Wednesday, 01 de May de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1285

Mario Vitor Santos

‘A observação das semelhanças e, principalmente, das diferenças das coberturas jornalísticas para os ‘casos’ de Isabella Nardoni e do jornalista Roberto Cabrini pode indicar mudança dos procedimentos dos veículos em função dos envolvidos e dos interesses em jogo. Esse é o momento em que imparcialidade e eqüidistância deixam de ser ideais abstratos e viram obrigação. O desafio é exercê-los na prática do noticiário, de forma técnica e rigorosa em cada detalhe, desde a pauta até a edição, desde o conteúdo das reportagens e das diversas retrancas até a forma das edições.

No caso Isabella está em jogo uma guerra sem tréguas pela audiência na TV. Os outros veículos, inclusive a imprensa escrita e de elite, deixam-se arrastar para uma cobertura exagerada e desproporcional à importância dos fatos. Em ambos os casos, paira sobre a cobertura a sombra da suspeita de que o noticiário esteja sendo superestimado.

A prisão de Cabrini mexe com temas mais complicados, pois envolve um repórter que afirma, de dentro da cela, ter sido preso no exercício de sua profissão e que diz ser vítima de uma armação montada por pessoas que seriam incriminadas por sua investigação jornalística. Diferentemente do pai e da ‘madrasta’ de Isabella, Cabrini parecer ter optado por partir para o ataque. Parece querer se manifestar e acusar os que o acusam. Sua versão dos fatos teve logo espaço no noticiário.

A prisão de Cabrini já provocou um pronunciamento oficial do Sindicato dos Jornalistas em sua defesa. A TV Record também se manifestou dizendo que ele havia informado estar envolvido numa investigação jornalística. Cabrini parece querer sair da detenção para falar, denunciar e desmascarar. Ele quer ser seu próprio furo. A cobertura para beneficiar isso. Caberá à TV Record e, talvez, ao público, avaliar se ele tem isenção para reportar sobre um caso em que ele é a principal personagem, a melhor –e a pior- fonte. Os Nardoni, num caso que é muito mais grave, saíram para continuar mudos.

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Colina do Sol: pior do que a Escola Base (16/4/08)

O norte-americano Richard Pedicini, um dos envolvidos pela polícia, promotoria e imprensa no caso Escola Base, tornou-se um vigilante de práticas semelhantes nas coberturas jornalísticas no Brasil.

Segunda-feira, quando todas as atenções do país estavam voltadas para o chamado caso Isabella, Pedicini fazia percurso oposto. Foi detido por algumas horas pela polícia na cidade gaúcha de Taquara, quando se manifestava diante do fórum municipal.

Estava ali para acompanhar e exigir providências a respeito do chamado ‘caso Colina do Sol’, em que dois casais, um deles de americanos, estão há quatro meses presos por acusações de pornografia infantil, tráfico de crianças para os EUA e pedofilia. Há pouco mais de um mês, segundo um jornal local, uma única acusada, de mais de 70 anos, conseguiu o direito a prisão domiciliar.

No total, há sete pessoas acusadas em conseqüência da chamada ‘Operação Predador’ desencadeada pela polícia gaúcha em dezembro passado. A operação caiu sobre a comunidade naturista de Colina do Sol. Isso foi usado como contexto para as acusações. Até agora a polícia não conseguiu provar nenhum dos supostos crimes.

Trata-se, segundo Pedicini, de um provável caso de ‘crime de imprensa’. Os veículos de comunicação deram curso às acusações e fustigaram a histeria em torno do caso. Este obedeceria ao mesmo roteiro dos anteriores, como mostra o relatório de Pedicini a respeito do assunto, enviado ao Ouvidor Nacional dos Direitos Humanos. Confiram um trecho:

‘O ritual valoriza a rapidez, a quantidade e as severidade das acusações. É uma corrida – cada repórter quer ser o primeiro. Não importa saber a verdade, e sim divulgar a matéria. Quando uma acusação é desmentida, encontra-se outra maior. A imprensa se apóia na polícia, e a polícia conta com o ‘clamor público’ para dotar o processo de uma inércia irresistível.

Num caso pré-julgado no tribunal de imprensa, prender os acusados para os manter calados é um bom começo. Quem poderia defender o acusado também vai preso: neste caso, as mulheres, contra quem não há nem acusação de peso, quanto mais provas. Quem defende os acusados também vira alvo. Três pais que dizem, junto com os filhos, que os crimes nunca aconteceram foram acusados de ‘conivência’. Um dos pais levou os filhos à Corregedoria para fazer queixa do terror e dos tapas a que foram submetidos pelos ‘investigadores’. Foi denunciado outra vez, por falsa acusação.

Quando os réus são absolvidos, abundam os lugares-comuns: ‘os ricos não vão presos no Brasil’; ‘a polícia prende e a justiça solta’. Fala-se em ‘falta de provas’, insinuando que os réus eram culpados, mas escaparam por uma coisinha mínima. Às vezes a mídia se digna a dar ‘o outro lado’, mas de que forma? Para cada acusação da polícia que foi divulgada dez vezes como fato, aquilo que o acusado comprovou com uma pilha de documentos e uma legião de testemunhas aparece escondido no jornal como ‘alegação’.

O direto de resposta, o ‘outro lado’, não permite dizer a única verdade que esclarece o que aconteceu: o delegado mentiu. Quando muito a imprensa se limita a lamentar o ‘erro’.

Ora, o que aconteceu no caso Colina do Sol não foi um erro, foi um crime. Quatro presos, sete acusados, tudo inicialmente para levar a cabo uma vingança particular e criar fama para um delegado. Depois mais crimes, para esconder os iniciais: os erros e calúnias da polícia, a manipulação de testemunhas e da imprensa, a falta de parâmetros éticos e morais. Restaurar as reputações dos acusados é impossível. Mas pelo menos pode-se tentar. Para ser eficaz, essa tentativa tem não que dar o ‘outro lado’, nem ‘explicar’ o ‘erro’. Tem que alardear a verdade, em alto e bom tom.’

‘Essa é a proposta deste relatório’, diz Pedicini, que, mais adiante, cita o papel da imprensa no caso:

‘Assim, o delegado fez de tudo para dar relevo à Operação Predador, inventando que os presos faziam parte de uma rede mundial de pornografia infantil, que estavam sendo investigados pelo FBI, e assim por diante. Tudo jogo de imprensa, pois não há vestígio desses liames na denúncia. Inobstante essa ausência, continuaram as insinuações; documentadas abaixo sob o título ‘Acusações no tribunal da imprensa’.

Seguindo a trilha apontada pelo delegado, a imprensa não hesitou em misturar inocentes e culpados. Um jornal chegou a publicar dia 12 de janeiro a manchete ‘Casal Confessa’, com a fotografia de Fritz e de Bárbara. Apenas uma leitura meticulosa revelava que a manchete se referia a um caso inteiramente diferente, em que os acusados aparentemente admitiram ter divulgado material pornográfico.’

(…)

‘A psiquiatra Heloísa Fischer Mayer, descrita como ‘psiquiatra forense’ pelo delegado, faz estágio no Ambulatório do Instituto Psiquiátrico Forense desde fevereiro de 2007.’

‘A Folha Online descreve Mayer como ‘especialista em violência doméstica’, mas enquanto o currículo dela informa que em 2005 ela se especializou em Psicoterapia da Infância e Adolescência pelo Centro de Estudos Atendimento e Pesquisa da Infância e Adolescência (Ceapia), o boletim da entidade informa que somente em 28 de maio de 2007 realizou ‘reunião científica comemorativa pelo reconhecimento do Curso de Especialização em Psicoterapia da Infância e Adolescência pelo CFP.’ Assim, o curso não era reconhecido quando ela estudou.’

O iG, em suas duas únicas reportagens sobre o caso, extraídas da Agência Estado, não deu adequadamente a versão dos acusados, como pode ser visto em Polícia prende quatro suspeitos de pedofilia no RS e Justiça nega liberdade a acusados de pedofilia no RS.

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Falta humanidade ao jornalismo policial (14/4/08)

‘Dezesseis dias após a morte de Isabella Nardoni, de 5 anos, ocorrida no dia 29 de março, a polícia ainda não tem as respostas de questões fundamentais para o esclarecimento do crime.’

Essa é a abertura da reportagem que o iG publica hoje sobre o chamado ‘caso Isabella’. Na quinta-feira passada, os meios de comunicação divulgaram que ‘policiais’ diziam que já haviam resolvido 99% do caso. No dia seguinte, desmentiram ter resolvido os 99%. Até agora, não revelaram nem 1% do que disseram ter esclarecido.

Neste processo, prenderam o pai e a ‘madrasta’ sem qualquer justificativa forte o suficiente. Após alguns dias os ‘suspeitos’ foram libertados. Os legistas fizeram mais de cinco perícias no apartamento, no edifício e na vizinhança.

Agora, sem notícias, sem investigação independente, o iG mantém o assunto ‘aquecido’ na capa do portal. Publica uma reportagem requentada intitulada ‘Saiba quais são as questões que a polícia precisa esclarecer sobre o caso Isabella’. Se a polícia se cala, todos emudecem. Se fala, todos ecoam.

Não se sabe se o caso caminha para ser mais um episódio de crime de imprensa provocado pela guerra de audiência das redes de TV e sua capacidade de arrastar consigo quase todos os outros veículos. O enredo de acusações, comoção, aprisionamento e confusão é, porém, parecido.

Dessa vez, diferentemente do que ocorreu no caso semelhante da Escola Base, a maioria dos veículos não faz mais fazer acusações criminosas abertamente. Evitam exposição a novos processos e indenizações. Ainda há, porém, policiais que chamam suspeitos de ‘assassino’ em público.

Se não são mais tão ingênuos, não quer dizer que os jornalistas tenham deixado de influenciar a chamada opinião pública. Dedicam-se a investigar certas circunstâncias que poderiam mostrar o caráter criminoso dos envolvidos. Ela é madrasta, o que já diz tudo. Ele gosta de carros de luxo, teria temperamento explosivo, não possui vínculo empregatício, vive à custa do pai.

Diante da histeria da disputa por índices de audiência, o correto do ponto de vista da ética jornalística seria ir para o distanciamento, a interpretação e a dúvida. Isso não quer dizer optar pela frieza jornalística. Dos mais de seiscentos (600, repito) textos jornalísticos que este iG publicou não há uma reportagem de perfil humano dos envolvidos. Ninguém descreve a história de vida dos ‘suspeitos’, falta um álbum de fotos de sua infância, não há depoimentos de seus melhores amigos e de gente que conviveu proximamente deles. É uma cobertura sobre pessoas, mas falta humanidade a esse jornalismo.’