Monday, 29 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1285

O que mudou e falta mudar no Estadão

O mais pesado dos três principais jornalões brasileiros virou o mais leve deles. Mas a radical reformulação gráfica que desde domingo passado deixou O Estado de S.Paulo irreconhecível, como nenhuma outra das cinco que a precederam nos 130 anos do jornal, tem os defeitos de suas virtudes.

As virtudes, obviamente, estão na adequação dos meios aos fins. É inegável que o novo design tornou o Estadão muito mais atraente e legível – razão de ser dessa profunda plástica ditada pelas críticas do leitorado ao visual escolhido há mais de 10 anos. ‘Somos’, escreveu o diretor Ruy Mesquita, ‘dóceis aos sinais emitidos pelo público’.

Em matéria de atratividade e legibilidade, especialmente os cadernos ‘Cultura’ e ‘Esportes’ – um, pela classe; outro, pela força – merecem desde já quaisquer prêmios a que venham a se candidatar.

Também a cara do novo caderno dominical ‘Aliás,’ combina com a intenção de enriquecer o jornal com uma espécie de revista de variedades, para o leitor – mais preguiçoso ou ocupado nos outros dias – ‘entender a semana’.

Do ponto de vista gráfico, porém, o caderno só teria a ganhar se perdesse o penduricalho da vírgula que diminui o impacto do nome bem sacado, com exíguas 5 letras e imponentes 5,3 cm de altura.

Aliás, em boa hora foi abolida a frescura do ponto final que, a julgar por uma foto publicada duas edições antes da estréia do Estado novo, se juntaria ao nome do caderno ‘Metrópole’, que substitui o de ‘Cidades’ no reparte vendido em São Paulo.

Exemplo de conciliação

Mas os problemas desse Estadão de aparência convidativa – os defeitos de suas virtudes, como se escreveu acima – consistem em que, ao ir de um extremo a outro, a sua imagem se distanciou da gravitas característica do jornal da família Mesquita.

Decerto um diário que sempre fez praça de ser o mais sério dos seus pares brasileiros – e cujo termo de referência, para não dizer interlocutor oculto, foi sempre ou quase sempre o clássico e austero New York Times – não precisava ter a carantonha que lhe pespegara a concepção enfim aposentada, para marcar a sua aversão de berço à frivolidade.

A propósito, um dos melhores jornalistas-designers do país, que este leitor lamenta não poder nominar, se divertia dizendo que o Estado era o único jornal do mundo impresso em negrito – o que lhe dava permanentemente aquele ar intimidador de barba por fazer e o fazia levar ao pé da letra a expressão ‘carregar nas tintas’.

Enquanto isso, o contraste com o arejamento cada vez maior das páginas da Folha de S.Paulo e o rejuvenescimento da linguagem gráfica do Globo acentuavam a carga pesada que o Estadão despejava sobre seus leitores.

Agora, de tão leve que ficou, principalmente na mancha gráfica predominante, definida pela delicadeza da tipologia dos textos, o jornal talvez induza os seus leitores antes a folheá-lo do que a se deter neles. Mesmo que tenha diminuído, como parece, o seu tamanho médio.

Tem-se a impressão que a mudança – embora um avanço formidável na trajetória do Estado – não achou o esquivo ponto ótimo de equilíbrio entre dois imperativos: o de criar um jornal amigável ao leitor no plano da forma e o de estabelecer uma forma coerente com a sua identidade jornalística tradicional.

O New York Times é um exemplo de que essa conciliação não é impossível. Sem ser nenhuma Brastemp gráfica, o jornal é fácil de ler, sobriamente elegante – e inconfundível.

O que tem de pior é um anacronismo que não é propriamente uma exclusividade na imprensa americana e mundial: as enervantes quebras de matéria, os ‘continua na página tal’ de que o leitor dos grandes jornais brasileiros está livre há cerca de meio século.

Cartas a favor

Em um mundo perfeito, a metamorfose visual por que acaba de passar o Estadão deveria ser o prelúdio de outras reformas de fundo – mantida a sua linha editorial conservadora, ou ‘de direita’, como se queira.

Lê-se no Estado de domingo que ‘os jornais diários parecem cada vez mais destinados a ajudar a pensar, a compreender e a criticar do que simplesmente a informar’ e a ‘privilegiar o aprofundamento da análise e da discussão dos temas mais importantes, sua contextualização e sua situação no espaço e no tempo históricos’.

Se é disso que se trata, e disso se trata efetivamente, a diversidade de pontos de vista é um gênero de primeiríssima necessidade na imprensa que quer ‘ajudar a pensar’. Nisso, o Estado deixa a desejar.

Não só tem menos colunas assinadas e artigos de opinião do que a Folha e o Globo nos cadernos que tratam ‘dos temas mais importantes’ – o nacional e o de Economia –, mas é patente a excessiva sintonia entre quase todos os comentaristas acolhidos pelo jornal e o pensamento da casa, expresso nas ‘Notas e Informações’ da página 3.

Se não falha a memória, apenas um petista escreve regularmente na op-ed do Estadão: o presidente do partido, José Genoíno. E um punhado de outros articulistas regulares praticamente só escrevem contra o PT. No caderno de Economia o leitor dificilmente encontrará artigos de contestação frontal às políticas do ministro Antonio Palocci.

Até as cartas dos leitores na Folha e no Globo trazem muito mais opiniões conflitantes sobre política e o governo Lula do que as do Estado. Neste, por alguma razão, a esmagadora maioria das manifestações publicadas é de endosso às posições do jornal.

Reforçando essa escassez de diversidade, o noticiário político e econômico do Estadão não raro parece mais próximo da página editorial do que o dos outros dois jornalões em relação aos seus respectivos editoriais.

O Estado se considera imparcial ‘tanto quanto humanamente possível’, mas jamais neutro ‘diante dos antagonismos de idéias e de ideais’. Isso é o que se deve esperar de um periódico com idéias e ideais. Mas outro critério de excelência jornalística, na imprensa democrática, é o confinamento dessa desejável não-neutralidade, ou tomada de partido, aos editoriais.

O Wall Street Journal vem à lembrança. Nenhum outro grande jornal americano publica tantos editoriais tão reacionariamente bushistas e favoráveis à guerra ao Iraque. Nem por isso o jornal deixa de apurar e publicar importantes denúncias que enfurecem a Casa Branca.

Amostra disso foi a explosiva reportagem de primeira página, publicada em 7 de maio, revelando que a cúpula do governo americano sabia, sim, das atrocidades cometidas na prisão de Abu Grahib, por causa de um minucioso relatório que lhe encaminhara a Cruz Vermelha no começo do ano. A notícia exclusiva, que correu mundo, afirmava que o relatório contrariava ‘pronunciamentos de funcionários da administração segundo os quais os abusos não tinham o respaldo dos comandantes militares e se limitavam a um punhado de soldados de baixa patente’.

Se os donos do WSJ controlassem o seu noticiário político para impedir que destoe das posições expressas na página de editoriais, dificilmente esse furo devastador para o bushismo veria a luz do sol.

E o ombudsman?

Com ou sem reforma gráfica, a qualidade (em sentido amplo) da informação do Estado tem chão a percorrer para superar a da concorrência.

Na edição inaugural do novo formato – 14 dias contados antes do segundo turno –, o primeiro caderno do jornal dedicou à eleição cinco matérias. No Globo foram 15, a começar da que rendeu a manchete ‘Doze vereadores eleitos respondem a processos’. Na Folha, foram 15 matérias também, incluindo a da manchete ‘67% acreditam que Serra vencerá’.

Além disso, na véspera, a Folha deu a melhor matéria eleitoral da semana: sob o título ‘Serra e Marta manipulam dados em debate’, uma página inteira com as verdades, meias-verdades e falsidades de cada um no confronto na TV Bandeirantes.

E quanto tempo ainda levará para que o Estado integre a distinguida confraria dos órgãos de imprensa que têm um ombudsman para defender o interesse do leitor?

[Texto fechado às 19h30 de 17/10]