credibilidade de que a televisão goza -a imagem televisiva, mais ainda que a da fotografia ou do cinema, se impõe como prova da verdade- e, de claro, causar sensação não importa com o quê, de ganhar cada ponto de audiência à custa de qualquer coisa, o sangue, o suor, as lágrimas do público.

Ou simplesmente a cara de palhaço, que é que esses apresentadores e produtores vislumbram em mim, em você, no seu vizinho -em suma, na audiência.

Não bastasse a irresponsabilidade da entrevista em si, Gugu colocou a cereja no bolo da desfaçatez quando foi ?pedir desculpas? no programa da Hebe.

A fada-madrinha da TV brasileira recebeu o colega de braços abertos e seu jeito maternal deve ter contribuído para o clima de contrição -sem confissão real de culpa, notem bem, uma vez que esta ficou por conta do repórter prontamente afastado.

No sofá da Hebe, os olhos ficaram marejados, a voz da fada-madrinha da televisão brasileira ficou embargada -tudo isso para fazer eu, você, seu vizinho, ou seja, os bobos plantados diante da televisão acreditarmos que Gugu não estava ?buscando audiência? ao exibir homens encapuzados ameaçando matar outros apresentadores de TV.

É que Gugu, como se diz, tem a quem puxar. O caso tem ecos desagradáveis com outro episódio recente, que ficou conhecido como a ?pegadinha? de Silvio Santos. Faz pouco mais de dois meses que uma ?entrevista? concedida por Silvio repleta de histórias para boi dormir iniciou uma onda de boatos e especulações.

Se no caso do mestre e mentor, as consequências ficaram no plano do burlesco (pelo menos, até onde se sabe), talvez o tombo do aprendiz de feiticeiro seja maior. Mas quem não se importa com audiência não vai nem ligar, por exemplo, para a reclassificação etária para depois das 21h.”