Saturday, 14 de December de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1318

Semideuses da audiência

A nova fase da história da televisão está sendo escrita e a programação deixa perceber uma certa volta ao começo das transmissões, nos anos 1950, quando do início da epopéia da televisão brasileira. Os produtores perguntavam: ‘O que colocar no ar no dia seguinte?’ ou ‘Como manter o telespectador preso ao sofá?’ Esta nova fase contempla a readaptação diária das emissoras ao novo perfil de telespectador que se entorpece, agora, com muitas opções de lazer, entretenimento e os apelos tecnológicos da contemporaneidade.

Naquela época, no dia seguinte, os produtores corriam aos consulados buscando documentários que tivessem sido exibidos na telinha. Há ainda a invasão das novas formas de programação e buscas desesperadas de interatividade como forma de empatia, quando o público vai à cena: a ‘neotelevisão’, conforme Giuseppe Mininni: ‘Os historiadores relacionam o emergir de uma fase de `neotelevisão´ com o prevalecer de uma vasta série de programas conhecidos/denominados como reality shows (do programa de perguntas aos talk shows), nos quais a TV não é mais o `totem´ que marca a separação entre o mundo na tela e o auditório `diante da tela´. Os reality shows desfazem tal barreira, tida como sagrada na fase da `paleo-televisão´ e levam à cena os telespectadores, transmitem conversas de pessoas comuns e fazem circular imagens potentes sobre o modo de agir do homem comum. Modas, linhas de conduta, expressões de uma geração investem contra o olhar sedutor da telecâmara que relança nas telas domésticas aquela aura de familiaridade com que todos adoram sentir-se tranqüilizados.’

A cada 100 residências, 90 possuem televisor

A Rede Record, de perfil evangélico, que compõe o patrimônio midiático do pastor Edir Macedo, repete a escalação de elenco ex-global a peso de ouro, promove a mudança da hegemonia sob mercado publicitário, antes submisso à Rede Globo, grande mantenedor das emissoras e a perda de fidelização do público. Também enche de populares a telinha mágica. Sílvio Santos com gargalhada sádica faz da precoce Maísa a mártir diminuída (foi espremida numa mala!) e a cada semana uma tortura nova é apresentada. A menina chora e se transfigura no sofrimento. Os artistas brasileiros estão perdendo significativos espaços no mercado de trabalho e no dilúvio popular da TV, o telejornalismo se ressente de conteúdo de qualidade, profissional e crítico.

Para Herbert Schiller, a questão da interatividade excessiva passa pelos ditames da economia – ‘a comunicação segue o capital e o capital se relaciona intrinsecamente com a publicidade. Perder audiência é perder dinheiro. A presença maciça da TV no Brasil, como forma de integração social, encontra referência nos estudos e pesquisas de comportamento’.

Segundo a Revista da Computação Brasileira (2007), ‘nada bate a televisão no Brasil quando o assunto é entretenimento’. Há 42,8 milhões de domicílios no país com televisores, de acordo com dados da Pesquisa Nacional por Amostras de Domicílios (PNAD) do IBGE de 2002. Para se ter uma idéia do alcance do veículo, o número de famílias brasileiras com TV em cores é maior do que os das que desfrutam de serviços adequados de saneamento. A cada 100 residências, 90 possuem pelo menos um aparelho, sendo que destes, 80% recebem apenas sinais de TV aberta (terrestre). Por isso, a expectativa sobre o Sistema Brasileiro de TV Digital Terrestre (SBTVD) é grande, assim como a revolução que ele promete causar na programação.

Televisão de portaria

A revolução midiática e os avanços da tecnologia promovem a chamada fase da convergência e da qualidade digital que constrói um capítulo por fazer com o acesso à interatividade, interface com a internet e outras tecnologias. Aos poucos, a televisão digital substitui a velha e já ultrapassada televisão analógica, proporcionando aos telespectadores novos divertimentos, serviços e outras formas de olhar o mundo. O comum se torna objeto de consumo e a produção de qualidade ‘rompe tratados e trai os ritos’.

Conforme Baudrillard, ‘uma espécie de imenso narcisismo coletivo leva a sociedade a confundir-se a absolver-se na imagem que oferece de si mesma da mesma maneira que a publicidade acaba por convencer as pessoas dos seus corpos e dos seus prestígios’. A abundância do povo na telinha, traz o que Jorge Furtado, diretor de cinema e televisão, chama de ‘televisão de portaria’ onde os moradores dos condomínios controlam porteiros e visitas. Assim a sociedade se alimenta – antropofagicamente – de si mesma, se afasta do universo mágico e lúdico da ficção, rende faturamento comercial e resgata um admirável slogan de Baudrillard que diz: ‘O corpo com que sonha é o seu.’

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Jornalista, professor universitário e mestrando em Comunicação e Tecnologia, Juiz de Fora, MG