Monday, 29 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1285

Uma novela, muitas leituras

Autor de mais de 30 peças, meia dúzia de romances e duas dezenas de ficções para a televisão, Dias Gomes (1922-1999) deixou registrado em “Apenas um Subversivo” uma imagem tão rica quanto contraditória de suas ideias e do seu trabalho.

Recrutado para o PCB em 1945, militou por quase 30 anos, integrando o Comitê Cultural. Conta que aceitou defender posições com as quais não concordava “em nome do centralismo democrático’ e da obediência à linha partidária”.

Ao falar do maior sucesso de sua carreira, “O Pagador de Promessas” (1959), sublinha que o tema fundamental da peça é “a liberdade de escolha”, mas que não teve a preocupação de “expelir qualquer mensagem política” no texto, nem o discutiu com o Partidão.

A insatisfação com a recepção crítica a sua obra, por outro lado, percorre todo o livro de memórias. Décio de Almeida Prado e Sábato Magaldi, que elogiaram suas peças, são menos citados do que Bárbara Heliodora, a única crítica, diz, que fez restrições ao “Pagador de Promessas”.

O drama de Zé do Burro também angustiou Dias Gomes por conta das “interpretações equivocadas e as polêmicas” que produziu entre o público e a imprensa. “Na verdade, sendo uma fábula, está sujeita a muitas leituras, como aconteceu, segundo a formação cultural e as crenças de cada um.”

Produto industrial

Se fosse vivo, me arrisco a dizer, Dias Gomes não estaria gostando da boa versão de “Saramandaia” escrita por Ricardo Linhares. O que muitos veem como uma qualidade –as inúmeras leituras possíveis do texto– parece incomodar o autor. Ao se referir à personagem Dona Redonda, que um dia explode de tanto comer, Dias Gomes reclamou do crítico Artur da Távola (1936-2008), que “entendeu como uma crítica à sociedade de consumo, o que nunca me passou pela minha cabeça”.

O vilão Zico Rosado continua expulsando formigas pelo nariz, mas hoje é comparado a políticos de todo o espectro, da direita à esquerda, dependendo das afinidades do espectador. Já João Gibão, que lidera o movimento de renovação de Bole-Bole, agora é visto também como um símbolo da afirmação da diferença (tem vergonha de suas asas).

Lançado em 1976, o folhetim evocou então a literatura que vinha sendo produzida, já havia uma década, por escritores latino-americanos. Também isso incomodou Dias Gomes: “Quanto ao absurdo sincretizado ao realismo, que alguns julgavam mera adesão ao modismo, já que, na literatura, estávamos em pleno boom do realismo fantástico, ele já existia, em doses mais discretas, na minha obra”.

Dias Gomes trabalhou na Globo de 1969 a 1996. ápice de sua produção é da década de 1970 –além de “Saramandaia”, escreveu “Bandeira 2”, “O Bem Amado”, “O Espigão” e “Roque Santeiro” (vetada pela censura no dia da estreia). No fim da carreira, escreveu as minisséries “Noivas de Copacabana” e “Decadência”.

Numa entrevista a Alexandre Medeiros, da “Época”, publicada depois de sua morte, em 1999, Dias Gomes lamenta que as novelas haviam se transformado num produto industrial, escritas por um autor com a ajuda de vários colaboradores. “A novela é uma criação de grupo. Encontrou-se uma solução industrial para a novela, mas com isso ela perdeu a autoria.”

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Mauricio Stycer é colunista da Folha de S.Paulo