Thursday, 28 de March de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1281

A marca do estigma das boas intenções

É praticamente consenso que hoje vivemos tempos confusos, nos quais muitas das certezas que alguma vez tivemos estão sob questionamento. As dúvidas se estendem por todas as esferas da vida: a política e a privada; os ideais da vida profissional e as formas de como criar os filhos; as tentações de uma vida regida pelo mundano e os conflitos das gerações que se afastaram da religiosidade.

A instabilidade de nossas crenças, típicas de um mundo pós-moderno, como diriam alguns, também se evidencia na televisão e no jornalismo. Afinal, o que informa e o que desinforma? Qual é o jornalismo que humaniza e qual ajuda a perpetuar as ideias pré-concebidas? É possível que, nas boas intenções do jornalismo de “gente do bem”, os estigmas acerca de certos grupos proliferem?

Tivemos recentemente dois episódios interessantes na televisão brasileira que inspiram esta reflexão: no primeiro, a polêmica levantada por um personagem do programa Pânico na Band, veiculado na Band. O personagem Africano, interpretado pelo humorista Eduardo Sterblitch, foi severamente criticado nas redes sociais, levando o Pânico na Band a tirá-lo do ar.

Baseado na performance do black face, uma técnica do teatro em que um ator branco utiliza tinta escura para personificar um negro, foi acusado de ridicularizar e homogeneizar não apenas a população africana, mas todos os descendentes destas pessoas. No conceito proposto pelo sociólogo Erving Goffman, o estigma se refere às marcas (a princípio apenas físicas, mas com o tempo também simbólicas) que diferenciam os seres “marcados” dos considerados normais. O Africano, portanto, foi acusado de reiterar as marcas daqueles que, historicamente, foram estigmatizados.

Em um mundo em que tudo é capturado imediatamente pelas redes sociais, e no qual as patrulhas a favor e contra tudo que existe estão sempre a postos, é difícil imaginar que um programa televisivo, mesmo sendo o Pânico na Band – marcado pela característica do caótico, do nonsense, da desconstrução de todo o tipo de lógica racional – assumiria abertamente uma posição racista, mesmo que fosse para simplesmente fortalecer uma marca de politicamente incorreto. Afinal, mesmo os racistas, sem dúvida, não se visualizam racistas.

Imagino, então, que o que talvez inspire personagens como o Africano de Sterblitch seja, justamente, o argumento de uma espécie de “valor pedagógico” ao se explicitar o racismo por meio de uma evidente caricatura, o estereótipo de um africano. A rudeza do personagem, em um desejado sentido de ironia, jogaria na cara do espectador o próprio preconceito. Só isto justificaria, creio eu – talvez por pura ingenuidade – que um artista se propusesse a incorporar alguém que, em alguma medida, ajuda a perdurar o que causa sofrimento a outrem. Vale lembrar que Eduardo Sterblitch foi muitas vezes louvado pela crítica pelo seu estilo de comédia, que remete ao humor soturno de Buster Keaton. Mas a grande questão que aqui se insinua, afinal, seria: o que é mais efetivo no intuito de problematizar o outro? Como trazê-lo à televisão de uma forma que não o simplifique a um papel, seja ele negativo ou não?

Estigma acaba sendo fortalecido

Isto me leva ao segundo episódio, que é o retorno sempre bem-vindo do médico Dráuzio Varella à TV, em quadro veiculado no Fantástico. A série “Qual é a diferença?” promete trazer um “novo olhar”, conforme se anuncia, à síndrome de Down, modificação genética que acomete pelo menos 300 mil pessoas no Brasil. Em razão da representação feita pela mídia ao longo das últimas décadas, é uma das deficiências intelectuais mais conhecidas e que, portanto, exigiu que o jornalismo se adaptasse durante este tempo para abordá-la.

A primeira reportagem veiculada por Dráuzio Varella sobre o tema conta com a sensibilidade e didatismo que lhes são peculiares. Traz como trunfos a perspectiva de uma abordagem pouco óbvia – como as entrevistas com as mães grávidas que revelam seus conflitos e aceitação ao saber que terão filhos com síndrome de Down, e a abertura que coloca o protagonista da reportagem (Breno Viola, de 34 anos, tricampeão de judô) em pé de igualdade com a “estrela”, o doutor Dráuzio (veja aqui a reportagem). Mais do que isso, o primeiro episódio do quadro faz algo que merece destaque: dá voz a quem dificilmente é ouvido e tenta, ainda que de forma tímida, apresentar o mundo sob a sua perspectiva. O momento em que vários portadores de síndrome de Down falam diretamente com estas grávidas é absolutamente comovente.

Entretanto, a matéria peca por alguns vícios recorrentes de um jornalismo que, carregado de boas intenções, acaba por fortalecer as marcas do diferente. Ao apresentar a matéria em estúdio, por exemplo, os apresentadores destacam a presença de Breno, que não é apenas alguém a quem acomete uma condição genética (inevitável, como explica o doutor Dráuzio), que é tricampeão em um esporte, “mas que é muito mais que isso”. De alguma forma, colocar sob destaque apenas as dificuldades, as conquistas e a superação de Breno (que é inesperada, como a matéria sugere, ou diz sem dizer), acaba de alguma forma por fortalecer o estigma e a distância daqueles que apenas adentram as agendas jornalísticas por meio da grande história do “guerreiro”, do “herói”, daquilo que não se esperava dele. E não apenas por ser quem se é.

Um jornalismo que humaniza sem idealizar

Que se esclareça: a perspectiva de superação de si mesmo é – e deve ser – inata a todo ser humano, e são absolutamente louváveis aqueles que, enfrentando inúmeros percalços a mais do que enfrenta a maioria das pessoas, conseguem atingir aquilo que buscam. Por outro lado, é preciso questionar o enquadramento dado pela televisão (e pelo jornalismo como um todo) que só traz visibilidade ao deficiente que heroicamente se supera. Como se viver, ser a si mesmo, não fosse superação suficiente.

No fundo, a TV que segmenta e destaca os que se “superam” talvez não esteja assim tão distante da que, explicitamente, perpetua os preconceitos.

Por fim, uma dica: o livro-reportagem Os Medalhistas, do jornalista Paulo de Siqueira, faz um retrato sobre atletas paralímpicos paranaenses e é um ótimo exemplo de como é possível pensar em um jornalismo que humaniza sem idealizar. Está disponível na Amazon.

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Maura Oliveira Martins é jornalista, professora universitária e editora do site A Escotilha