Sunday, 28 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1285

Chora, Carminha!

Para se preparar um bolo que seja elogiado pelos comensais, é preciso seguir uma receita testada. Também é fundamental adaptar ingredientes quando os originais não existem mais; deve-se ter sensibilidade para mexer a massa, não confiar tanto no forno, que pode estar desregulado, e caprichar na apresentação. Come-se também com os olhos.

A novela Avenida Brasil, trama que atraiu tanta atenção nos últimos meses, a ponto de esvaziar as ruas das grandes cidades em seu capítulo final (sexta, 19/10), contou com um excelente cozinheiro: João Emanuel Carneiro. O autor ousou na receita do folhetim e fez sucesso mais uma vez. O Ibope marcou 51 pontos, com 75% de share (participação dos televisores ligados), um dos melhores índices dos últimos anos na TV brasileira. Cada ponto representa 60 mil domicílios da Grande São Paulo.

Depois da extraordinária A favorita (2008/2009), em que João Emanuel brincou com a percepção do público sobre quem era bonzinho ou malvado, agora o autor decidiu valorizar a inteligência do público já saturado de novela ruim. Vai ser difícil outros autores repetirem a fórmula. Com uma ótima equipe na direção, Amora Mautner à frente, e excelente elenco, o bolo do João não desandou.

Triângulo amoroso

A novela começou com uma traição barra pesada. A madrasta que roubou o dinheiro da enteada e a deixou abandonada em um lixão. Qualquer semelhança com as histórias infantis não terá sido em vão. Madrastas não costumam ser boazinhas na ficção: Carminha (Adriana Esteves) se superou. Por isso, a sede de vingança cresceu na menina Rita/Nina (Débora Falabella) e em todo o público, que, certamente, já foi traído na própria família, por amigos e colegas de trabalho.

A vingança foi cozinhada aos poucos. Nada melhor do que uma chefe de cozinha requintada para fazer isso. Nina conseguiu trabalhar na casa do jogador Tufão (Murilo Benício), um homem do povo, ingênuo a ponto de acreditar piamente nas mentiras de Carminha. Chamada de “demônia” nos bastidores, apesar do carinhoso diminutivo no nome, Carminha era dissimulada, aproveitadora, arrogante, péssima mãe e falsa católica. O leitor que não conhece ninguém assim no Brasil levante rapidamente a mão. Como se não bastasse, mantinha seu amante Max (Marcello Novaes) debaixo do mesmo teto.

A novela deu certo em muitos aspectos, mas usar a linguagem coloquial, incluindo palavrões, foi acertar no milhar nos diálogos e nas situações de vida bem sacadas. O humor ferino das três mulheres de Cadinho (Alexandre Borges) revelou parte da realidade classe AA da Zona Sul carioca. Interesseiras, esnobes e muitas vezes medíocres e muito engraçadas, Verônica (Débora Bloch), Noêmia (Camila Morgado) e Alexia (Carolina Ferraz) representaram o lado caricato e curioso de quem mora de frente para o mar e tem valores inconstantes. As três fizeram um excelente contraste com as mulheres em ascensão social do subúrbio fictício chamado Divino. Para o autor, a família de Tufão era cafona, falava alto, quase berrando, não tinha gosto requintado, e, ainda assim, valorizava a humanidade e a autenticidade.

As improvisações permitidas pela direção acrescentaram ainda mais “verdade” às cenas. Convivendo no set de gravação do Projac por longas horas, durante sete meses, os atores acabaram respirando como seus personagens. Os erros de português de Adauto (Juliano Cazarré) eram repetidos no dia seguinte entre os fiéis espectadores. Por exemplo: “chão escorregadinho” e “vou cuidar dos troféis” transformaram Adauto no queridinho. Ele era analfabeto, mas também doce e carinhoso, qualidades que andavam em falta em outros relacionamentos da ficção.

Ao erguer a mansão de Tufão, a emissora concentrou seus esforços na classe C, mas, curiosamente, errou feio ao montar a casa de Mãe Lucinda (Vera Holtz), da classe E. Acrescentou glamour absurdo à miséria de quem vive dentro do lixo, lugar onde as pessoas estão sujeitas às piores condições de higiene e a toda sorte de sofrimento. Como era preciso espaço para gravar dentro do cenário do barraco, a casa de Lucinda ganhou ampla sala e uma decoração VIP, alto padrão, embora as paredes fossem enfeitadas com singelas latas de cerveja. O que se viu em cena foi uma instalação nova-iorquina da geração autossustentável. Não colou.

Deu para acreditar no botequim, nas casas ricas da Zona Sul, nas lojas suburbanas e – o melhor de tudo – nos plásticos que protegiam os sofás da casa da empregada Janaína (Cláudia Missura). Seria preciso ter uma visita importante para que a capa plastificada fosse retirada da sala. Os figurinos se repetiram infinitamente: os mesmos modelos para Muricy, Ivana e Monalisa, para Leleco e Darkson. Ficou monótono.

Ousou o autor quando criou o triângulo amoroso entre a Maria Chuteira Suellen (Ísis Valverde) e os jogadores Leandro (Tiago Martins) e Roni (Daniel Rocha). Os mais conservadores não gostaram nada disso. Foi o mesmo sentimento que tiveram, desde o começo, em relação a Cadinho e suas três mulheres. Talvez João Emanuel tenha feito uma homenagem ao escritor Dias Gomes e à novela O Bem-Amado. O prefeito de Sucupira também mantinha relações íntimas com três mulheres, as Irmãs Cajazeiras.

Fogo na chupeta

Entre atores tarimbados que sempre fazem sucesso por onde passam estão Eliane Giardini e sua Muricy, e Marcos Caruso e seu Leleco. A novela permitiu que personagens pequenos tivessem minutos de glória. Cacau Protásio, a empregada Zezé, roubou a cena e se impôs. Ora como empregada invejosa da chef novinha que chega para disputar com ela o espaço da cozinha, ora fazendo coisas engraçadas longe das vistas dos patrões, como a “dança do amendoim”.

O maior mico da novela foi a súbita transformação de Soninha Catatau (Paula Burlamaqui). Evangélica toda pura para tentar apagar seu passado de atriz pornô, Soninha teve um estranho surto ao ouvir uma música animada que a fez lembrar-se do passado e ter uma recaída. A cena foi mal estruturada, e em nada combinou com a química de outros personagens.

Falando nisso, João Emanuel fugiu da fórmula personagens bons, totalmente bons, e dos maus, muito maus. Todos carregaram culpas, erros, escorregões. O principal exemplo foi Nina. Vingança, sim, mas até que ponto? Surpreendente foi a atuação de Marcello Novaes, que, na pele de Max, conseguiu vários tons para seu personagem. Ele foi falso, mentiroso, cruel, emotivo, apaixonado, interesseiro, tudo ao mesmo tempo. Parece que aproveitou bem a chance e tanto que teve em sua carreira.

O público precisa de vilões, mas também deve perdoar. A morte de Max pode ter lavado a alma do público justiceiro. Mas nem todos os espectadores se convenceram do arrependimento de Carminha, sofrendo no lixão e de volta à miséria. Como em uma aula rasteira de psicologia, ela era assim porque imitava o padrão do pai, Santiago (Juca de Oliveira). Nem sempre essa matemática funciona. O público que correu para casa a fim de assistir ao último capítulo de Avenida Brasil precisava ver as lágrimas (de crocodilo?) humilhadas na “careteira” Adriana Esteves, e ela chorou.

Por fim, unindo o Brasil em um colorido campo de futebol do Divino, os brasileiros torceram mais uma vez pela alegria de viver e pela superação de traumas. Adauto queimou a chupeta que escondia no fundo do armário. E o melhor: bateu um pênalti e marcou. O público gritou “gol”, feliz da vida.

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[Rose Esquenazi é jornalista e professora. Foi colunista da “TV Pixel” do Jornal do Brasil, editora da Revista Ponto TV e TV Programa, do JB. Professora da cadeira “História do Rádio e da TV no Brasil”, na PUC-Rio (1994-2011), autora do livro Túnel do tempo. História afetiva da TV brasileira, Editora Artes e Ofícios, 1993, Porto Alegre]