Sunday, 28 de April de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1285

Uma ameaça ainda longínqua

A revista CartaCapital (28/3/2007) trouxe como matéria de capa a disputa concorrencial entre Record e a Globo, aludindo, finalmente, a um possível fim da hegemonia da Vênus Platinada no país, depois de mais de três décadas de controle e poder no campo da comunicação televisiva.

A disputa no dia-a-dia pelo aumento nos índices de audiência das telenovelas, a contratação de funcionários da emissora concorrente, as cópias fiéis dos programas jornalísticos e outras tantas tentativas da Record para desbancar a concorrência ainda representam frágeis estratégias de mercado para afetar a Globo.

A história da televisão brasileira nos mostra que, por diversas vezes, programas e estratégias específicas de marketing, semelhantes às já anunciadas, e advindas de emissoras concorrentes, visavam da mesma forma a fragilizar o poder da líder. Como exemplo pode-se citar o telejornal Aqui Agora, do SBT, lançado em 1991, que alcançou altos índices de audiência, chegando a ameaçar o Jornal Nacional, telejornal de maior audiência da Globo. Extremamente sensacionalista, o Aqui Agora ficou conhecido pelas reportagens sobre acidentes graves, assassinatos e crimes chocantes. Sua força junto ao telespectador fez com que, pela primeira vez na história do telejornalismo da emissora, a Rede Globo alterasse a estrutura do telejornal mais antigo da sua grade de programação, passando a incluir no noticiário imagens de maior grau apelativo.

Sucesso semelhante, obteve a Rede Manchete, em 1990, com a novela Pantanal. Primeira telenovela não-global apresentada desde a falência da TV Tupi, em 1980, Pantanal ficou conhecida por bater a audiência da TV Globo, alcançando a média diária de 40 pontos. O incômodo foi tão grande que a emissora de Roberto Marinho acabou submetendo sua grade de programação ao horário da concorrente. Assim, a Rede Globo passou a esticar a novela das oito, na época Rainha da Sucata, de Sílvio Abreu, para que os telespectadores não mudassem de canal.

Influência e lobbies

Na mesma linha, outro grande aborrecimento para a líder surgiu em 2001 com o sucesso estrondoso do programa Casa dos Artistas, lançado pelo SBT. A primeira versão do programa, que contou com 12 participantes, foi responsável por desequilibrar a Vênus Platinada em seu horário mais tradicional: em 28 de outubro de 2001, a Casa dos Artistas ultrapassou a audiência do Fantástico, que desde 1973 era imbatível. Em resposta, a Rede Globo acusou o SBT de plagiar a idéia da produtora Endemol, criadora e detentora dos direitos do reality show Big Brother, programa que o SBT acabou recusando comprar, para fazer uma versão sem pagar direitos autorais. Os apelos foram ganhos pelo SBT, pois não ficou provado o plágio. Mas as brigas judiciais e concorrenciais entre o SBT e a Rede Globo não pararam por aí e estenderam-se, sobretudo aos os programas dominicais, que travam uma batalha acirrada e que perdura há alguns anos.

Assim como esses, podemos citar outros programas e estratégias concorrenciais que abalaram a audiência da líder. Penso não ser o caso, já que meu ponto de reflexão é outro e gira em torno das relações de poder instaurada pela emissora no país, desde seu surgimento. Abordando superficialmente os lobbies políticos da Globo, a reportagem da CartaCapital, infelizmente, não aprofunda as suas relações com o campo político, fundamentais, e que ditaram, por diversas vezes, as regras e posições no mercado das comunicações, ou seja, seu market share.

Resta lembra que o surgimento da Rede Globo e a posterior implantação de uma estrutura audiovisual mais moderna e arrojada que as demais concorrentes, teve início em 1965, a partir da união com o grupo norte-americano de multimídia Time-Life, mesmo conhecendo as normas regulativas do setor e sabendo que tal acordo infringiria um artigo da Constituição brasileira imposta pelo regime militar – o qual proibia a participação acionária de empresas estrangeiras na área de comunicação no país. Para averiguar o fato, foi aberta uma Comissão Parlamentar de Inquérito que na época não obteve grandes resultados. Dessa forma, a Rede Globo criou uma estratégia monopolista, com pesados investimentos em recursos tecnológicos modernos e mão-de-obra qualificada, para obter uma programação infinitamente superior às demais.

Daí para frente, pouca coisa mudou para a Globo. Sofreu, é claro, uma sensível queda de audiência em função do ingresso da TV por assinatura no Brasil. Por outro lado, seu poder de se estabelecer na posição de líder, utilizando sua influência e pressionando políticos e setores do governo por meio de lobbies e relações de troca simbólica, parece permanecer arraigado na estrutura das comunicações brasileira.

Diretora vai ao palácio

A própria revista CartaCapital constatou recentemente essa revelação em matéria publicada no dia 18 de agosto de 2004, questionando os problemas para a criação da Agência Nacional de Cinema e do Audiovisual (Ancinav). Nessa reportagem, a revista esclareceu que, em 2004, o Ministério da Cultura, sob o comando do ministro Gilberto Gil, reabriu o projeto da Ancinav para que o Estado retomasse as responsabilidades de atuar como regulador do mercado audiovisual. Entretanto, o projeto previa interferência do governo na programação das emissoras, além da cobrança de um novo imposto, denominado Condecine, que atrelava o pagamento de uma taxa de 4% sobre o faturamento publicitário no cinema e na TV. Todas as redes de televisão questionaram a taxa, mas a maior prejudicada seria a Rede Globo. O dispositivo atingia em cheio seus interesses financeiros, já que a emissora possui 51% de audiência e abarca 70% da verba publicitária do setor.

Preocupada com o caráter pouco lucrativo da proposta, antes mesmo de ser divulgada oficialmente pelo governo, a Rede Globo ingressou em uma batalha contra o anteprojeto. No dia 5 de agosto de 2004, o Jornal Nacional dedicou cinco minutos de seu tempo para atacar as propostas do Ministério da Cultura, acentuando que a agência poderia influenciar diretamente no conteúdo editorial das emissoras, desrespeitando a liberdade de expressão.

No dia 6 de agosto de 2004, foi a voz de Arnaldo Jabor que soou de maneira ofensiva contra o projeto. Insinuando uma tendência despótica do Ministério, Jabor disse em sua crônica que o governo federal durante o dia finge ser liberal e, à noite, deixa apontar uma vocação autoritária (CartaCapital, 18/08/2004). As ondas de ataques ao ministro continuaram nos dias seguintes, comandadas pelos telejornais da emissora, formando uma espécie de conspiração contra Gilberto Gil, o que de fato impediu que o projeto fosse apresentado e explicado de forma clara à população.

Assim, não tardou para que o projeto fosse derrubado. Segundo esclarece a revista CartaCapital (13/01/2005), o Palácio do Planalto resolveu banir a parte fundamental do projeto que criava a Agência Nacional do Cinema e do Audiovisual. Em uma reunião de que participaram nove ministros de Estado, todas as cláusulas relativas à regulamentação do setor, ponto que mais incomodava a Rede Globo, foram retiradas do texto. Por trás da ação, estava a diretora da emissora, Marluce Dias, que se empenhou pessoalmente na tarefa de convencer os integrantes do governo e os representantes do Conselho Superior de Cinema de que o projeto era autoritário e deveria ser barrado, ou pelo menos as cláusulas reguladoras deveriam ser extintas.

Estratégias simples não importunam

Para o leitor mais atento, esse episódio, aparentemente descontextualizado, não traz nada de original, perante tantas interferências da emissora no campo político, a exemplo da eleição para governador do Rio de Janeiro em 1982, a famosa disputa presidencial entre Collor e Lula em 1989 e as mais diversas manipulações da emissora nesse setor.

Por outro lado, esse acontecimento recente serve de reflexão sobre a possível mudança no cenário televisivo atual. Mesmo incomodando a líder, com programas sofisticados e estratégias de marketing agressivas, a Record ainda não é uma provável concorrente da Globo. A força da emissora perpassa o padrão de qualidade e os programas televisivos, e se instaura na própria política do país. É uma retroalimentação que já dura décadas e se solidifica no jogo clientelista com o poder e, principalmente, nos poderosos e tradicionais aliados políticos da emissora, a começar pelo ex-presidente José Sarney e por Antonio Carlos Magalhães.

E como é muito tênue o ponto que separa a mídia global e a política no Brasil, fica uma pergunta: será possível desbancar a Globo por meio de estratégias simples de mercado? Talvez a grande possibilidade para a Record alcançar o posto de líder não se restrinja à construção de uma grade de programação mais atraente, com programas esteticamente semelhantes aos da líder, e sim na busca por um maior espaço político, angariando maior representatividade no setor.

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Doutoranda em ciências políticas pela PUC-SP e mestre em Comunicação pela Universidade Paulista