Sunday, 28 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1285

Além da simples eliminação da concorrência

O texto de Fernão Lara Mesquita (‘A ameaça de ‘corporatização’ da mídia’), acessado em 6 de julho de 2004 [ver remissão abaixo] toca, efetivamente, nas razões centrais em que se esteia a necessidade de não se tratar a política referente ao setor midiático do mesmo modo que a política econômica em geral, especialmente no que tange à concentração: não chegando ao exagero do papel de neutralizador do poder político – algo que, a bem de ver, só seria possível na ausência de Estado, o que não é aceito nem mesmo pelos neoliberais de hoje –, o fato é que a mídia, bem ou mal, funciona como uma espécie de controle externo do exercício do poder, tanto estatal como privado. Se este controle é bem ou mal exercido, ou se há distorções, é outro debate.

Entretanto, na ausência de efetiva concorrência, o que se verifica? É o caso de dar a palavra ao autor do texto que ora se resenha:

‘As fusões e incorporações vêm matando jornais em ritmo alucinante, e reduzindo enormemente as fontes de informação ao alcance dos cidadãos. Em 1983, quando escreveu um livro sobre o encolhimento da imprensa independente no país, o reitor da Berkeley Graduate School of Journalism, Ben Bagdikian, mostrou que a grande massa dos americanos se informava com base em notícias produzidas e veiculadas por 50 companhias diferentes. Em 2004, na sétima revisão de seu livro, sobravam só cinco. A Viacom (CBS, Paramount Pictures, Simon & Schuster, Blockbuster, Infinity Radios, com faturamento de US$ 25 bi em 2002), a Disney (rede ABC de TV aberta e muito mais, com US$ 26 bi de faturamento), Time Warner (CNN, AOL etc.; US$ 42 bi de faturamento), a General Electric (dona da rede NBC e muito mais, com faturamento de US$ 131 bi); a News Corporation, de Rupert Murdoch (dona da Fox Network e da Fox cabo, de 35 estações de TV locais, da 20th Century Fox, de jornais, revistas e editoras de livros nos EUA, Inglaterra e Austrália, da DirectTV; no mundo, da Star, na Ásia e da Sky, na Inglaterra, todos sistemas de TV por satélite com US$ 17 bi de faturamento).

Esses grandes conglomerados não são nem empresas de informação, nem empresas de entretenimento. A diminuição das restrições ao acúmulo de controle de veículos de comunicação assegura ganhos de escala às matrizes. Com o aumento dos lucros, elas passam a adquirir tevês, jornais, editoras e produtoras de filmes, controlando não só todo o conteúdo da mídia, mas, igualmente, os sistemas nacionais de distribuição desse conteúdo, por meio de sistemas de satélites e telefonia. São gigantescos produtores e exibidores de conteúdos para todo tipo de suporte, que ‘fecham’ seu próprio jogo monopolista por várias pontas, umas anabolizando as outras, misturando jornalismo, crítica e notícia com produção, exibição e venda de entretenimento, reduzindo a competição e ditando a pauta política e comportamental da nação. E, o que talvez seja o pior de tudo, a longo prazo, desvirtuando a natureza e o papel da imprensa. Os gigantes da mídia estão desmontando equipes e produzindo múltiplos noticiários levados ao ar em diferentes estações a partir da mesma mesa.

À medida que programas noticiosos comerciais – inseridos em empresas de entretenimento cujas metas são, exclusivamente, proporcionar diversão e atrair receita – tentam manter uma audiência que tem centenas de canais à disposição, os editores de noticiário cada vez mais têm de recorrer ao sensacionalismo, ao escândalo e à simplificação, para manter os índices de audiência e o fluxo financeiro. Para disputar um emprego hoje, os profissionais do setor estão sendo forçados a deixar de operar como guardiões da democracia e fiscais da ação do poder publico cuja ação deve ser orientada por um sentido fundamentalmente ético, para se transformarem em meros agentes da expansão da riqueza de um grupo de acionistas.’

A concentração da mídia representa, pois, muito mais do que a simples eliminação da concorrência. Ela representa, sim, a própria concentração da capacidade de moldar comportamentos e opiniões, moldar o processo decisório, legitimar até mesmo as medidas que se mostrem mais gravemente lesivas aos interesses da população, para o fim de se consolidar situações de poder, procedendo ao aumento dos lucros das ‘corporations’.

Se é verdade que foi uma dura batalha a extinção da censura prévia – que o falecido ministro Alfredo Buzaid defendia como necessária à defesa da moral e dos bons costumes, em conferência publicada na Revista da Faculdade de Direito da Universidade Federal de Uberlândia em 1972 –, e que ela, efetivamente, não constitui solução, o fato é que o próprio comando das decisões do Poder Público, especialmente em sede de política econômica, à falta de uma diversidade maior de opções – diversidade que, diga-se de passagem, acaba aparecendo como algo até certo ponto utópico, porque, em muitos dados essenciais, há convergência (na época da privatização da Usiminas, por exemplo, não houve um único meio de comunicação que não tratasse o respectivo questionamento como uma ação aventureira, promovida por doidivanas comprometidos com um passado pré-histórico) –, passa a ser uma simples questão da simpatia ou antipatia de quem detenha o poder de controle dos meios de comunicação.

Os fatos históricos – têm sido recorrentes, bem sei eu, as minhas manifestações neste sentido, sed gutta cavat lapidem – se, hoje, passam a ser moldados pelo consenso dos meios de comunicação, que marcam com o labéu da corrupção os que lhes sejam antipáticos e tornam heróis os que lhes sejam simpáticos, mesmo que não haja correspondência, muitas vezes, entre a narrativa e os fatos como ocorreram, em não se reconhecendo a especificidade desta atividade econômica, em se tratando as operações voltadas à realização de fusões e incorporações ou mesmo de parcerias em que elas estejam envolvidas, do mesmo modo que operações da mesma natureza em que estejam envolvidas empresas que explorem tecelagem ou fabricação de eletrodomésticos, perderiam, a partir daí, o seu estatuto de fato, por se esfumarem na memória, em decorrência de não haver quem os pudesse narrar independentemente da conveniência que porventura pudessem ostentar.

Se, mesmo em outros setores, a concentração – na qual, como se sabe, investiram maciçamente os governos castrenses como uma das peças-chave do ‘milagre’, na década de 70, sobretudo – vem a causar preocupações, as peculiaridades do setor midiático, efetivamente, fazem com que se redobrem as cautelas (cf. meus ‘O problema jurídico das concentrações de empresas de comunicação social’. In: http://www.fbde.org.br/concentracao.html, acessado em 30 jun 2004, e ‘Variações sobre a concentração na mídia’. In: http://www.fbde.org.br/variacoes.html, acessado em 4 jul 2004).

Embora tivesse se tornado até mesmo um chavão a invocação ao romance 1984, de George Orwell, aqui, teria toda a pertinência, até porque os fatos seriam somente aqueles que um Big Brother – e não pertencente à esfera pública, como no pesadelo referido, mas proveniente dos meios particulares, submetendo inclusive a esfera pública – entendesse convenientes que tivessem ocorrido. Poder-se-ia resumir a ética jornalística que existiria a partir daí em uma sentença deste tipo: ‘Bom é o que me agrada, verdadeiro o que justifica as minhas decisões’. Ricardo Antônio Lucas Camargo

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Doutor em Direito pela Universidade Federal de Minas Gerais, advogado em Porto Alegre