Sunday, 28 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1285

O declínio do povo brasileiro

O que se convencionou chamar de cultura popular até alguns anos atrás não existia. No mundo pré-industrial, a cultura popular era folclórica. Apesar de ainda persistir em nossa sociedade esse conceito, o que predomina com essa denominação são as manifestações de massa impostas pela indústria da música popular, do cinema, da televisão, do rádio e de editoras de livros e internet. No único interesse do lucro, essa indústria usa elementos manipuladores e alienantes para conservar a submissão de nosso povo aos seus desmandos.

Sinto-me agredido pelo enaltecimento do lixo, do que há de mais degradante na raça humana: a glamourização da pobreza, a valorização da alienação e da falta de educação. Não bastassem Gugus, Ratinhos e Faustões, o novo programa da Globo, Central da periferia, liderado por Regina Casé, registra a involução cultural de nosso povo, o orgulho de ser favelado, a apologia da banalização do sexo e da poesia, nada poética, das letras dos raps e dos funks.

O rap (ritmo e poesia, em inglês), como sabemos, teve sua origem com os jamaicanos que desembarcaram nos Estados Unidos na década de 1960. Os negros americanos, influenciados pelos jamaicanos, deram corpo e estilo ao novo gênero. O Brasil importou o RAP nas décadas de 1980 e 90 e, com ele, os mesmos discursos adaptados às favelas e às periferias. Se ainda houvesse alguma originalidade….

Os discursos (letras) dos rappers denunciavam a violência e as arbitrariedades sofridas nos guetos. Porém, o ritmo, forte e cadenciado como uma rajada de balas, uma dança que mais se assemelha a gingas malandras (não à malandragem ingênua, mas a malandragem bandida), a malevolências e com uma boa carga de agressividade, sugere o contrário, sugere a violência contra a violência, sugere a arbitrariedade contra a arbitrariedade. Enfim, anula-se aí a sua função inicial. Além disso, criaram-se ‘tribos’ que acabam por guerrear entre si.

Tempos de Cartola

Isso, sem contar aqueles que, abertamente, fazem a apologia às drogas, à violência e demais crimes sociais. Ritmo e poesia. Poesia feita por analfabetos literários, por um parco vocabulário exaltando gírias que mais parecem códigos entre fiéis. Nesse universo, podemos excetuar alguns poucos nomes, como Gabriel, o Pensador e outros que não me vêm à mente no momento.

O funk carioca, que nada tem a ver com o funk de James Brown e outros, é originário do Miami Bass, um tipo de hip hop primitivo americano, da Flórida, que tinha como tema de suas letras o sexo, a violência, recheadas de palavrões, sugere bem a involução do ser humano. Violência entre gangues, apologias às drogas, patrocínio do narcotráfico (não podemos esquecer que Tim Lopes foi assassinado por investigar as relações do tráfico com os bailes funk no Rio) e muito mais.

O funk carioca parece querer eliminar de vez todos os neurônios. Isso é maravilhoso para uma indústria que não quer se comprometer com a qualidade cultural de nosso povo e obter cada vez mais lucro com a ignorância alheia. Houve tempo em que as favelas cariocas, paulistas, baianas geravam grandes compositores como Cartola, Ismael Silva, Bezerra da Silva, só para citar alguns, que influenciaram toda a música brasileira de qualidade. Até hoje ouvimos Paulinho da Viola, Chico Buarque, Caetano e outros interpretando as canções desses mestres dos morros. Não é saudosismo, mas sim um registro de que, ainda hoje, dentro de uma favela, há bons criadores musicais, bons artistas plásticos, bons escritores que, quase nunca, têm seus trabalhos divulgados e enaltecidos pela indústria ‘cultural’ brasileira.

Ditadura mercenária

Essa indústria, em seu incentivo e estímulo à produção de todo esse lixo, acaba por nivelar tudo pelo que há de pior no Brasil. É fato comprovado que a formação de um povo se faz pela cultura e pela educação. Já temos, em nosso país, uma educação escolar precária que não oferece a mínima possibilidade de crescimento para a maioria dos brasileiros. Ainda temos que impor uma cultura desastrosa e miserável à nossa gente? Com a imposição dessa ‘cultura’, imaginem o povo que teremos em alguns anos…

Todas as vezes em que orquestras se apresentaram em praças públicas e em favelas, o deslumbramento do povo foi grande. O problema é que em momento algum se deu a continuidade para que esse deslumbre se perpetuasse. Isso deveria acontecer em salas de aula com projetos específicos e duradouros.

Aqui no Brasil tem-se a ilusão de que ensinar a bater em lata trará algum futuro à criança que está numa favela. Puro engano. É um mero pretexto para tirá-la do destino bandido a que estaria condenada e, assim, não afetar a sociedade constituída. Até quando será possível mantê-la longe do tráfico? Ela não será uma artista, não será reconhecida como tal. É sim necessária uma educação com conteúdo. Uma educação cultural.

As atividades artísticas (não o bater de latas) podem ajudar, mas são apenas pequena parte do desenvolvimento do cidadão. Sem uma educação adequada e sem o suporte da alimentação e da saúde, nada acontecerá. Tudo ilusão. É hora de tomarmos uma atitude, caso contrário chegará um tempo em que pensar será perigoso, com o risco de sermos massacrados por uma ditadura industrial mercenária e manipuladora.

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Artista plástico e escritor (www.tadeuaniz.com.br)