Sunday, 28 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1285

Pequenas revoluções, grandes mudanças

Roberto Civita, presidente da Editora Abril, teve a gentileza de encaminhar ao OBSERVATÓRIO DA IMPRENSA, na tarde de segunda-feira, dia 19 de maio, o texto do discurso que pronunciaria à noite na Faculdade de Comunicação Cásper Líbero, ao receber o título de Doutor Honoris Causa.

Em seu discurso, Civita propõe o fim da exigência de diploma para o exercício da profissão de jornalista, a criação de cursos de pós-graduação em jornalismo abertos a graduados em qualquer especialidade e o restabelecimento do estágio profissionalizante.

Sugere, ainda, que “as empresas jornalísticas nunca esqueçam que têm responsabilidades que vão muito além daquela de maximizar o seu lucro” e que o governo, em todos os seus níveis, “deixe de distribuir verbas e favores para os veículos de comunicação na esperança de conquistar o seu apoio e a simpatia do público”.

Eis o texto do discurso.

“É uma enorme honra para mim receber da mais antiga escola de jornalismo do país o título de Doutor Honoris Causa. Esta homenagem tem, ainda, uma outra dimensão – igualmente profunda e significativa, por se tratar de um reconhecimento que recebo de meus pares. Estou sinceramente sensibilizado por isso, pois sempre achei que é o único tipo de reconhecimento que realmente conta.

Esta escola que hoje me homenageia nasceu em 1947, como resultado dos esforços do empresário Cásper Líbero e de seu ideal de incentivar a formação humanística das futuras gerações de jornalistas.

Cinqüenta anos depois, continuamos discutindo a melhor maneira de formar bons jornalistas, e as idéias de Cásper Líbero se mostram atuais. Por essa razão, gostaria de aproveitar a oportunidade – e a responsabilidade que tenho hoje aqui, à frente desta ilustre platéia – para dizer quais são, na minha opinião, as pequenas revoluções (e as grandes mudanças) que precisamos fazer, bem depressa, para ter jornalistas mais bem preparados, uma imprensa mais responsável e um país ainda mais próximo dos nossos sonhos de democracia, igualdade e justiça social.

A primeira coisa é, evidentemente, arregaçar as mangas e trabalhar, cada um a seu modo, cada um com as suas responsabilidades, para melhorar a qualidade do ensino básico no Brasil. Ou melhoramos a escola, ou todo o resto da discussão sobre o nosso futuro fica comprometido. Esse é um desafio que precisamos enfrentar já.

Depois, é preciso acabar com essa história de que jornalista tem que ter diploma de jornalista. Discordo totalmente. Li na revista Time da semana passada a seguinte frase – e notem que o autor estava falando dos Estados Unidos: “As escolas de Jornalismo (…) levam quatro anos para ensinar uma especialidade – escrever notícias – que muita gente, até os universitários, pode aprender em uma semana; isso perpetua a ficção de que jornalismo é uma profissão como a advocacia, e não um ofício como o de encanador”.

Muitos anos atrás, num dia frio de inverno na Nova Inglaterra, fui visitar o reitor de uma universidade bicentenária. Na sala desse reitor, ao lado de sua lareira aconchegante e cercado por milhares de livros, enquanto ele fumava seu cachimbo, a conversa foi ficando animada e eu perguntei: “Os senhores têm aqui uma escola de jornalismo, certo?” Ele me olhou espantado, e deu a resposta que eu deveria ter antecipado: “Senhor Civita, os trustees desta universidade vêm sustentando – há mais de dois séculos – que nós não ensinamos ofícios!”

Quanto mais reflito, e quanto mais tempo sou editor, mais me convenço de que jornalista não precisa de diploma de jornalista, mas sim de uma boa e sólida formação que começa em casa, passa pela escola básica, e pode até chegar à universidade. Um jornalista precisa de escolas, sim – escolas sem rótulos, que ensinem história, literatura, economia, ciência, filosofia, direito… o universo! Um jornalista precisa aprender a pensar, analisar, questionar, usar a cabeça. Um jornalista precisa de muitos livros, precisa ser curioso, querer saber sempre o porquê das coisas, todas as coisas. E precisa gostar de contar o que descobre, de contar histórias…

Alguém com esse perfil vai ter apenas que aprender o ofício, a técnica, o “como fazer”. Eu não apenas acredito nisto, como pratico há mais de trinta anos.

Em 1967, enquanto Veja ainda era um projeto, redigi o texto de um anúncio recrutando talentos para formar a sua primeira redação. Nossa única exigência era de que os candidatos tivessem diploma universitário – qualquer diploma! Veiculamos esse anúncio na revista Realidade, e ele começava assim: “A Editora Abril está à procura de jovens interessados na carreira jornalística. Procuramos homens e mulheres inteligentes e insatisfeitos, que leiam muito, sempre perguntem “por que” e queiram colaborar na construção do Brasil de amanhã”.

Pois bem: recebemos mais de 1.700 cartas de todo o Brasil, e enviamos um longuíssimo questionário para cada um dos jovens que nos escreveu. Com base nas respostas, marcamos entrevistas com 200 candidatos de todo o país. Terminada a maratona de entrevistas por “duplas” compostas por jornalistas e psicólogos, nas principais cidades de norte a sul, selecionamos 100 candidatos. Trouxemos todos (exceto os paulistanos) a São Paulo. Hospedamos os rapazes num hotel, as moças em outro – lembrem-se de que estou contando uma história de 30 anos atrás!

Durante três meses, esses rapazes e moças receberam treinamento intensivo. Aulas teóricas pela manhã e práticas à tarde, pesquisando, entrevistando e escrevendo matérias para os sucessivos números zero da nova revista. Ao fim de três meses, 50 deles foram contratados. Nunca fiz a conta de quanto gastamos com isso. Na Abril, essas iniciativas não são vistas como gastos, mas como investimentos. É a nossa filosofia. Veja nasceu dentro do espírito desse curso. Em setembro, ela completa 29 anos como a maior e mais influente revista do país, a quarta maior revista semanal de informação do mundo, e meu maior orgulho profissional. Ou seja, valeu a pena!

Baseados nesta experiência vitoriosa, instituímos – a partir de 1983 – o Curso Abril de Jornalismo para jovens recém-saídos da faculdade. Nesses 14 anos, mais de 700 jornalistas passaram pelo Curso Abril, e perto de 200 acabaram ficando em nossas redações, para escrever, fotografar, e trabalhar no design de nossas revistas.

Só no ano passado várias centenas de jornalistas da Abril, alguns com muitos anos de casa, passaram por algum tipo de treinamento oferecido pela empresa. Fizeram cursos de idiomas, de fotografia, infografia ou design, viajaram para o exterior, participaram de palestras e seminários com especialistas que trouxemos ao Brasil. Enfim, tiveram a possibilidade de aprender, debater, crescer profissionalmente, tanto em benefício próprio como da qualidade das nossas publicações.

A Abril não faz isso, não investe esforço, tempo e dinheiro na formação de seus jornalistas apenas porque tem boas intenções. Toda a ênfase sobre treinamento permanente e aperfeiçoamento constante decorre do compromisso de oferecer aos leitores de nossas publicações jornalismo inteligente, interessante, isento…

Evidentemente, não basta melhorar a preparação de jornalistas para melhorar a qualidade do jornalismo. Mas, sem este ingrediente, os outros (que mencionarei a seguir) também não adiantam.

Portanto, e para início de conversa, proporia um caminho que incluísse a criação de cursos de jornalismo em nível de pós-graduação, abertos a graduados em qualquer especialidade, que ensinassem – num único ano letivo intensivo – as técnicas, bases éticas e história do jornalismo. Notem que não eliminaria os cursos de jornalismo existentes. Apenas criaria uma outra alternativa que contribuiria para enriquecer e fortalecer – intelectualmente – todas as redações do país com os conhecimentos trazidos por jovens formados em direito, engenharia, biologia, informática, medicina, história, artes, arquitetura, economia e dezenas de outras especialidades.

Além de eliminar a exigência do diploma de graduação em jornalismo, proponho também restabelecer – correndo – o estágio profissionalizante. Pois como esperar que alguém possa aprender um ofício sem ter a oportunidade de praticá-lo?

O estágio tem que voltar! Remunerado, supervisionado e regulamentado, um estágio levado a sério pelos alunos, pela escola e pelo mercado – que é, no fim das contas, quem vai selecionar e absorver os melhores alunos. Hoje em dia, quem não quer o estágio está fora da realidade.

Paralelamente, é preciso que as empresas jornalísticas nunca esqueçam que têm responsabilidades que vão muito além daquela de maximizar o seu lucro. Minha tese é a de que quem quer simplesmente ganhar dinheiro deveria ser encorajado a fazê-lo fabricando cimento ou sabão ou eletrodomésticos, operando no mercado financeiro, abrindo lojas ou vendendo serviços. Todas atividades perfeitamente legítimas, necessárias e respeitáveis…

Mas quem quiser entrar (ou permanecer) no setor da comunicação deveria considerar (embora não possa ser obrigado a fazê-lo) que estará envolvido num processo que tem tudo a ver com a formação de valores, a visão do mundo, e a evolução política e econômica do país. Ou seja, é fundamental que a preocupação ética, o triunfo do princípio sobre a conveniência, a responsabilidade junto aos indivíduos, ao público, a nação (e até o planeta) estejam sempre na balança.

Do lado do governo, em todos os seus níveis, meu sonho é que – um dia – deixe de distribuir verbas e favores para os veículos de comunicação na esperança de conquistar o seu apoio e a simpatia do público. Antes de mais nada, as verbas e favores não lhe pertencem: são do próprio público, que elege seus governantes para administrar a coisa pública em benefício da coletividade.

Adicionalmente, a tentativa de comprar apoio tende a não funcionar, pois os veículos confiáveis são justamente aqueles cujo público sabe que não estão à venda, enquanto aqueles compráveis costumam ter toda a influência e o prestígio dos prostituídos…

Considerando isto tudo, acho que podemos dizer que a situação está melhorando. As empresas de comunicação estão cada vez mais profissionais e estruturadas. O governo federal mostra o caminho ao dar os primeiros passos para acabar com os favores que distorceram o cenário da informação durante muitas décadas. E estes fatores possibilitarão que os jornalistas – mais bem educados, mais bem formados e mais bem treinados – continuem sendo os olhos, a consciência, e o alarme da nação. Graças à renovação de escolas como esta, e idéias como as de Cásper Líbero.

Muito obrigado.”

Mande-nos seu comentário.